©oliver rath

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

quatro poemas para tocar no rádio

&

um para ser filmado

 

 

 

I

 

 

Dormir com Cartola, como seria?

Dormir com Cartola seria dormir

com Cartola, não de cartola.

Ser Dona Zica,

Primeira dama da Mangueira.

 

Dormir com cartola, como seria?

Pisar em folhas secas? Em ovos?

Se enfronhar na boemia?

 

Dormir com Cartola seria tirar

dez no samba-enredo.

Ser homenageado pela bateria.

 

Dormir com Cartola seria

ouvir as rosas?

Voltar ao jardim?

Ser provocado por um colibri,

um bem-te-vi?

 

Dormir com Cartola, como seria?

Ser cantado por Cazuza?

Ser cantado por Ney Matogrosso?

 

Dormir com Cartola seria usar

terno risca de giz.

Dormir com Cartola seria tirar

o chapéu para o mestre

sem nariz.

 

Seria usar um nariz artificial,

sobressalente.

Seria usar lentes.

 

Dormir com cartola é

coisa de bamba.

Samba de roda.

Feijoada de sábado.

 

Dormir com Cartola seria

a vida por um triz.

 

Dormir com Cartola, como seria?

Seria Mangueira.

Comissão de frente,

abre-alas, ala das baianas?

 

Dormir com Cartola seria

ala dos compositores.

Não seria Beija-flor, nem Salgueiro,

muito menos Imperatriz.

 

Seria acordar em São Paulo

num samba de Adoniran.

Seria dizer que besteira,

as rosas não falam.

Seria ser porta-estandarte.

Exalar um perfume roubado de ti.

Respirar sem nariz.

 

Dormir com cartola seria ser feliz.

Dormir com Cartola dormiria por ti.

 

 

 

 

 

 

II

 

 

Dormir com Tom

escapa

do som do fone

de ouvidos

do aparelho

de ouvir vários sons.

 

Como seria dormir

com Tom?

Com Tom Zé ou

Tom Jobim?

 

Com o Zé,

dormir em pé.

Com o Jobim,

dormir sem fim.

 

Como seria dormir

com Tom?

De bom tom seria

sempre.

Sempre um bom som.

 

Como seria dormir

com Tom?

 

 

 

 

 

Com ou sem batom?

Se com batom,

dormir com Zé,

para ficar sem batom

enquanto com ele

se dorme.

Para que o Tom

arranque o batom

de quem com ele dorme

enquanto com ele

esse alguém dorme.

 

Como seria dormir

com Tom?

Dormir sem batom,

com Jobim,

para ficar com ele

enquanto com ele

se dorme.

Para que o Tom

coloque o batom

em quem com ele dorme.

 

Como seria dormir

com Tom?

Qual seria o batom?

O não batom?

 

Batom de sons

com Tom Zé

um não batom.

 

Batom de tons

com Tom Jobim

batom sim.

 

Batom dos bons

com Zé e Jobim.

Sons e tons

para não dormir.

 

Dormir com tons

para não dormir.

Ir e vir de som e tom.

Entrar e sair de

Zé e Jobim.

 

Dormir com Tom

seria uma tentação.

Com Jobim,

inverno no verão.

 

Com Zé

tom de balbúrdia

e comoção.

 

Sons se despindo.

Maria Bonita

Lampião.

 

Com Tom Jobim,

sons se despedindo

passarim.

 

 

 

 

 

 

III

 

 

Comecei, na cabeça, a dormir

com Elis.

Como seria?

 

Seria andar na rua lado

a lado com você?

Te deixar louca?

Ficar louco?

Seria ficar atrás da porta?

Ter três filhos?

 

Morar na Cantareira,

numa casa de campo,

ter a esperança de óculos;

seria.

 

Dormir com Elis, como seria?

Cultivar um jardim

de livros

e discos.

 

Tomar chá de lírio.

Ter a voz jazzística.

Sofrer delírios.

 

Dormir com Elis, como seria?

Falsear o brilhante

para não ser roubado da alegria?

 

 

Acordar em plena melancolia?

Borrar o rímel no piano

do ex-marido?

 

O fino da bossa seria.

O fino da fossa.

O beco das garrafas.

O bêbado e o equilibrista.

 

Dormir com Elis, como seria?

Voar de helicóptero. Ser eliscóptero.

Submeter-se a um estetoscópio?

 

Dormir com Elis seria

dormir com Elis, não com Ella,

nem com Beatriz.

 

Ser atriz.

Atormentar os chatos de plantão.

Comprar pão na padaria.

 

Dormir com Elis, como seria?

Usar várias gírias.

Não ter papas na língua.

Ser mãe, mulher e artista

em toda geometria.

 

Dormir com Elis seria

não fugir da briga.

Ter a voz como instrumento.

Carteira de músico.

Registro de rainha.

Dormir com Elis, como seria?

Aparecer no mundo

junto à uma porção

de vagabundos.

 

Comer bons-bocados.

Passar por bons e maus bocados.

Fazer orgias.

 

Dormir com Elis seria acordar

apimentado.

Acordar de acordo com o dia.

 

Dormir com Elis seria coisa fina.

Parafina verde de vela de Oxóssi.

 

Dormir com Elis seria parceria.

Seria retrato em preto-e-branco?

Canção do Milton.

Canção do Gil.

Canção do Chico.

 

Dormir com Elis, como seria?

Ficar no corpo feito tatuagem.

Ficar no corpo feito bailarina.

 

Dormir com Elis seria ter

os músculos exaustos,

repousar nuas e cruas as vísceras.

Repousar farta, morta de cansaço.

 

 

Dormir com Elis seria

um banho de língua.

Começaria na cabeça.

Alastrar-se-ia até

os pés.

 

Dormir com Elis seria

ser esta mulher, esta menina.

Tirar a mesa.

Colocar a mesa.

 

Dormir com Ellis seria

ter companhia.

Se arrumar.

Se enfeitar.

 

Dormir com Elis seria

coisa dos deuses.

Dormir com Ellis

dormiria todos os dias.

 

 

 

 

 

 

IV

 

 

Dormir com Milton, como seria?

Seria dormir numa pia batismal?

Ter a alma pia?

Um sopro de vida que pia?

 

Dormir com Milton, como seria?

Seria Maria Maria?

Elis num trem azul de doralegria?

 

Dormir com Milton, como seria?

Hóstia consagrada. Faca amolada.

Pérola negra de pele brilhante

em voz & violão.

 

Dormir com Milton seriam

mil tons.

Diversas harmonias.

Religare. Relicário. Sacrário.

Magia.

 

Dormir com Milton, como seria?

Acordar num clube de esquina.

Viajar na boleia de caminhão.

 

Dormir com Milton seria

O Milagre dos Peixes.

A multiplicação da canção.

 

Dormir com Milton, como seria?

Acordar em Minas.

Ir parar no Japão.

 

Dormir com Milton seria

vestir e desvestir a batina.

Rodar olhos de S. João da Cruz.

 

Dormir com Milton seria

Deitar-se na cama de feno

de Maria.

 

Dormir com Milton seria

ter uma mística satisfação.

Seria ser o que seria,

o que será que será

de poesia.

 

Dormir com Milton, como seria?

Acordar na Missa Criola.

Chegar em África numa missão.

 

Dormir com Milton, como seria?

Ser a flor-da-pele a experiência

da febril fabricação.

 

Dormir com Milton seria

ser o gozo de Santa Tereza d'Ávila

no encontro de um clarão.

 

 

 

 

 

 

V

 

 

Dormir com Glauber

não me sai da cabeça.

Como seria?

Dormir com Glauber

é durma-se

com um barulho desses.

Um sonho na mão

um pesadelo na cabeça?

 

Dormir com Glauber

seria um transe?

Uma transa?

Acordar com Deus

e o Diabo

no travesseiro ao sol?

 

Dormir com Glauber

seria uma travessura

da crítica.

Uma doce transgressão

numa via marginal

de cidade macota.

 

Dormir com Glauber

seria acordar na Bahia.

Lavar escadarias

do Bonfim, beijar os pés

de Paulo Autran.

Beijar Jardel Filho

na boca.

Dormir com Glauber

seria uma insônia produtiva.

Vertigem em pleno dia.

Uma estrela do mar

numa grua.

Uma água viva

nas pupilas.

Uma direção de fotografia.

 

Dormir com Glauber

seria o passar mal

da crítica.

Uma digressão da grafia.

 

Dormir com Glauber

seria a epifania

das epifanias.

Lençol e fronha

livres de pornografia.

Livres de hipocrisias.

Crise de hipopótamo.

Hipotálamo de colombina.

 

Dormir com Glauber

seria colocar o poema

em riste.

Passar fio dental

para não sofrer

no dentista.

 

Dormir com Glauber

seria o comer

da própria carne

a hóstia canibalista

de todos os dias.

 

 

 

dois poemas expurgados da série dormires

 

 

1

 

 

Dormir com Luciano,

Como seria?

Dormir com Luciano

seria entubar-me

numa tuba?

Rolar um tonel

de histórias?

Dormir com Luciano

seria verter água clara,

não turva.

Viver numa cuba.

Coagular a palavra

cloaca

com pinguinhos

de pintinhas de sangue.

Debuxar gráficas.

Dormir com Luciano

Seria afirmativa

e pergunta.

Elogiar os retratos.

Ser retrátil

refratável à mentira.

Dormir com Luciano,

como seria?

Seria cosmética,

Farmácia e topografia.

Ser

Sério ficcional

grave proposital.

Cínica dormida

com um grego da Síria.

Dormir com Luciano

Seria sofística formicida.

Dormir com Luciano

seria montar uma banca,

Atender numa clínica.

Morrer da febre dos

discursos demonstrativos.

Ser enterrado sem apelativos

na febre deliberativa.

Como seria dormir

com Luciano?

Ser amigo?

Morar em Samósata?

Ser historiador ou bandido?

Banido de Abderite.

Recitar jambos,

Engolir liras.

Dormir com Luciano seria

encantar cobras hindus?

Acordar na mesopotâmia?

Como seria dormir

com Luciano?

Fazer guerras de Europo,

Ter pés de Aquiles,

Escudo de Hércules,

ombros de Atlas.

Ser exclusivo incluído.

Ter rombos nos olhos

causados por feridas.

Dormir com Luciano

seria arder por Cibele?

Viver em cidadela sitiada

por amarelos silvestres?

Viver flechado por setas

celtas de matar elefantes.

Dormir com Luciano

seria acordar numa écfrase

evidentíssima.

Pôr do sol da identidade

de um natural de uma cidade.

Dormir com Luciano

seria nascer estrangeiro

em terra extradita?

Extraditar identidades

malditas.

Dormir com Luciano

seria acordar medianita?

Dormir com Luciano

Seria acordar num congresso

De cínicos.

Um tonel de Diógenes

No centro do palco

E todos os inscritos

Com suas bocas sem línguas.

Dormir com Luciano

Seria pagar a língua.

 

 

 

 

 

 

2

 

 

Dormir com Caetano,

como seria?

Seria dormir

com o mano?

Seria incesto?

Dormir num cesto,

numa sexta-feira.

Dormir com Caetano

seria fazer oferenda

à Iemanjá.

Comer um manjar.

Lamber beiços

depois do jantar.

Dormir com Caetano

seria comer manga.

Chupar caju,

cajá.

no araçá azul.

Dormir com Caetano,

como seria?

Seria sexo.

Empiria fantasia.

Corpo inteiro roxo.

Seria amor roxo

cor de rola.

Dormir com Caetano

quereria.

Não quereria.

Dormir com Caetano,

como seria?

Podre poder?

Queres querer?

Coisa séria?

Fina estampa?

Transa.

Nova ordem mundial.

Dormir com Caetano,

como seria?

Dormir com Caetano

seria acordar

no Rio de Janeiro,

em São Paulo, na Bahia.

Dormir com Caetano

seria matinê do Olímpia.

Dormir com Caetano

seria acordar

a onça caetana?

Dançar na ventania?

Dormir com Caetano

seria a cara da gia.

Seria meninomenina.

Guriguria.

Girinogirina.

Dormir com Caetano

Seria giro, gíria.

Dormir com Caetano,

como seria?

Passar a língua

estrangeira

na língua reconhecida.

Subverter salivas.

Ter olheiras

por falta de dormidas.

Dormir com Caetano

seria passar a noite

mal dormida.

Comer uma comida

de santo,

uma comida

bem comida.

Dormir com Caetano,

como seria?

Dormir com caetano

não conseguiria.

Com Caetano

não se dorme.

Samba e amor

até mais tarde.

Com Caetano

apenas treparia.

Não dormiria,

nem me deitaria.

Dormir com Caetano

ninguém dormiria.

Organizaria movimento.

Tomaria uma coca-cola.

Trançaria pernas

de Garrincha.

Vestiria Carmem Miranda

com rocks, rocks, rocks.

Tocaria um fox.

Sairia a trote num cavalo

pela Avenida Paulista.

Dormir com Caetano

seria cantar

em outra freguesia.

Rezar nas escadarias

do Senhor do Bom-fim.

Dormir com Caetano

seria o fim.

Dormir com Caetano

não é pra mim.

Com Caetano escalaria

o Everest de toda poesia.

Derreteria geleiras

de sorveterias.

Lamberia crias.

 

 

 

setembro, 2015

 

 

Eduardo Sinkevisque. Poeta, ensaísta, professor de literatura brasileira (literatura colonial). Doutor em Letras: literatura brasileira pela FFLCH/USP. Escreve o blog menos: blogmenos.tumblr.com.

 

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