Horizonte de Cinzas
Brasília nasceu quase morta,
asmática de vertigens,
rampa aérea para náuseas do horizonte.
Uma terra de muletas
embrulhou a criança
sem umbigo.
Em cadeira de balanço,
ossos cobertos pela manta do céu,
veias limítrofes da alma,
Brasília olha,
mas não vê.
Tem poeira nos olhos,
doença nos pés, não anda,
escora em buritis.
O ar não circula.
Acumula nos poros
de cada viga
de ferro, concreto.
Brasília é funcional,
papel passado, mais adicional.
Nasceu velha
para ser jovem
e não sabe
se é bela ou feia.
Brasília morreu quase torta.
Foi enterrada por homens de terno cinza.
Antes do chuveiro
Artesãs são minhas mãos
na cama no espelho seu corpo.
Meus dedos, teares febris
a fiar a incógnita do seu gozo.
Minha boca vapor
de um trem sem destino.
Afasto meus dentes
como persianas abertas
para todo o sol entrar.
Concentro o que gruda
e molha na minha língua
ávida pelo seus poros
encravados de
de indulgência.
Sou toda parábola para
folhear páginas
de um livro pagão.
O suor do cio.
Espasmos rebelados.
Trêmula,
terei que reinventar o chão…
Anatomia das Cores
A primeira vez que vi um
sapato velho na fiação
entendi o abandono
de se ter alma.
Preferia ter só asas,
assobio de pássaros.
Folhagem pisada.
Mas me colocaram uma alma,
num buraco,
bem na hora que o mundo deu um soluço.
Depois do sapato velho na fiação,
não adiantou mais ver
as cores gentis das quitandas.
Nem mão de moço no rosto de moça.
Tudo parecia chuva
corroendo carroça
na contramão.
Vento de través.
Telhas encardidas
sem promessa de
aventura de criança.
Tentei adestrar as gotas das lágrimas.
Enlouqueci cada palavra do silêncio
até que se curassem.
Não adiantou.
A alma e sua falta de carne
continuaram enterradas
em caverna
de mãos vazias...
Como uma canção
Sem sintonia
de um rádio
prestes a ser desligado
antes de dormir.
Arquitetura do Deserto
Tempo,
flanela das remelas
dos dias.
Tempo, escavadeira de
esperanças.
Tempo, bailarina no
deserto.
Leve embora suas pernas oleosas
para onde não haja as mãos da
saudade.
Insônia
O corredor longo antes do sono.
Claustrofóbica em ser eu,
gárgulas suspenderão o véu da cama.
Mastigarei sem pressa
vísceras do meu passado.
Planejarei entre os dentes
o amanhecer engolido por andorinhas.
Rezarei mais um pai-nosso pela metade.
Imaginarei o banho quente antes do trem.
Rostos desconhecidos, toques recolhidos.
O corredor e a porta maciça das horas.
Asfixia de pensamentos e o peso dos meus ossos.
A mão escorregadia da noite
toca meus ombros.
Na contraluz, a memória e sua bengala.
Meias de porcelana
Escrevo deitada.
Caneta em pé.
Pensamentos em nuvens.
Tinta preta no papel e travesseiro.
Palavra lá fora: ao relento.
Não quer entrar, nem como prece.
Até o amanhecer, só escuto minha pele
na seda e minhas meias de porcelana.
Depois que você foi embora, só sinto frio.
Marcador de Livro
Esta fita vermelha
é como o fingimento dos seus quadris.
Sempre fecho o livro
quando não entendo o ritmo
das letras.
As perguntas tão
desinteressadas nas respostas.
Certos movimentos
automatizados
não me coram mais.
Mesmo assim,
rápidas,
lubrificantes de ponteiros,
são as minhas mãos,
num seminário do desejo.
Na nudez do escuro,
nada é tão puro.
Trigal
A demora de cada
pingo na sua pele
revela o vazio
dos ponteiros na parede.
Seu banho é uma jornada
para reinos onde meus dedos
são Alices e meu gozo é latente.
Espera na cama
Sou argila.
E nem mesmo um passeio
na brisa me retoca com mãos
tão singelas.
Meu corpo todo
é um roçar em trigais.
Não quero acordar e nem dormir.
[De Artesanato de Perguntas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013]