Meu cavalo contra a distância

 

 

como a lua afaga a alvorada do novo dia

como o sol beija o crepúsculo da noite

que há por vir

minha pobre alma abençoa o cavalo branco alado

percorre a distância imensa que nos separa

em pensamento

no plano imaginário do místico, do simbólico, do alquímico

não existe esta restrição humana mesquinha

e na intenção de um coração puro

não habita a distância, nem o tempo

mesmo velho eu sou menino

é você menina quem beija minha fronte

os nossos corpos se fundem contentes

de uma só alegria, tão calma, que sequer existimos depois

resta o orvalho da manhã que é lágrima calada

resta o arco-íris da tarde que é sorriso de todo o céu

dentre todas as cores

você é a mais linda

 

 

 

 

 

 

Compostura!

 

 

Ele — o poeta —

sobejo léxico,

nímio linotipista,

à penúria de teor

erigiu o silêncio.

 

 

 

 

 

 

Por amor

 

 

s

al

t

o

s

e

m

p

a

r

a

-

q

u

e

d

a

s

— sei que posso flutuar

 

 

 

 

 

 

 

O abandono

 

 

Eu sou João. Mas se olho no espelho, a imagem que vejo é aquela do demônio. A besta fera de sete cabeças, as bocas cheias de grandes dentes pontiagudos. A dor é imensa. A baba escorre pegajosa de minhas bocas. A dor é intensa. Os globos vermelhos saltam de minhas órbitas. A dor é insana. Sou meu próprio labirinto aqui na ilha de Patmos. Para descer de onde estou — para dentro de mim — percorro uma miríade de escadas através de nuvens, repleta de bifurcações. Sigo passagens por entre estranhas formações de vapor. São as minhas próprias entranhas. Essa é a única mística na qual ainda acredito. No passado dessas paragens — que agora nada mais dizem — um estrangulamento do tempo colapsou o eterno porvir, naquele que é. Observo a noite. Observo as estrelas. São tão belas! Mas estão ausentes. Por que nos abandonaram? São inextricáveis possibilidades de seres. Desdobramentos da existência. E não adianta lutar: habita-me o devaneio. Um remoinho sobre minha cabeça. (Não eram sete?)

 

 

 

 

 

 

Enquanto ela dorme: para estar contigo

 

 

para estar contigo...

desde que eu me levanto

carrego o coração comigo

para cima e para baixo

sigo assim: levo-o ao longo do dia

reflete o brilho do sol

naquilo que eu faço

deixo que dele escorra

e sempre que eu erro

eu que erro sempre

ele regenera a ferida

faz dela surgir o nOvo

qual cachoeira que brota

das serras verdes da alma

 

Nasceu dia desses sob a morada simples de um vernáculo zodíaco. A bicicleta que ela guia a transporta através de caminhos estreitos por entre os montes. Graduou-se nas faculdades ocultas da mente. Caminha de braços dados com os sete ventos. Dorme debaixo das árvores. Encanta-se à face atrevida do sol — a mais formosa sonhadora. Deleite é vê-la correndo faceira. Mil borboletas flanam volúveis enquanto ela dorme.

 

para exercer seu feitio

entoar a macumba em forma de espanto

à calada da noite

nas encruzilhadas da mente

 

 

 

 

 

 

4s cOis4s

 

 

O t4tO

tOc4r vOcê

O Olf4tO

4 4udiç4O

Ouvir vOcê

4 f4l4

O cimentO

4 4gu4

4 4rei4

4 m4téri4 d4 qu4l O tr4b4lh4dOr se renOv4

4 vid4

eu te 4mO

 

4 4legri4 ser4 mesmO especi4l

 

 

 

 

 

 

Anatomia entre dois saltos

 

 

O gato branco salta silencioso sobre a cadeira.

Observa profundamente os meus olhos

com aqueles OlhOs seus:

um verde e outro azul.

Depois ele deixa-se ir.

Lento,

sem medo,

como se nunca tivesse estado ali.

A cadeira ainda guarda o calor de seu corpo felídeo.

Sua arte do desvanecer.

A liberdade dele me diz muito:

da preguiça,

da coisa toda de não fazer,

do lamber-se cuidadoso e asseado.

Alvas felpas,

garras retráteis

e a cauda sinuosa.

Nada falam do que não foi.

Não se ocupam em espreitar o futuro

ou arrepender-se do que passou.

Fluem íntegras através do agora.

Vazam líquidas num caminhar sólido,

firme,

de um passo quieto e magro

de quem absorve a maciez do chão

e lhe devolve o salto em dobro.

 

 

 

 

 

 

Lili For-ever

 

 

de nosso últi-mo trago

coçam-me os dedos e sa-livam-me na boca

resquícios esmaecidos de seus lábios

 

aliás, confesso que sempre gostei dessa sensação

se acaso alguém

de índole since-ra

indagasse os motivos reais de tal contentamento

não esta ria mentindo

pois era batuta

 

é ver-dade que sua gargalhada

ainda me enrubes-ce a face

creio ter sido aluno exemplar

tanto foi assim que

naquela mesma noite

os respiros de sexo pululavam pelas veias

 

mas veja você como são as coisas,

nossa história quedará

perdida pelas vielas da memória

adormecida nas cinzas

seja como for

 

nos últimos tempos

creio que qualquer outro alucinógeno

lhe subtrairia a mesma reação

até agora me orgulha sua determinação

em contrariar o desengano

com a mesma desenvoltura de juventude

 

penso já ser hora de retribuir o favor

ao lado de Lili 

 

 

 

 

 

 

Da calvície feliz

 

 

nesse truque de mágica que é a vida

coelhos saltam da cartola

gentilmente

por que é então que você seria

irredutível

em suas convicções?

eles fluem brancos

plácidos, calmos, saltitantes

de felicidade por terem sido os escolhidos

para o espetáculo

da transubstanciação

para eles

— os coelhos —

tiro meu chapéu

 

 

 

 

 

 

Parêntese

 

 

esetnêrapparêntese

(parte intensa)

(para dentro de si)

(para-papa-pá-pá-pá)

(minha pequena)

(felicidade efêmera)

(há rede no repouso das sentenças)

(as palavras se desintegram em letras)

(paar seempr)

(quando venta)

 

 

 

 

 

 

Para pescar a lua

 

 

De um canto da sala

Salta a ideia perdida

A ideia semente da ideia

Tão distante quanto ausente

Momento

Será sempre a riqueza do agora

Parto feliz

Para pescar a lua

 

 

 

 

[imagens ©maria ibdah]

 

 
 

Jorge Xerxes (São João da Boa Vista/SP, 1971). Mantém o blogue Palavras Órfãs de Poesia: O que Restou desde 2008. "Cresci ao pé da Serra da Mantiqueira; por entre trilhas e cachoeiras; sempre em rota de colisão àquele verde inconcebível". Estudou por pouco mais de dez anos na Unicamp: "tinha o meu próprio ritmo de assimilar as coisas", diz com um sorriso enigmático no canto da boca. Interessa-se por tudo aquilo que nos passa desapercebido: "gosto de escrever sobre as coisas pequenas". Publicou As Cinquenta Primeiras Criaturas (2010); Para Pescar a Lua (2011); Trama e Urdidura (2012) e Jornada Rumo ao Sol (2015).