quatro poemas para tocar no rádio
&
um para ser filmado
I
Dormir com Cartola, como seria?
Dormir com Cartola seria dormir
com Cartola, não de cartola.
Ser Dona Zica,
Primeira dama da Mangueira.
Dormir com cartola, como seria?
Pisar em folhas secas? Em ovos?
Se enfronhar na boemia?
Dormir com Cartola seria tirar
dez no samba-enredo.
Ser homenageado pela bateria.
Dormir com Cartola seria
ouvir as rosas?
Voltar ao jardim?
Ser provocado por um colibri,
um bem-te-vi?
Dormir com Cartola, como seria?
Ser cantado por Cazuza?
Ser cantado por Ney Matogrosso?
Dormir com Cartola seria usar
terno risca de giz.
Dormir com Cartola seria tirar
o chapéu para o mestre
sem nariz.
Seria usar um nariz artificial,
sobressalente.
Seria usar lentes.
Dormir com cartola é
coisa de bamba.
Samba de roda.
Feijoada de sábado.
Dormir com Cartola seria
a vida por um triz.
Dormir com Cartola, como seria?
Seria Mangueira.
Comissão de frente,
abre-alas, ala das baianas?
Dormir com Cartola seria
ala dos compositores.
Não seria Beija-flor, nem Salgueiro,
muito menos Imperatriz.
Seria acordar em São Paulo
num samba de Adoniran.
Seria dizer que besteira,
as rosas não falam.
Seria ser porta-estandarte.
Exalar um perfume roubado de ti.
Respirar sem nariz.
Dormir com cartola seria ser feliz.
Dormir com Cartola dormiria por ti.
II
Dormir com Tom
escapa
do som do fone
de ouvidos
do aparelho
de ouvir vários sons.
Como seria dormir
com Tom?
Com Tom Zé ou
Tom Jobim?
Com o Zé,
dormir em pé.
Com o Jobim,
dormir sem fim.
Como seria dormir
com Tom?
De bom tom seria
sempre.
Sempre um bom som.
Como seria dormir
com Tom?
Com ou sem batom?
Se com batom,
dormir com Zé,
para ficar sem batom
enquanto com ele
se dorme.
Para que o Tom
arranque o batom
de quem com ele dorme
enquanto com ele
esse alguém dorme.
Como seria dormir
com Tom?
Dormir sem batom,
com Jobim,
para ficar com ele
enquanto com ele
se dorme.
Para que o Tom
coloque o batom
em quem com ele dorme.
Como seria dormir
com Tom?
Qual seria o batom?
O não batom?
Batom de sons
com Tom Zé
um não batom.
Batom de tons
com Tom Jobim
batom sim.
Batom dos bons
com Zé e Jobim.
Sons e tons
para não dormir.
Dormir com tons
para não dormir.
Ir e vir de som e tom.
Entrar e sair de
Zé e Jobim.
Dormir com Tom
seria uma tentação.
Com Jobim,
inverno no verão.
Com Zé
tom de balbúrdia
e comoção.
Sons se despindo.
Maria Bonita
Lampião.
Com Tom Jobim,
sons se despedindo
passarim.
III
Comecei, na cabeça, a dormir
com Elis.
Como seria?
Seria andar na rua lado
a lado com você?
Te deixar louca?
Ficar louco?
Seria ficar atrás da porta?
Ter três filhos?
Morar na Cantareira,
numa casa de campo,
ter a esperança de óculos;
seria.
Dormir com Elis, como seria?
Cultivar um jardim
de livros
e discos.
Tomar chá de lírio.
Ter a voz jazzística.
Sofrer delírios.
Dormir com Elis, como seria?
Falsear o brilhante
para não ser roubado da alegria?
Acordar em plena melancolia?
Borrar o rímel no piano
do ex-marido?
O fino da bossa seria.
O fino da fossa.
O beco das garrafas.
O bêbado e o equilibrista.
Dormir com Elis, como seria?
Voar de helicóptero. Ser eliscóptero.
Submeter-se a um estetoscópio?
Dormir com Elis seria
dormir com Elis, não com Ella,
nem com Beatriz.
Ser atriz.
Atormentar os chatos de plantão.
Comprar pão na padaria.
Dormir com Elis, como seria?
Usar várias gírias.
Não ter papas na língua.
Ser mãe, mulher e artista
em toda geometria.
Dormir com Elis seria
não fugir da briga.
Ter a voz como instrumento.
Carteira de músico.
Registro de rainha.
Dormir com Elis, como seria?
Aparecer no mundo
junto à uma porção
de vagabundos.
Comer bons-bocados.
Passar por bons e maus bocados.
Fazer orgias.
Dormir com Elis seria acordar
apimentado.
Acordar de acordo com o dia.
Dormir com Elis seria coisa fina.
Parafina verde de vela de Oxóssi.
Dormir com Elis seria parceria.
Seria retrato em preto-e-branco?
Canção do Milton.
Canção do Gil.
Canção do Chico.
Dormir com Elis, como seria?
Ficar no corpo feito tatuagem.
Ficar no corpo feito bailarina.
Dormir com Elis seria ter
os músculos exaustos,
repousar nuas e cruas as vísceras.
Repousar farta, morta de cansaço.
Dormir com Elis seria
um banho de língua.
Começaria na cabeça.
Alastrar-se-ia até
os pés.
Dormir com Elis seria
ser esta mulher, esta menina.
Tirar a mesa.
Colocar a mesa.
Dormir com Ellis seria
ter companhia.
Se arrumar.
Se enfeitar.
Dormir com Elis seria
coisa dos deuses.
Dormir com Ellis
dormiria todos os dias.
IV
Dormir com Milton, como seria?
Seria dormir numa pia batismal?
Ter a alma pia?
Um sopro de vida que pia?
Dormir com Milton, como seria?
Seria Maria Maria?
Elis num trem azul de doralegria?
Dormir com Milton, como seria?
Hóstia consagrada. Faca amolada.
Pérola negra de pele brilhante
em voz & violão.
Dormir com Milton seriam
mil tons.
Diversas harmonias.
Religare. Relicário. Sacrário.
Magia.
Dormir com Milton, como seria?
Acordar num clube de esquina.
Viajar na boleia de caminhão.
Dormir com Milton seria
O Milagre dos Peixes.
A multiplicação da canção.
Dormir com Milton, como seria?
Acordar em Minas.
Ir parar no Japão.
Dormir com Milton seria
vestir e desvestir a batina.
Rodar olhos de S. João da Cruz.
Dormir com Milton seria
Deitar-se na cama de feno
de Maria.
Dormir com Milton seria
ter uma mística satisfação.
Seria ser o que seria,
o que será que será
de poesia.
Dormir com Milton, como seria?
Acordar na Missa Criola.
Chegar em África numa missão.
Dormir com Milton, como seria?
Ser a flor-da-pele a experiência
da febril fabricação.
Dormir com Milton seria
ser o gozo de Santa Tereza d'Ávila
no encontro de um clarão.
V
Dormir com Glauber
não me sai da cabeça.
Como seria?
Dormir com Glauber
é durma-se
com um barulho desses.
Um sonho na mão
um pesadelo na cabeça?
Dormir com Glauber
seria um transe?
Uma transa?
Acordar com Deus
e o Diabo
no travesseiro ao sol?
Dormir com Glauber
seria uma travessura
da crítica.
Uma doce transgressão
numa via marginal
de cidade macota.
Dormir com Glauber
seria acordar na Bahia.
Lavar escadarias
do Bonfim, beijar os pés
de Paulo Autran.
Beijar Jardel Filho
na boca.
Dormir com Glauber
seria uma insônia produtiva.
Vertigem em pleno dia.
Uma estrela do mar
numa grua.
Uma água viva
nas pupilas.
Uma direção de fotografia.
Dormir com Glauber
seria o passar mal
da crítica.
Uma digressão da grafia.
Dormir com Glauber
seria a epifania
das epifanias.
Lençol e fronha
livres de pornografia.
Livres de hipocrisias.
Crise de hipopótamo.
Hipotálamo de colombina.
Dormir com Glauber
seria colocar o poema
em riste.
Passar fio dental
para não sofrer
no dentista.
Dormir com Glauber
seria o comer
da própria carne
a hóstia canibalista
de todos os dias.
dois poemas expurgados da série dormires
1
Dormir com Luciano,
Como seria?
Dormir com Luciano
seria entubar-me
numa tuba?
Rolar um tonel
de histórias?
Dormir com Luciano
seria verter água clara,
não turva.
Viver numa cuba.
Coagular a palavra
cloaca
com pinguinhos
de pintinhas de sangue.
Debuxar gráficas.
Dormir com Luciano
Seria afirmativa
e pergunta.
Elogiar os retratos.
Ser retrátil
refratável à mentira.
Dormir com Luciano,
como seria?
Seria cosmética,
Farmácia e topografia.
Ser
Sério ficcional
grave proposital.
Cínica dormida
com um grego da Síria.
Dormir com Luciano
Seria sofística formicida.
Dormir com Luciano
seria montar uma banca,
Atender numa clínica.
Morrer da febre dos
discursos demonstrativos.
Ser enterrado sem apelativos
na febre deliberativa.
Como seria dormir
com Luciano?
Ser amigo?
Morar em Samósata?
Ser historiador ou bandido?
Banido de Abderite.
Recitar jambos,
Engolir liras.
Dormir com Luciano seria
encantar cobras hindus?
Acordar na mesopotâmia?
Como seria dormir
com Luciano?
Fazer guerras de Europo,
Ter pés de Aquiles,
Escudo de Hércules,
ombros de Atlas.
Ser exclusivo incluído.
Ter rombos nos olhos
causados por feridas.
Dormir com Luciano
seria arder por Cibele?
Viver em cidadela sitiada
por amarelos silvestres?
Viver flechado por setas
celtas de matar elefantes.
Dormir com Luciano
seria acordar numa écfrase
evidentíssima.
Pôr do sol da identidade
de um natural de uma cidade.
Dormir com Luciano
seria nascer estrangeiro
em terra extradita?
Extraditar identidades
malditas.
Dormir com Luciano
seria acordar medianita?
Dormir com Luciano
Seria acordar num congresso
De cínicos.
Um tonel de Diógenes
No centro do palco
E todos os inscritos
Com suas bocas sem línguas.
Dormir com Luciano
Seria pagar a língua.
2
Dormir com Caetano,
como seria?
Seria dormir
com o mano?
Seria incesto?
Dormir num cesto,
numa sexta-feira.
Dormir com Caetano
seria fazer oferenda
à Iemanjá.
Comer um manjar.
Lamber beiços
depois do jantar.
Dormir com Caetano
seria comer manga.
Chupar caju,
cajá.
no araçá azul.
Dormir com Caetano,
como seria?
Seria sexo.
Empiria fantasia.
Corpo inteiro roxo.
Seria amor roxo
cor de rola.
Dormir com Caetano
quereria.
Não quereria.
Dormir com Caetano,
como seria?
Podre poder?
Queres querer?
Coisa séria?
Fina estampa?
Transa.
Nova ordem mundial.
Dormir com Caetano,
como seria?
Dormir com Caetano
seria acordar
no Rio de Janeiro,
em São Paulo, na Bahia.
Dormir com Caetano
seria matinê do Olímpia.
Dormir com Caetano
seria acordar
a onça caetana?
Dançar na ventania?
Dormir com Caetano
seria a cara da gia.
Seria meninomenina.
Guriguria.
Girinogirina.
Dormir com Caetano
Seria giro, gíria.
Dormir com Caetano,
como seria?
Passar a língua
estrangeira
na língua reconhecida.
Subverter salivas.
Ter olheiras
por falta de dormidas.
Dormir com Caetano
seria passar a noite
mal dormida.
Comer uma comida
de santo,
uma comida
bem comida.
Dormir com Caetano,
como seria?
Dormir com caetano
não conseguiria.
Com Caetano
não se dorme.
Samba e amor
até mais tarde.
Com Caetano
apenas treparia.
Não dormiria,
nem me deitaria.
Dormir com Caetano
ninguém dormiria.
Organizaria movimento.
Tomaria uma coca-cola.
Trançaria pernas
de Garrincha.
Vestiria Carmem Miranda
com rocks, rocks, rocks.
Tocaria um fox.
Sairia a trote num cavalo
pela Avenida Paulista.
Dormir com Caetano
seria cantar
em outra freguesia.
Rezar nas escadarias
do Senhor do Bom-fim.
Dormir com Caetano
seria o fim.
Dormir com Caetano
não é pra mim.
Com Caetano escalaria
o Everest de toda poesia.
Derreteria geleiras
de sorveterias.
Lamberia crias.
setembro, 2015
Eduardo Sinkevisque. Poeta, ensaísta, professor de literatura brasileira (literatura colonial). Doutor em Letras: literatura brasileira pela FFLCH/USP. Escreve o blog menos: blogmenos.tumblr.com.
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