A poesia pode tanto romper quanto reafirmar. São modos diferentes de lidar com a mesma tradição. Mas existe uma diferença entre reforçar valores envelhecidos e revigorar a experiência atual e refletindo-se em símbolos antigos, como faz Hugo Langone em Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito (7 Letras). A evocação mística de recorte cristão está colocada nesse título de maneira óbvia, isto é, do sacrifício cuja completude implica o ressurgir, o ciclo perene o qual também nos põe num plano anterior às religiões reveladas e toca a clave do, digamos, universal, onde as diferentes crenças sucumbiriam à comunhão.

Isso levaria muito além das práticas religiosas circunscritas pelas divisas da religião e irrompe no terreno da mística, em sua pesca de epifanias, embora o poeta permaneça no âmbito do cristianismo católico. Evidentemente não basta usar clichês para configurar em poesia essa experiência. A palavra Deus ou evocar Francisco de Assis talvez resulte tão vazio quanto falar nas mulheres do sabonete Araxá desprovido do mínimo sopro de um Manuel Bandeira. A propósito, Langone lembra os modernistas, não só brasileiros, que trabalhavam a suposta simplicidade da linguagem como tentativa de reencontrar o humano perdido em quinquilharias beletrísticas segundo a visão da época. O risco de ficar aquém do alvo pretendido é sempre grande, e para evitá-lo é preciso saber imprimir em cada palavra o potencial que lhe cabe dentro do conjunto textual.

Percebe-se na realização do livro que Langone, professor e tradutor, trouxe para o português autores como o poeta Juan de la Cruz e os filósofos Leo Strauss e Bertrand Russel, entre outros nomes, um exercício com a palavra num sentido amplo, não obrigatório, mas que permite uma experiência enriquecedora no trato da linguagem. Ele trabalha um projeto amadurecido, e isso avaliza a previsão de novas realizações,  já com um tom próprio. Lembre-se, a evidência do diálogo com mestres, ao contrário de ser uma falha, é um atestado de que o autor tem em mente a condição do gesto cultural como reflexo de outros tantos gestos ecoando pela história. E tem objetivos claros que se configuram numa linguagem sensível trabalhada em ritmo de medida gravidade, capaz de rir de si mesma quando o eu lírico se aferra à suposta matéria da poesia — devemos observar que o fôlego do autor afina-se melhor com o verso mais estendido, embora o resultado neste caso não seja negligenciável: "Havia, / aqui, / um poema. // Apaguei-o. // A noite / parecia / grave, / grande. / Era um poema / urgente. // Malditas as manhãs / que a tudo mascaram". Lá se foi o bezerro de ouro. Só resta ao poeta partir do vazio que fica e onde o "tradicional" pode se encontrar com a "transgressão".

 

 

 

[ Texto publicado originalmente no Estado de S.Paulo ]

 

 

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O Livro: Hugo Langone. Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015, 72 págs.

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setembro, 2015