Resumo
O presente artigo visa abordar as representações de identidades sexuais, a homoafetividade e os discursos de gênero conforme mencionado no romance gráfico (graphic novel) Azul É a Cor Mais Quente (Le Bleu est une couleur chaude, original em francês, 2010) de autoria da quadrinista Julie Maroh e na versão adaptada para o cinema dirigida por Abdellatif Kechiche (La vie d'Adèle, no original francês, 2013). Para isso, será necessário analisar os caminhos percorridos da história em quadrinhos para a adaptação fílmica e as considerações adotadas por cada autor ao expressar opiniões sobre a obra. Logo, o trabalho apresenta reflexões e polêmicas proporcionadas pelo estudo comparativo estabelecido entre a narrativa gráfica e a adaptação fílmica. Pretende-se evidenciar as diferenças presentes nas representações de identidades e como cada autor construiu um discurso em torno das questões de gênero e sexualidade, articulando códigos e elementos próprios de cada uma das linguagens.
Palavras-chave: Homoafetividade. Gênero. Adaptação. Sexualidade. Cinema. Graphic novel.
Abstract
This article aims to address the representation of sexual identities, the homosexuality and gender discourse as is mentioned in the graphic novel (graphic novel) Blue is the color Warmer (Le Bleu est une couleur chaude, original French, 2010) authored the comic Julie Maroh and version adapted for film directed by Abdellatif Kechiche (La vie d'Adèle in the original French, 2013). This will require analyzing the paths taken comic strip for the film adaptation and considerations adopted by each author to express opinions on the work. Therefore, this work presents reflections and polemics offered by comparative study established between the graphic narrative and filmic adaptation. It is intended to highlight the differences present in the identities of representations and how each author built a discourse around gender and sexuality issues, articulating codes and elements of each of the languages.
Keywords: Homosexuality. Gender. Adaptation. Sexuality. Film. Graphic novel.
1 INTRODUÇÃO
O filme Azul é a cor mais quente (título original, La vie d'Adèle) lançado em 2013 e dirigido por Abdellatif Kechiche, foi livremente inspirado a partir da obra da quadrinista Julie Maroh, Azul é a cor mais quente (Le Bleu est une couleur chaude, original em francês). Tanto a obra em quadrinhos quanto o filme receberam prêmios da crítica de ambas as áreas (o livro recebeu em 2011 o prêmio do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême e o filme recebeu a Palma de ouro em 2013), e geraram polêmicas em torno das perspectivas diferenciadas adotadas pelos autores, para representar a relação amorosa entre as duas jovens, que repercutem junto ao público de forma a dividir opiniões.
O que interessa aqui é assinalar como a narrativa gráfica e a audiovisual utilizam os códigos próprios de cada linguagem para engendrar os discursos e construir as identidades das personagens e suas relações (de gênero e opção sexual). Para isso, centrou-se o foco na estética das obras e no processo criativo, explicitando o uso de recursos metalinguísticos, referências literárias, filosóficas e artísticas articuladas pelos autores. A abordagem é de natureza híbrida, apoiada nos estudos culturais, de gênero, adaptação, literatura em quadrinhos, além de trazer à tona e a público, o tema polêmico que ainda é a homoafetividade e suas nuances.
Deve-se levar em conta que apesar de o tema homoafetivo ser ainda cercado por tabus e preconceitos, é necessário considerar que a pós-modernidade tem trazido enfrentamentos para que determinados assuntos ganhem voz e consideração. Outro ponto a ser ressaltado é que tanto Maroh e Kechiche não pretendem fazer distinções e levantar nenhuma "bandeira" em prol de alguma causa de gênero e opção sexual, mas sim, relatar uma história de amor como outra qualquer.
1.1 O Graphic Novel
O graphic novel de Julie Maroh foi lançado na França em 2010, e traduzido para o mercado internacional, com versões em inglês, espanhol, alemão, italiano, holandês e português. Porém, o álbum ganhou notoriedade por ser referência para a adaptação cinematográfica homônima, dirigida por Abdellatif Kechiche, premiada com a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2013. Cabe ressaltar, que foi o primeiro longa-metragem baseado em uma história em quadrinhos (HQ) a ser contemplado com o prêmio máximo desse importante festival francês.
A obra conta a história da jovem Clémentine, que vive uma adolescência conturbada por não saber exatamente a sua opção sexual. Ela tenta relacionar-se com um colega da escola, mas vê seu mundo virar quando cruza pela rua com uma garota homossexual de cabelos azuis, Emma. O universo do HQ é cinzento e expressa certa frieza, que só ganha cor quando Emma aparece com seus cabelos coloridos de azul. Depois do fato, Clém (apelido da personagem principal) tem sonhos eróticos com Emma e entra definitivamente em conflito com sua sexualidade. O azul torna-se "a cor mais quente" e acaba transformando-se na obsessão de Clémentine, que mais tarde, começa a relacionar-se com Emma.
Fig. 1 - O primeiro encontro entre Clémentine e Emma. Fonte: MAROH, 2010.
Naturalmente, no romance, o azul torna-se uma marca da homossexualidade de Emma e sua diferenciação na sociedade. A personagem, além de ter uma opção sexual diferenciada, é estudante de belas artes e tem interesse pela vida alternativa artística. Segundo Guacira Lopes Louro:
Diz-se que os corpos carregam marcas. Poderíamos, então, perguntar: onde elas se inscrevem? Na pele, nos pelos, nas formas, nos gestos? O que elas "dizem" dos corpos? Que significam? São tangíveis, palpáveis, físicas? Exibem-se facilmente, à espera de serem reconhecidas? Ou se insinuam, sugerindo, qualificando, nomeando? Há corpos "não marcados"? Elas, as marcas, existem, de fato? Ou são uma invenção do olhar do outro? Hoje, como antes, a determinação dos lugares sociais ou das posições dos sujeitos no interior de um grupo é referida as seus corpos. Ao longo dos tempos, os sujeitos vêm sendo indiciados, classificados, ordenados, hierarquizados e definidos pela aparência de seus corpos; a partir dos padrões e referencias, das normas, valores e ideais da cultura. Então, os corpos são o que são na cultura. A cor da pele ou dos cabelos; presença da vagina ou do pênis (LOURO, 2013, p. 77).
O graphic novel, ou romance gráfico, aborda a homoafetividade com todas essas marcas e atmosfera que gira em torno dos temas intolerância, preconceito, atos de bulling, conflitos de identidade e dificuldade de assumir a posição homoafetiva diante da sociedade (por parte de Clémentine). "Desprezar o sujeito homossexual era (e ainda é), em nossa sociedade, algo "comum", "compreensível", "corriqueiro", segundo Guacira Lopes Louro. A autora também faz a seguinte observação sobre o preço que o indivíduo paga quando se posiciona "fora" da normalidade prezada pela sociedade:
Dentro dessa lógica, os sujeitos que, por qualquer razão ou circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na sequência serão tomados como "minoria" e serão colocados à margem das preocupações de um currículo ou de uma educação que se pretenda para a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos "marginalizados" continuam necessários, já que servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam (LOURO, 2003, p. 69).
Logo, não se pode ignorar aspectos ligados a temas feministas e o que esse movimento pensa sobre o lesbianismo, embora seja contraditório e excludente. Tânia Navarro Swain fala sobre esse assunto, segundo uma ótica feminista:
(...) assim como os estudos feministas se debruçam sobre "o que é uma mulher? podemos indagar: o que é uma lésbica?". Mulheres que amam mulheres? Que fazem sexo com outras mulheres? Que se sentem atraídas mas não ousam o sexo? Que amam outras mulheres e fazem sexo com homens? A própria bissexualidade que hoje se desvela torna irrelevantes as definições em torno de práticas (SHAIN, 1999, p. 111).
Há controvérsia na análise psicanalítica da relação homoafetiva entre mulheres, como Judith Butler já chamou atenção e com o qual não concorda:
Em alguns discursos psicanalíticos, a questão da homossexualidade é invariavelmente associada à forma de ininteligibilidade cultural e, no caso do lesbianismo, à dessexualização do corpo feminino (BUTLER, 2003, p.10)
Embora tente negar e luta durante anos contra os sentimentos nutridos por Emma, Clémentine sucumbe à paixão. O romance gráfico (que é direcionado ao público adulto) mostra a entrega de Clém para Emma em uma relação sexual esperada há tempos pela protagonista. De forma muito sutil, Julie Maroh desenha toda a relação com corpos entrelaçados, onde suas personagens se entregam à paixão.
Fig. 2 - A relação sexual. Fonte: MAROH, 2010.
Azul é a cor mais quente investe no protagonismo feminino, centrando o foco na relação homoafetiva e nas problemáticas que atravessam a vida do casal. Também comparecem as dificuldades de levar uma vida a dois em função de diferenças outras, como pretensões profissionais, inseguranças e traições. A vinculação sociopolítica da narrativa é reforçada nos quadrinhos através da participação das personagens nos protestos que ganhavam as ruas contra a política conservadora de Nicolas Sarkozy. As reivindicações da causa LGBT são contempladas pela autora, ela própria uma ativista dos movimentos inclusivos em prol dos direitos humanos e da equidade de gênero. Seu trabalho narra fatos corriqueiros e reais, características dos quadrinhos modernos, que adotam atmosferas e personagens mais críveis.
Diferentemente de Emma, Clém tem conflitos existenciais com a ideia de ser apaixonada por uma mulher, embora Emma seja uma pessoa altamente segura de sua posição sexual. Inicialmente, ela tem uma namorada na história, Sabine, que com o tempo, é deixada de lado. São dois universos ambíguos: é a posição de um sujeito em conflito consigo mesmo e outro totalmente seguro do caminho "contrário" que tomou. Logo,
A disputa centra-se fundamentalmente em seu significado moral. Enquanto alguns assinalam o caráter desviante, a normalidade ou a inferioridade do homossexual, outros proclamam sua normalidade e naturalidade — mas todos parecem estar de acordo de que se trata de um "tipo" humano distintivo (LOURO, 2013, p. 30).
Clémentine vê-se pagando o preço pelas suas escolhas: suas amigas a excluem quando a veem saindo com Emma, seus pais a expulsam de casa quando descobrem que as duas moças têm um caso e logo, a personagem é forçada a "crescer" diante de suas escolhas e diante de uma sociedade hostil.
Esses se tornarão, então, alvo preferenciais das pedagogias corretivas e das ações de recuperação ou de punição. Para eles e para elas a sociedade reservará penalidades, sanções, reformas e exclusões. (...) Embora participantes ativos dessa construção, os sujeitos não exercitam livres de constrangimentos. Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões (LOURO, 2013, p. 16-17).
O tempo e o espaço na obra são bem demarcados: começa nos anos 90, quando Clémentine tem 15 anos. O desenrolar da história acontece até os 30 anos de idade da personagem principal, e não possui um happy ending: Clémentine tem uma doença que se agrava depois que ela e Emma se separam por causa da infidelidade de Clém. Ela se mostra confusa durante a história e acaba se envolvendo com um colega de trabalho. Ela piora, não resiste e morre, deixando diários para sua amada, descrevendo toda a sua adolescência e como a representatividade de Emma em sua vida foi essencial, embora Clémentine tenha vivido uma existência de dúvidas e negação. Acima de tudo, é uma história de amor que conheceu várias faces.
1.2 O filme La vie d'Adèle: uma adaptação
Inspirado na história em quadrinhos de mesmo nome, mas com o subtítulo de A vida de Adéle, o filme do cineasta Abdellatif Kechiche, com duração de três horas, toma certas liberdades quanto ao processo de adaptação para o cinema de Azul é a cor mais quente.
A personagem Clémentine tem o nome adaptado para Adèle (o mesmo nome da atriz que a interpreta, Adèle Exarchopoulos) que no início da história tem 17 anos.
Fig. 3 - Momento em que Adèle vê Emma pela primeira vez. Cena do filme
Azul é a Cor Mais Quente ou A vida de Adele. Direção de Kechiche, França, 2013.
Divulgação, disponível em acrítica.uol.com.br.
Kechiche construiu seu ponto de vista sobre a obra Azul é a cor mais quente. O filme toma rumo próprio e não tem a menor pretensão de ser fiel à obra gráfica, começando pelo titulo original: La vie d'Adèle.
Para isso, Abdellatif Kechiche usa ideias "existencialistas" para retratar as escolhas e as opções adotadas por Adéle. Em uma das cenas iniciais, Kechiche — na tentativa de mostrar um dos seus pontos de vista sobre o assunto que permeia o filme — investe nas conotações simbólicas associadas à imagem da água para dar conta das transformações da personagem, constrói metáforas e traz a discussão para a cena em exercício de metalinguagem ao citar referências.
Fig. 4 - Adèle durante as aulas de literatura.
Divulgação, disponível em www.youtube.com.
Fig. 5 - Adèle sendo hostilizada pela amiga ao ser questionada sobre
seus encontros com Emma. Divulgação, disponível em article.wn.com.
Por exemplo, quando o poema "De I'eau" ("Da água", ou simplesmente "Água") de Francis Ponge, é debatido em uma das aulas de literatura de Adèle, após a personagem ter sido confrontada pelos colegas sobre sua relação com Emma. O poema desconstrói o discurso de naturalização da sexualidade, questiona a identidade sexual normativa como virtuosa e plausível, pura e autêntica por oposição aos comportamentos desviantes considerados artificiais, geralmente associados a vícios e falsidades. O poeta utiliza a água como metáfora para insinuar, através de sua fluidez, o respeito às diferenças e as possibilidades de renovação.
O diretor cita também em sua adaptação, a obra La vie de Marianne, do dramaturgo francês Pierre de Marivaux. Na obra, Marivaux coloca-se no lugar de uma mulher para escrever; o narrador é a própria Marienne. Assim, durante as aulas de literatura, Adèle tem contato com tal obra e mostra-se identificada com a personagem. É como se o diretor Abdellatif Kechiche quisesse dizer que, ao adotar o nome do filme La vie d'Adèle (titulo na versão original), fizesse uma homenagem à obra de Marivaux, posicionando-se também como um narrador com olhos "femininos" diante da história de amor de Adèle e Emma. A narrativa do filme é focada em Adèle e em sua visão de mundo.
Para exemplificar essa mudança de titulo do graphic novel para o cinema (no caso, do título original), e mostrar essa liberdade que a adaptação midiática possibilita, cita-se a fala de Marcelo Ribeiro, como justificativa dessa nova interpretação do diretor Abdellatif Kechiche:
A relação entre o título do filme (La vie d'Adèle) e o título do livro (Azul é a cor mais quente) que participa da narrativa do primeiro delimita um dos eixos de intertextualidade em torno do filme e estabelece relações importantes entre literatura e cinema, que ajudam a entender o filme. O aluno que lê as palavras da personagem feminina no início da narrativa é comparável, em sua posição em relação ao livro que lê, ao espectador de cinema, que experimenta a vida de Adèle, mas há uma diferença crucial: enquanto o leitor de um livro dá voz a suas personagens (em sua mente ou em sua boca), o espectador de um filme experimenta a visibilidade das personagens (RIBEIRO, 2014).
Fig. 6 - Adèle e Emma em cena de Azul é a Cor Mais Quente ou A vida de Adèle,
direção de Kechiche, França, 2013. Divulgação, disponível em epoca.globo.com.
Segundo Fabrício Gerald Lima e Nádia da Cruz Senna, em relação às outras influências encontradas no filme e na formação da identidade da personagem Adéle, podem ser identificados os seguintes pontos:
O processo de formação do ser pela perspectiva da filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre é outra chave de interpretação da personagem, cuja existência se inaugura a partir do amor que sente por Emma, há uma devoção pelo ideal de liberdade que a garota do cabelo azul representa. Adèle admira a postura, a homossexualidade assumida, a aceitação de Emma pela família e pelos amigos; sua sofisticação, intelectualidade e as convicções profissionais para o futuro. Essa concepção está presente tanto no original dos quadrinhos quanto no filme, é uma visão humanista, sobretudo, que dá a medida de responsabilidade de cada um pelas ações tomadas, e conforme Adèle se projeta para fora de si mesma, ela se faz no mundo. Fica claro nos discursos dos dois autores a possibilidade de superação, reinvenção e transcendência da personagem (SENNA, p. 9, 2014).
Adèle, como citado, vê em Emma a liberdade que não possui em assumir a própria postura e identidade perante a sociedade e diante de si. O "azul" invade sua vida e seus sonhos de forma avassaladora e isso a faz procurar o sentido para a própria vida, que Kechiche faz questão de mostrar, filmando cada passo do dia de Adèle, o que leva o expectador a experimentar a monotonia e os rumos que a história toma com o passar do tempo cinematográfico.
O diretor, em sua adaptação, suplanta as situações turbulentas descritas no graphic novel, como o conflito que supostamente Adèle deveria enfrentar quando seus pais descobrem que ela tem um caso com Emma. Na contramão disso, Kechiche dá um salto temporal da versão "Adèle adolescente" para "Adèle mulher", formada, professora de primário, já vivendo com Emma, embora ainda não se sinta confortável em assumir socialmente a sua opção sexual.
Além desses pontos, tem-se consciência de que o diretor cria a própria obra e usa as próprias referências para expressar sua visão diante de Azul é a cor mais quente de Maroh, o que pode ter causado estranhamento e frustração ao público leitor, que esperava fidelidade na adaptação.
Isso acontece em relação ao ato sexual de Adèle e Emma no filme. As críticas à representação do amor, do prazer e do sexo entre duas mulheres na obra de Kechiche, não podem esquecer que sua narrativa não apenas encena esses temas, mas, em momentos específicos, aborda os problemas envolvidos em sua encenação.
Há especulações e pontos de vista feministas que Kechiche expressou com um olhar heterossexual e fetichista sobre a obra de Maroh. O diretor teria sido interpretado como "voyeur" entre as duas atrizes e acusado de vulgaridade ao filmar cenas de sexo prolongadas: o homem é o olhar; a mulher, a imagem — são claramente demarcadas na análise da imagem e do olhar no cinema. Essa visão e opinião sobre a posição do olhar de Kechiche diante das cenas que dirigiu pode justificar-se pelo ponto de vista de Laura Mulvey, em seu artigo "Prazer Visual e Cinema narrativo".
Mulvey define que existem três tipos de olhares no cinema narrativo clássico, que são explicitamente masculinos: (1) o olhar da câmera, (2) o olhar do telespectador e (3) o olhar dos protagonistas masculinos no filme. Entretanto, "as convenções do filme narrativo", segundo a autora, "rejeitam os dois primeiros sujeitando-os ao terceiro, com o objetivo consciente de eliminar a presença da câmera intrusa e impedir que a plateia tenha consciência crítica do drama ficcional". Pois, conforme Mulvey (1983), a consciência do processo de registro do filme e a leitura crítica do telespectador podem tirar o realismo e a verdade da cena.
Mas vale ressaltar que não somente sobre as cenas tórridas de sexo explícito entre duas mulheres, há também a representatividade do corpo feminino em momentos mais sutis, como quando Emma pinta e usa o corpo de Adèle nu como modelo vivo para seus quadros. Apesar da visão feminista de Mulvey da representatividade feminina no cinema, o diretor de La vie d'Adèle mostra as coisas como elas são ao narrar a história sem cortes, sem omitir nada: o prazer, o sofrimento, as mudanças como ocorrem, independentemente se isso ocorre numa relação homoafetiva entre duas mulheres.
O final do filme toma rumos diferentes do relatado na obra de Maroh. Diferente de Clementine, Adèle vive e sofre intensamente a perda de Emma, que não admite a traição da companheira. Emma segue sua vida e continua a pintar. Ao reinscrever a realidade de sua vida em seus quadros, como no corpo de Adèle, que amou e por quem continua a sentir imenso carinho, Emma é capaz de continuar, ali onde Adèle parece ter permanecido inapta diante da vida, presa a algo que acabou, incapaz de recriar seu mundo e de abrir novamente suas possibilidades. Na vida, como no cinema, o mundo basta, mas é preciso recriá-lo, interminavelmente. Adèle termina usando um vestido azul, e segue rua afora (como se seguisse sua vida), após ir a um vernissage de Emma e ter a certeza de que a história de amor das duas havia acabado.
2 AZUL É A COR MAIS QUENTE: DOS QUADRINHOS PARA O CINEMA
Sobre a adaptação da obra para outra mídia, Linda Hutcheon menciona que
conforme diz Charles Russel, com o pós-modernismo começamos a enfrentar e somos desafiados por uma arte de perspectiva variável, de dupla autoconsciência, de sentido local e amplo (HUTCHEON, 1991, p. 29).
No caso de adaptação de uma peça literária para o cinema, também enfrenta-se pontos conflitantes. O senso comum preza pela "fidelidade à obra original", mas sabemos que esse processo não é uma obrigação.
(...) a adaptação é uma transposição anunciada e extensiva de uma ou mais obras em particular. Essa "transcodificação" pode envolver uma mudança de mídia (de um poema para um filme) ou gênero (de épico para um romance), ou uma mudança de foco, portanto, de contexto: recontar a mesma histórica de um ponto de vista diferente, por exemplo, pode criar uma interpretação visivelmente distinta. (...) Um processo de criação, adaptação sempre envolve uma (re-)interpretação quanto uma (re-)criação (HUTCHEON, 2003, p. 29).
Linda Hutcheon (2013) diz que "para o leitor, espectador ou ouvinte, a adaptação como adaptação é inevitavelmente um tipo de intertextualidade se o receptor estiver familiarizado como o texto adaptado. Deve ser por isso que há tanta controvérsia entre a obra literária e adaptação fílmica.
A adaptação, do ponto de vista do adaptador, segundo Hutcheon (2013) é um ato de apropriação ou recuperação, e isso sempre envolve um processo duplo de interpretação e criação de algo novo".
É válido ressaltar que Hutcheon cita que a história contada ou escrita, nunca é o mesmo que mostrá-la de forma visual. Logo, "adaptar" não é ser completamente fiel à obra anterior inspiradora.
Como afirmado anteriormente, o filme Azul é a cor mais quente (La vie d'Adèle, no original) sofre alterações que podem trazer estranhamento aos mais desavisados ou que esperam fidelidade à obra original. Abdellatif Kechiche fez a própria obra e posicionou sua visão diante das personagens concebidas por Julie Maroh. Cenas foram mantidas, outras totalmente modificadas. Ao público cabe apreciar as obras de formas distintas, embora tentados a fazer comparações. Linda Hutcheon faz a seguinte consideração quanto a isso:
Para experenciar uma adaptação como adaptação, como visto, precisamos reconhecê-la como tal e conhecer seu texto adaptado, fazendo com que o último oscile em nossas memórias junto com o que experienciamos. Durante o processo, inevitavelmente preenchemos quaisquer lacunas na adaptação com informações do texto adaptado (HUTCHEON, 2003, p. 166).
Quanto às formas de abordagens sobre os temas que Maroh levanta no graphic novel, a adaptação permite que o adaptador formule a própria opinião diante da obra que elegeu para ser adaptada. Como a obra de Maroh é ilustrada, sendo visíveis as características físicas das personagens, Kechiche usa essas imagens pré-concebidas e as faz ter vida e movimento. Hutcheon (2013) diz que "o adaptador é um intérprete antes de tornar-se um criador".
3 CONCLUSÃO
Pode-se concluir que tanto o graphic novel de Julie Maroh quanto a adaptação fílmica de Abdellatif Kechiche possuem particularidades, embora o segundo tenha surgido do primeiro. Isso não significa que o adaptador tem a obrigação de ser fiel à obra adaptada. Ambos criam as próprias leituras e seu modo de ver os fatos. Se as visões se divergem ou não promovem agrado ao público que leu o livro Azul é a cor mais quente e viu o filme, esse não é o ponto mais importante nem mesmo relevante.
Maroh e Kechiche têm visões particulares sobre a situação de um relacionamento homoafetivo feminino (levando em conta que uma visão é feminina e outra masculina), porém ambas opiniões são relevantes. Cabe ao público interpretar as representações e entender que no mundo criativo e artístico os limites são tênues.
Embora possa haver divergências de opiniões entre as duas obras, tanto Maroh quanto Kechiche são enfáticos em dizer: Azul é a cor mais quente tem a preocupação em relatar uma história de amor, independentemente da opção sexual, gênero e classe social. Seria uma homenagem ao amor e às transformações que esse sentimento pode causar.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
GIDDENS, Anthony. A transformação da identidade: sexualidade amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1993.
HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
_________________. Uma teoria da adaptação. Florianópolis: Ed. Da UFSC. 2013.
KECHICHE, Abdellatif . Azul É a Cor Mais Quente. La vie d'Adèle. Filme dirigido por Abdellatif Kechiche e estrelado por Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. França, 2013.
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
MAROH, Julie. Azul é a cor mais quente. Le Bleu est une couleur chaude. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
MULVEY, Laura. Prazer Visual e Cinema Narrativo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
RIBEIRO, Marcelo. Azul é a cor mais quente: alguns fragmentos analíticos. 2014,
Disponível em <http://migre.me/rtMjn>. Acesso em 10 fev. 2015.
SENNA, Nádia da Cruz; LIMA, Fabrício Gerald. Azul é a cor mais quente: imaginários, sexualidades e discursos engendrados nos quadrinhos e na adaptação fílmica. III Seminário Nacional de Educação, Diversidade Sexual e Direitos Humanos. Vitória/ES, 2014. Disponível em <http://migre.me/rtMnt>. Acesso em 29 set. 2014.
SWAIN, Tania Navarro. Feminismo e Lesbianismo: A identidade em questão. Cadernos Pagu (12) 1999, p. 109-120. Disponível em <http://migre.me/rtMwF>. Acesso em 29 set. 2014.
.
setembro, 2015
Ana Claudia Pinheiro Dias Nogueira é professora de literatura, graduada em Letras e mestra pela UFMS. Faz doutorado em Estudo da Linguagem na UFRN, onde seu objeto de pesquisa engloba literatura e suas relações com outras artes.