Ceia I
Tudo que se aglomera entre a porta
da frente e a do fundo
se reverte e se repete.
O medo, força de tremenda criação,
evolui como uma bactéria resistente.
Não há cura nesse pasto de vidas secas.
Nem socorro para minha sede virgem.
Que a chuva e seu vinho tinto
manchem os meus ombros e os meus sapatos.
Olho para a tempestade local
com a incompreensão e o silêncio de um órfão.
Noto como as nuvens sangram.
Este é o meu corpo, este é o meu sangue.
Seria bom chorar.
Ceia II
Roubo o fogo das pessoas alheias
para ser autossuficiente.
Os outros continuam comendo o pão habitual:
todos falam de boca cheia.
Os meus rios e as minhas poças estão secando.
Inebriados, hipócritas e militantes,
os homens orgulham-se sendo agudos e frios
como cacos de vidro.
A esperança e a fé estão no cálice vazio.
"Judas, companheiro, passa o suco".
Devemos todos festejar o amanhecer
e os seus crepúsculos vaidosos.
Não importa que o pão esteja duro
e o vinho azedo.
Vão em paz, traidores — hoje eu
lhes concedo o meu perdão.
Levantem-se: meus pés já estão limpos.
Ceia III
É sábado — posso deixar de existir.
Não faz diferença se estou com fome:
não bebo vinho branco.
As definições não se cansam
e choram desesperadamente.
Entre pedregulhos e gritos, estendo a minha
mão de salvador irresponsável,
mas minha mão está furada
e chama atenção dos beija-flores.
O plano mistura os meus temperos
e os meus enganos prediletos.
Falta um lugar na mesa
e falta pão.
Vou-me embora e não temo a travessia
apenas o decolar e o aterrissar.
Meus cabelos são compridos.
Minha violência, contida.
Meu pano, branco.
Ceia IV
O assento designado é sempre o mesmo:
sou o sexto para o lado direito.
Há passageiros histéricos que não têm
certeza do destino do trem.
Escuto da janela o assobio melancólico da noite
que explora e conhece suas sombras, e sinto fome.
Encontro um pedaço de Maria
na cidade abdicada.
Olho para a janela fechada de sua antiga casa
e contemplo uma felicidade reconhecida.
Minha língua flutua sobre a terra e os peixes:
sinto a sede trotar sobre os meus ossos.
Jamais fiz essa viagem
e nada me parece virgem.
A sede evolui.
Na boca de Maria encontrarei
o vinho que necessito:
só os seus lábios podem redimir
a minha alma.
Ceia V
Meus joelhos estão escalavrados.
Minhas mãos, como o couro falso
adotado na cidade.
O sangue jorra das minhas vísceras
e não alimenta as rosas
nem as crianças abandonadas.
Prefiro os espinhos — os pregos
enferrujarão devido ao vento,
às lágrimas e bocejos.
A fome arranha os meus passos
e estripa a minha voz.
Minha estrutura óssea não sustenta
a esperança prometida aos infortunados
nem o que sou obrigado a carregar.
Só o meu peito calcifica.
O grito estridente da ovelha abafa
o meu silêncio caridoso.
Não vou a lugar algum:
se eu for, voltarei em três dias.
Ceia VI
Sei onde posso celebrar a ceia
e o mistério da certeza
que não se concretiza.
O homem com a jarra d'água
me convida para entrar.
Mas eu não tenho sede.
Tenho medo de tudo que pode
confirmar a predisposição
que tenho com a morte.
A chance de compartilhar o pão
com um traidor me apavora.
Prefiro morrer de fome.
O vinho e o pão estão na mesa.
Não bebo e não como.
Sou o mais jovem e vou-me —
serei outro em outro reino
partilhando a solidão com o trono.
Ceia VII
O poeta folclórico despeja sua lírica
sobre a mesa, o pão e o vinho.
O sangue escorrega entre as palavras
de sua boca vaidosa, deixando uma
mecha rubra em sua barba aparada.
Ele nos revela que não só é marinheiro
como também Messias que caminha
sobre a água do mar — e que os peixes
brotam como o feijão sob seus pés perfurados.
O poeta ferido nos diz também
que não morrerá na cruz idolatrada,
sob uma tempestade abusiva e quente.
Prefere falecer em seu leito modesto,
com sua antologia no colo e seu gato
a observar seus últimos instantes
de poesia discreta.
Ele quer morrer dessa forma
em uma sexta-feira de qualquer sol.
Faltará pão, vinho e poesia por sete semanas.
Os que o amam muito chorarão
as lágrimas vermelhas da solidão.
Em pouco tempo, tudo voltará a ser.
Surgirão outros marinheiros e outros poetas.
Teremos vinho, pão e poesia em abundância
e tudo voltará a ser.
Ceia VIII
Os lavradores estão sempre na base
da mesma montanha.
Eles não sentem a dor proporcionada
pela ponta de lança e pela coroa de espinhos.
Para que serve o choro, a insatisfação
momentânea e o pesadelo recorrente?
Está na hora do almoço:
Os homens procuram o portador d'água,
as mulheres dividem o pão.
O sangue da colheita é puro
e seca rapidamente.
Há quanto tempo essa gente não lava os pés?!
Junto à terra tudo é mais palpável:
especialmente o corpo, o pão e o medo.
Os lavradores contemplam a vasta beleza
e a tranquilidade permanente que os circulam.
Eles entendem que são pequenos
e não faltará vinho nem sangue.
Ceia IX
Eles não sabem onde está a ceia.
Alguém diz que ela se perdeu
a caminho de um encontro e não faz mal.
Ficam todos ali sentados juntos
sem saber exatamente o que os unifica
nem por quanto tempo.
Não há vinho nem a vontade de beber.
O silêncio corre nas veias daqueles homens.
"Venha Maria, sente-se cá junto a mim"
— diz a voz daquele que sente em sua tranquilidade,
o pudor de sua ânsia incontrolável.
Não lhe interessa a consequência de uma vontade:
sim, a verdade de um propósito esquisito.
Maria abraça-o por trás beijando-lhe a nuca,
e saúda a vida que a envolve.
Ele a ama simplesmente,
e essa é a sua única certeza.
Ceia X
Obcecados pela conquista da pedra
os homens se parecem e se esquecem.
O poeta se confunde e analisa
para onde escorre o sangue do que morre
na rua, e daquele que observa a cena de perto
para sentir esse sangue vazar de suas órbitas.
A viúva chora e suplica para a filha
reter gritos e insatisfações momentâneas,
que tornam seu útero árido e duro
como a pedra que os homens tanto procuram.
E o porteiro quer saber quem quer mais água.
Todos esperam já que não sabem ir.
Remordendo o resto de pão, o mendigo
é guiado às vísceras de um contentamento vão,
e vela, absorto em sua autopiedade,
a sua condição irrecuperável.
O filósofo pergunta ao silêncio que o vigia,
se existe o livre arbítrio.
No fundo ele sabe que só existe
a fome, o pão e o vinho.
Ceia XI
Ele observa os cadarços de seus sapatos desamarrados.
Não compreende o propósito da dor que ofusca.
Seria bom ter companheiros para acolher
seus temores e espantar a sua sede e sua fome.
O sangue acumula-se nos pés e nas mãos.
Ele senta-se para dividir seu pão
com os dias da semana vindoura.
A dúvida inescrutável habita seu intestino,
como um filho indesejado
no útero de uma mulher cruel.
A dor é inviolável e necessária:
uma causa que sobrepõe tantos amores.
E ele come seu pão
sem ser condenado pela culpa que o aflige.
Sem condenar os que, sem amor,
o fazem sofrer.
Ceia XII
A luminosidade do jovem poeta oscila
conforme os seus desejos.
Tão impalpável quanto a carne
tenra de seu sonho e de seu prazer.
O pescador, por outro lado, reconhece sua fome,
e faz dela a ceia de uma vida inteira,
o propósito de seus amores
e o abrigo de seus pecados.
A lua dengosa observa o encontro
predestinado do poeta e o pescador.
O silêncio é o humor que os compõem.
Um traz a sua água. O outro, o seu sangue.
O pescador admira a profundidade das águas
que navegam sob o companheiro,
e a linfa da ansiedade que incorpora aquela alma.
O poeta emerge sobre a sua erva
envolto em sua gratidão momentânea,
e inveja a bondade explícita de seu amigo pescador.
Com muito vinho e o canto da poesia dispersiva,
o jovem poeta passa a ser o pescador:
o pescador, o mais jovem poeta.
Ceia XIII
O fluxo intravenoso de harmonia discreta
ajuda a compor a tristeza de um casal.
Com ambiguidade natural
a distinção irregular emerge da fusão
de seus corpos e crucifica a dor pessoal
de um passado fosco e adormecido.
Dividir o pão e a sede tornou-se habitual:
a teimosia de uma fome desigual.
Os outros também procuram fazer sentido
da colisão do cotidiano absurdo.
O desejo flagela a paixão
estimulada pela delicadeza do vinho,
acoita a condição mutável dos sonhos.
Há, entre os esconderijos da culpa inconsumível,
a constância asseguradora da semente
que germina o encanto de um amor irreconhecível.
Certas noites o casal se reconhece e
não se incomoda com os pregos nas mãos e nos pés.
Como se estivessem compartilhando uma última ceia,
se abraçam e se beijam.
[imagens ©alberto giacometti]