dia a dia de dodó

 

dodó cadastrou as nuvens

por densidade e contorno.

depois foi ao empório,

ao brechó,

ao karaokê com lámen,

na liberdade.


só então criou a norma universal
dos acontecimentos reais,
segundo a qual estes podem
ser classificados em três categorias:

os frutos do acaso,
os advindos da sorte
e os imponderáveis mesmo.

na tarde, dodó reafirmou ao cachorro
sua grave oposição
a que o dois mais dois
pleiteie apenas o quatro.

no banho, tubos de tinta
misturados aos xampus
tentam explicar o ruivo
de seus cabelos,
condição primordial
em sua brancura

de esverdear olhos azuis.

antes de dormir,
inventou um beijo

de boas noites,
na aba do nariz,

fez um abajur de lanterna
e disse a fórmula secreta

para ser feliz:

entre outras coisas,
contar ao travesseiro,

bem baixinho,
amanhã vão acontecer
coisas incríveis.

 

 

 

 

 

 

aula de desenho

 

 

desenha monstros figurativos

esse é o sacocheio, o full.

essa é a impaciência,

irrita de cássia.

esse é o caradenojo,

conhecido como desprezinho.

aquele é o abandono.

e o abandono é desolador.

 

risca vacas num brejo abstrato

e o brejo é tipo um céu

verdeazulando mangues marrons

cheios de vitórias-régias

regiamente habitadas

por sapos músicos

descolados sem moscas

com seus bojudos guarda-fungos.

 

faz uma série

de flores d'água,

de finos fios brancos

as ninphopheas

e anjos diurnos sem nuvens

disfarçados de passarinho.

acha o livro antiestresse para colorir

muito estressante.

 

então faz seus próprios outlines

de castelos como de xícaras

ou de flores como fadas,

naves mata-borrões furtando cor.

morde a língua e tem um jeito

cuidadoso de dizer "viu?"

ao fim das frases,

desenhando no sem par.

 

como se houvesse alguém ao lado

aprendendo, invisível, a desenhar.

 

 

 

 

 

 

últimas notícias de dodó

 

 

dodó fez uma lista

das primeiras pessoas

com as quais falou no dia,
só pra lembrar de noite,
quando for dormir.

 

enquanto fervia a água do chá,

dodó foi batizando as coisas

com nomes de gente:

leonardo para o açucareiro,

dona mirtes para a chaleira,

evandro para o microondas.

 

dodó tem um caderno

cheio de bichos gordinhos

e coleciona variações de pratos

de aparência branca:

ovo, banana, queijo, arroz, massa

banana, ovo, queijo, massa, arroz

queijo de novo

e tomatinho.

 

o caricaturista da feira

não conseguiu desenhar

a indesenhável dodó.

argumentou que ela possui

um rosto desafiador

e fez a scarlett johansson mesmo

para atender o cliente e pai.

 

dodó então sorriu.

e todos compreenderam enfim

o que o moço quis dizer.

 

 

 

 

 

 

poema da dodó

 

 

era uma boneca

era a princesinha,

não se dava com o dragão,

mas brincava de draguinha.

 

era uma menina

tão pequenininha,

não fazia natação,

praticava na tacinha.

 

era uma garota

dessas bem espertinhas

não prestava atenção,

prestava-se às atencinhas.

 

é uma linda moça

muito mais que filha minha

colocou o coração

muito além da couracinha.

 

 

 

 

 

 

ect&etc

 

 

esmalte de bolinha,

pintado mordendo a língua.

— pode coração no remetente?

— periga voltar pra você, filha.

 

avental bordado de cola branca,

vai de meias listradas ao correio:

— carimbo não, gente.

— moça, não tem selo?

 

cola as estampas imaginando a carta

com asas e pernas de pardal

— acho que prefiro fazer um pacote

— para pacote mais cinco selos, senhora.

 

não é a kombi hippie de flores

nem é o carteiro-voador.

— que dia vai chegar lá? sábado?

— sábado é o melhor dia.

 

correio, pacote não eletrônico

que gostaria de sê-lo.

 

 

 

 

 

 

i do love you

 

 

o que foi que só a dodó ela viu?

um camelo na mancha do granito?

não, o canário de canto mais bonito.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

seis golfinhos tomando coca-cola?

não, sereias sobre um colchão de mola.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

rato gordo comendo na cozinha?

não, estrelas jogando amarelinha.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

tempestade chegando na memória?

não, crianças pedindo mais história.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

um tenente marchando no quartel?

não, formigas num barco de papel.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

a piscina no balde de água fria?

não, meninos brincando de poesia.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

um peru em viagem pra natal?

não, galinha de rir passando mal.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

dois piolhos no coco do pivete?

não, relógio marcando dez pra sete.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

elefante brigando com a balança?

não, pinguins se chamando para a dança.

 

o que foi que só a dodó ela viu?

helicóptero pálido no ar?

não, o chico querendo passear.

 

 

 

 

 

 

esconde-esconde

 

 

se aquela floresta

é esta ou aquela,

flor que inda me resta,

nada diga a ela.

 

se aquela azaleia

bateu suas asas,

levou seu azar,

não conte pra léa.

 

se aquela vasilha

tem forma de vaso,

tem forma de ilha,

não vem mais ao caso.

 

se aquela taboa

na beira do rio,

habita a lagoa,

habita o vazio

 

o que mais importa

é que ela taboa.

 

 

 

 

 

 

isadora facts

 

 

sobre o pacífico:

viu? foi só o céu dar uma chance

que o  mar ficou muito azul.

 

sobre a vegetação da Califórnia:

parece muito o fundo do mar,

só que sem o mar.

 

sobre o big sur:

há um silêncio por trás.

e pelos lados e pela frente também...

 

sobre a advertência quando o vento subiu-lhe a saia:

supera, mãe.

todo mundo usa calcinha.

 

sobre as focas gigantes na areia:

a evolução não foi muito legal com elas,

mas elas estão superempenhadas em ser elas mesmas.

 

sobre a vida em geral:

tudo é muito fofinho as coisa.

 

 
 
 
 

estatuto do passarinho

 

 

                            (à isadora)

artigo 1
fica decretado que todas as jabuticabas
de todas as varandas do mundo
deverão ser reservadas aos passarinhos.

artigo 2
fica decretado que todo passarinho terá direito a uma varanda,
a uma jabuticabeira e a uma menina que, como ele,
acordará bem cedo para cuidar dos outros três.

artigo 3
fica decretado que todo passarinho
voa, avoa e avua e vai, por tudo isso,
ser sempre o mensageiro da menina no vento.

artigo 4
fica decretado que toda janela, inclusive as de apartamento,
estarão sempre abertas ao passarinho jabuticabeiro das meninas sem varanda.

parágrafo único - e a todos os outros passarinhos também.

artigo 5
fica decretado que os fios elétricos, as cercas de arame e as telas das varandas
doravante serão executados como pauta musical da partitura das melodias
que o desenho do pouso dos passarinhos determinar.

artigo 6
fica decretado que os direitos autorais
das melodias cantadas pelo passarinho serão revertidos integralmente
para a compra de ração para o gato da menina da varanda da jabuticabeira.

artigo 7
fica decretado que todo passarinho, alegria penada que é,
terá o direito inalienável de invadir, silenciar e paralisar qualquer reunião,
e terá poder de veto sobre qualquer enfoque que se assemelhe a um bodoque.

artigo 8
fica decretado o desaparecimento da palavra bodoque
de todos os dicionários de todas as línguas

parágrafo único - da palavra atiradeira também.

artigo 9
fica decretado que as árvores,
em sua maioria plantadas por passarinhos,
sejam reconhecidas como patrimônio plumário universal da humanidade.

artigo 10
fica decretado que todo e qualquer passarinho
passará a fazer parte de nossa humanidade.
e poderá comer até pedra, em vez de jabuticaba, se bem confiar nisso.

artigo 11
fica decretado que todo passarinho ocupará livremente sua jabuticabeira,
assim como a menina ocupará livremente sua varanda
nas tardes de chuva das cidades sem praças.

artigo 10
fica decretado que, de agora em diante,
na bandeira nacional, o verde passa a simbolizar a jabuticabeira;
o amarelo, o passarinho; e o azul, o olho da menina da varanda.

artigo 11
fica decretado que toda menina e todo poeta receberão um diploma
de ornitólogo jabuticabal juramentado para exercerem livremente suas funções
pelas varandas que bem entenderem, enquanto se entenderem menina e poeta.

artigo 12
fica decretado que toda casa que tiver varanda, jabuticabeira e menina
terá também passarinho livre que as visite e as isente do pagamento
de aluguel, iptu, condomínio e conta de água-que-passarinho-não-bebe.

parágrafo único - a norma se aplica a bosques, parques, quintais e que tais.

artigo final
fica afinal estabelecido que tudo aquilo que não puder ser dito

pela luz do sol e da lua na asa do passarinho
pela aterrissagem suave e assustada do passarinho na varanda,
pela safra atenta de olhos negros da jabuticabeira
ou pelo sorriso de poesia da menina-moça que por tudo se enamora
não terá, a partir de agora,
força de lei.

 

 

 

 

 

 

brisadora

 

 

risos evolados de acetona

rock in latas de refri

e cadernos e giletes e chicletes

diários de canetas lumicolor

 

abandonados em meio aos livros

tijolos, ela não sabe ainda

misturando-se na névoa do banho

ensurdecido pelo secador de cabelos

 

que cobre os sonhos desconexos

do que ela vai ser um dia

passam tardes transdormidas

mesmo quando não é domingo

 

irrita-se com a pinça e a persiana

sorri, se imagina uma salada de joaninhas

enquanto desliga o computador

passa o filtro solar tipo três dígitos

 

passa o lápis ao pé da pálpebra

passa o grifo no que virá

depois ela é quem passa

com o transcendente nos olhos

 

e o colete quase grená

de botões alaranjados

sobre o branco da blusa de malha

e maçã-verde nos cabelos

 

de úmido silvestre, orvalhados

têm espantosos furos pela calça

modelo metralhada no varal

agora ralha com a sandália

 

que não obedece, descombinada

depois do nada se encanta com o kiwi

por fora o assombro de veludo vivo

por dentro gemas de esmeralda

 

sai do labirinto quarto paradoxo

de pelúcias metálicas e headphones

flutuando cruza a sala

incomunicável alheia à gravidade

 

como um astronauta

impaciente avisa ao celular

enquanto retoca o batom que falta

que já está descendo

 

morde a fruta com calma implausível

reescolhe, colar, lenço, anel, pulseira

depois tira tudo da bolsa

e atira na penteadeira

 

e então se volta ainda indecisa

precisa e segura como um gato seria

distraída sem adornos

salvo a argola etíope bijuteria

 

despede-se das plantas da varanda

o cão se agita com o acontecimento

só então o elevador comanda

na direção de meu encantamento

 

mas antes de fechar a porta anda

linda, leve, pronta e muito alva

circunda-me de azul e de lavanda

e me beija a calva.

 

 

 

 

 

 

menina sem fio

 

 

adolesce à luz

do cristal líquido

uma pequena flor.

 

que realiza foto e síntese

em no máximo

140 caracteres.

 

tem aroma de chiclé de bola.

acentuadas notas de camomila

mas vai ver e é só xampu de maçã verde mesmo.

 

atravessa a rua

um tanto fora da faixa

enquanto o vento tenta corrigir

 

seu percurso diagonal

na trajetória difusa do vestido

de rastro wireless e wi-fi.

 

única, toma o coletivo.

e o toma de assalto

com sua doçura de abelhas.

 

zapeia, assentada à janela

tem o colo repleto de ícones

emotivos, caídos.

 

arrastou-se na noite sem sono

e agora cochila, a cara colada

no vidro do lotação.

 

sorri, talvez sonhe com bebês-panda

quem sabe com o beijo perdido

na evolução de um protesto.

 

é possível que perca o ponto

é provável que acorde a tempo

ninguém adivinha o seu quanto-como.

 

mistério estampado de apepês

ela vive a multidão solitária

da rede de boa, como diz.

 

mas como as flores e os pássaros

sabe a hora exata do piquenique

e a estação mais correta

 

de se desplugar do mundo

e de seu aparelho móvel 

virar uma bicicleta.

 

 

 

 

 

 

lava a jato

 

 

feito nuvem, a espuma branca e pedaçuda

colou nos vidros do carro.

afundada no banco de trás,

a menina teve um pouco de medo,

mas achou graça quando o pai,

ao volante imóvel adentrando a máquina,

começou a falar ao frentista que a comandava

com vozes de bolo, ervilha e pastel:

 

— paaaara, eu sinto coooócegas!

— seu fracote!

— barba e bigode, senhor?

— deixe o bigode, por favor.

— por gentileza, garçom, pode retirar o chantili, é que estou de regime...

— essas nuvens são falsas! salvem-nos, esse avião vai cair!

— fique tranquilo, esse jato é diabético e odeia algodão-doce.

— pronto, pronto. agora, sim! chegou a hora do grande marshmallow maluco adentrar o forno peludo.

— raios! vamos todos derreter no sabão!

— a menos que… eu… consiga... maldição, esqueci o meu canivete antitudo!

— diga a senha!

— diga a senha.

— errado! a senha não é mais essa!

— ué?

— ué, senha correta, pode passar!

— nave inimiga! atirar!

— não! flechas coloridas, não!

— são apenas flechas moles em formato de franja, paspalho!

— esperem, parem essa chuva ácida! ele é amigo!

— amigo de quem?

— do paspalho? — não, idiota, do cupcake de quatro rodas!

— nada disso! não vê que é apenas um dan top pelado! socorro!

— raios duplos e triplos, não consigo me livrar dessas cordas coloridas...

— oh, não, minha nossa senhora das duchas… jatos quentes!

— acalmem-se, amiguinhos, eu saí com o meu cachecol de estampa terrível.

— esperem só até ver isso! tomem água! e mais água! e mais isso!

— isso o quê?

— e eu sei lá? eu só sou a dubladora!

— minha nossa, apertem a tecla sapo!

— aquela peruca elétrica vai nos descabelar! a que faremos?

— ora, ora, ora, todo sapo já vem careca!

— ah... sabe que esse cafunezinho tá até gostoso?

— ora, que espécie de imbecil é você, não vê que são alien-indígenas?

— isso não existe, trapaceiro. cale-se de uma vez por todas!

— existe, sim, ora, são o índios que vieram do espaço, ué...

— sim, droga, é verdade! já vejo as penas do cocar girando na minha janela! depressa, liguem o anticafunezinho giratório!

— esfrega bem o bumbum, filho!

— não diga isso! acabou o sabonetão de carros, mãe!

— tudo bem, carropálida, usa xampu careca papai!

— mas isso não existe, trapaceira!

— existe sim, está escrito paraquedas no rótulo!

— raios múltiplos! estamos caindo, como faz para desligar essa coisa molhada? naaaaão!

— a batedeira disparou! socorro, o bolo vai passar do ponto, eu não quero descer torta!

— tudo bem, é só o líquidodeficardoido!

— oba! eu sempre quis ser vitamina!

— apertem os cintos, vamos fazer xixi na calça!

— ufo.

— você disse ufo ou ovni?

— eu disse ufa.

— ah, bom. ufa o quê?

— ora, não é o que dizem no final?

— no final do xixi?

— não, senhor capitão, no final da aventura!

— esperem! esquecemos a menina no banco de trás!

— oh, não, não, o monstro das tranças molhadas a raptou!

— eu estou aqui!

— ufa.

— ufa o quê?

— é mesmo, ufa o quê, menina?

— sei lá, eu sou só a dubladora...

 

 

 
[imagens ©andrea modica]
 
 
 
 
 

Marcílio Godoi nasceu em Araguari/MG. É arquiteto (UFMG, 1988) e jornalista (Cásper Líbero, 2004). Mestre em Crítica Literária (PUCSP, 2013), dá aulas de Comunicação Corporativa no GVPEC (FGVSP), desde 2010. Venceu o Grande Prêmio Cásper Líbero, em 2004, com o livro São Paulo Cidade Invisível.  Conquistou o Prêmio Barco a Vapor, da Fundação SM, em 2012, com o livro A inacreditável história do diminuto Sr. Minúsculo. É articulista da Revista da Língua desde 2009 e autor de Pequeno Dicionário Ilustrado de Palavras Invenetas (sobre neologismos na língua portuguesa). Trabalha na Memo Editorial com a produção de conteúdos para publicações diversas.