Do Espelho

 

 

Essa mulher no espelho

tem o mesmo olhar

abotoado da menina que roubava

as sombrinhas de cogumelos

das árvores e dos pastos.

 

Esse olhar no espelho parece

bolinhas de gude

na escada rolante,

olhos inconsequentes.

 

Essa mulher no espelho

tem gosto de hóstia

ao lembrar

dos dedos de menina

a lambuzar o próprio sexo.

 

Essa mulher é a mesma

que se atira nas raízes do seu colo

e se retira com nacos de barro

de obra inacabada.

 

Esse reflexo no espelho é o

reflexo de tantos outros reflexos.

Máscaras de pétalas

secas pelo tempo.

 

Coragem.

Pediu para o homem.

Essa mulher ainda sou eu?

 

 

 

 

 

 

Escorpião

 

 

Tirou toda a minha poesia

Só não tirou a minha roupa

 

 

 

[De Voltagem. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015]

 

 

 

 

 

Horizonte de Cinzas

 

 

Brasília nasceu quase morta,

asmática de vertigens,

rampa aérea para náuseas do horizonte.

 

Uma terra de muletas

embrulhou a criança

sem umbigo.

 

Em cadeira de balanço,

ossos cobertos pela manta do céu,

veias limítrofes da alma,

Brasília olha,

mas não vê.

 

Tem poeira nos olhos,

doença nos pés, não anda,

escora em buritis.

 

O ar não circula.

Acumula nos poros

de cada viga

de ferro, concreto. 

 

Brasília é funcional,

papel passado, mais adicional.

 

Nasceu velha

para ser jovem

e não sabe

se é bela ou feia.

 

Brasília morreu quase torta.

Foi enterrada por homens de terno cinza.

 

 

 

 

 

 

Antes do chuveiro

 

 

Artesãs são minhas mãos

na cama no espelho seu corpo.

Meus dedos, teares febris

a fiar a incógnita do seu gozo.

Minha boca vapor

de um trem sem destino.

Afasto meus dentes

como persianas abertas

para todo o sol entrar.

Concentro o que gruda

e molha na minha língua

ávida pelo seus poros

encravados de

de indulgência.

 

Sou toda parábola para

folhear páginas

de um livro pagão.

O suor do cio.

Espasmos rebelados.

Trêmula,

terei que reinventar o chão…

 

 

 

 

 

 

Anatomia das Cores

 

 

A primeira vez que vi um

sapato velho na fiação

entendi  o  abandono

de se ter alma.

 

Preferia ter só asas,

assobio de pássaros.

Folhagem pisada.

 

Mas me colocaram uma alma,

num buraco,

bem na hora que o mundo deu um soluço.

 

Depois do sapato velho na fiação,

não adiantou mais ver

as cores gentis das quitandas.

Nem mão de moço no rosto de moça.

 

Tudo parecia chuva

corroendo carroça

na contramão.

Vento de través.

Telhas encardidas

sem promessa de

aventura de criança.

 

Tentei adestrar as gotas das lágrimas.

Enlouqueci cada palavra do silêncio

até que se curassem.

Não adiantou.

 

A alma e sua falta de carne

continuaram enterradas

em  caverna

de mãos vazias...

Como uma canção

Sem sintonia

de um rádio

prestes a ser desligado

antes de dormir.

 

 

 

 

 

 

Arquitetura do Deserto

 

 

Tempo,

flanela das remelas

dos dias.

Tempo, escavadeira de

esperanças.

Tempo, bailarina no

deserto.

 

Leve embora suas pernas oleosas

para onde não haja as mãos da

saudade.

 

 

 

 

 

 

Insônia

 

 

O corredor longo antes do sono.

Claustrofóbica em ser eu,

gárgulas suspenderão o véu da cama.

 

Mastigarei sem pressa

vísceras do meu passado.

Planejarei entre os dentes

o amanhecer engolido por andorinhas.

Rezarei mais um pai-nosso pela metade.

 

Imaginarei o banho quente antes do trem.

Rostos desconhecidos, toques recolhidos.

O corredor e a porta maciça das horas.

Asfixia de pensamentos e o peso dos meus ossos.

 

A mão escorregadia da noite

toca meus ombros.

Na contraluz, a memória e sua bengala.

 

 

 

 

 

 

Meias de porcelana

 

 

Escrevo deitada.

Caneta em pé.

Pensamentos em nuvens.

Tinta preta no papel e travesseiro.

Palavra lá fora: ao relento.

Não quer entrar, nem como prece.

Até o amanhecer, só escuto minha pele

na seda e minhas meias de porcelana.

Depois que você foi embora, só sinto frio.

 

 

 

 

 

 

Marcador de Livro

 

 

Esta fita vermelha

é como o fingimento dos seus quadris.

Sempre fecho o livro

quando não entendo o ritmo

das letras.

 

As perguntas tão

desinteressadas nas respostas.

 

Certos movimentos

automatizados

não me coram mais.

 

Mesmo assim,

rápidas,

lubrificantes de ponteiros,

são as minhas mãos,

num seminário do desejo.

 

Na nudez do escuro,

nada é tão puro.

 

 

 

 

 

 

Trigal

 

 

A demora de cada

pingo na sua pele

revela o vazio

dos ponteiros na parede.

 

Seu banho é uma jornada

para reinos onde meus dedos

são Alices e meu gozo é latente.

 

Espera na cama

Sou argila.

 

E nem mesmo um passeio

na brisa me retoca com mãos

tão singelas.

 

Meu corpo todo

é um roçar em trigais.

Não quero acordar e nem dormir.

 

 

[De Artesanato de Perguntas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013]

 

 
 
 
 
 

Saltimbancos

 

 

A vida é só um picadeiro de circo

Quando notamos…

 

Foram-se as lâminas certeiras

dos atiradores ciganos

restaram véus de purpurinas.

 

Apenas as lembranças rodopiam.

Ecoam em algum lugar aqui dentro

como cambalhotas sapecas.

 

 

 

[De Conjugação de Pingos de Chuva. Brasília: LGE, 2007]

 

 

 

Paraíso

 

 

A fruta amadurece.

Todo mundo come.

A mulher amadurece.

Ninguém me come.

 

Que vontade ser

uma mulher

fruta da época.

 

 

 

 

 

 

Sem pátria

 

 

Os lençóis ainda respiram.

No chão.

Os flamingos anêmicos

voltaram a visitar

o tédio.

 

O confronto com a sua língua

ainda não foi resolvido.

Sua mão está cada dia mais

estrangeira.

 

Não sei falar: vá embora.

Passaram-se

223 dias.

 

 

 

[Poemas inéditos] 

 

 

 

[imagens ©ben sandler]
 
 

 

 

Carla Andrade Bonifácio Gomes é mineira de Belo Horizonte. Está em Brasília desde 2000, onde atua como jornalista e poeta. Acabou de lançar o megamíni Voltagem, pela Editora 7Letras. A mesma editora publicou a segunda edição de Artesanato de Perguntas, no final de 2013, livro que, em sua primeira edição (DROP Editora), recebeu recursos do Fundo da Arte e da Cultura (FAC) do Governo do Distrito Federal. Seu livro de estreia Conjugação de Pingos de Chuva (Editora LGE), de 2007, também foi contemplado pelo FAC. Já participou de antologias como Fincapé e Coleção Poesia Crônica, com poemas e contos. Gosta de cafuné, barbas e pinguelas.