O SOL NASCENDO NO POENTE DO NADA

 

 

Para Thaiane Rampazo

 

Lama, confusão, dores que não podem ser sentidas apenas lendo um pedaço de papel, a não ser, se elas forem escritas com sangue e lágrimas. Com um pedaço do coração encharcado por um sentimento à deriva de qualquer orgulho. Ficar nu diante do riso de quem não acredita mais no amor. De quem quer ver apenas o seu barco que atravessa o inferno da incredulidade afogar-se junto com o capitão.

"Tristeza não paga dívida, viu?".

Levantei os olhos e eles viram aquela figura de baixa estatura e de corpo consistente à base de gordura e um pouco de ironia. Usava os cabelos presos fazendo a testa ficar esticada como o couro de uma vaca morta. No rosto, um par de óculos moldurava a cara, sempre com um sorriso na boca, junto com uma sentença popular dançando em meio à língua e os dentes.

"Não estou triste, estou apenas com um pouco de sono. Não dormi muito bem à noite", menti.

"Ah... mas essa carinha não é de quem tá com sono não... eu acho que é carinha de quem está apaixonado e não tá sendo correspondido".

Fiquei um tempo pensando no que responder. Direcionei os olhos pra baixo e depois os direcionei no crachá daquela criatura, onde tinha um nome e a função: Célia — auxiliar de enfermagem.

"E por quem eu estaria apaixonado, Célia, tem algum palpite?". "Ah... não sei, mas que você tá apaixonado, isso você tá sim, eu conheço a cara de gente apaixonada, e posso apostar com toda certeza que o meu palpite está mais certo do que essa chuva que tá caindo aí fora".

Outro momento de reflexão. Parecia uma disputa de cabo de guerra, um instante a corda estava do lado dela, em outro, do meu.

"Só estou com sono, tem café lá na cozinha? Talvez um bom café me deixe um pouco menos sonolento e com a cara menos apaixonada". Nova ironia, enquanto caminhava até a cozinha que ficava no final de um corredor apertado. Abri a porta e lá estava o bando agrupado em meio ao aperto daquele cômodo que abrigava a geladeira, um fogão e a mesinha ao lado da porta.

"Meninas, o Arnaldo não tá com cara de apaixonado que não foi correspondido?" Célia anunciou para as agentes, enquanto eu engolia o café, junto com uma vontade de esganar aquele pescoço gordo.

"Tá sim..." disseram em coro.

Fiquei acuado por aquele bando de mulheres curiosas e bisbilhoteiras enchendo o meu saco, mas fiz de conta que não era comigo apesar de achar que apenas fazer de conta que não era comigo, não resolveria de todo o problema. Limitei-me apenas a erguer novamente a xícara de café até a boca.

"Isso na sua mão é uma aliança?". Betti perguntou, pegando na minha mão e mostrando-a como se ela fosse um troféu.

"Como você mesma pode ver". Respondi, sem muito entusiasmo.

Aí foi uma avalanche de perguntas.

Norma: "Quantos anos tem a sua esposa?".

"Vinte e dois".

Sara: "Vocês têm casa própria ou pagam aluguel?".

"Nenhum dos dois".

Tânia: "Você gosta dela".

"Mais do que qualquer coisa".

Betti: "Então, por que estão separados?".

"Não é da sua conta".

Vanda: "Você é sempre mal-educado ou só está sendo agora?".

"Minha educação não tem nenhuma convenção. Dou um determinado tratamento para cada um conforme também o recebo".

Roberta: "Mas agora você está sendo mal educado".

"Não, estou na defensiva".

Rosa: "Você acha que nós queremos o seu mal?".

"Depende, o que é o mal pra você?".

A porta foi aberta, Célia entrou na cozinha com as mãos cheias de consultas que haviam sido liberadas. Foi o soar do gongo. Fui sentar no meu canto esperando o próximo round. A chuva começava a dar uma trégua. Gotas pesadas já não caíam sobre o telhado.

Célia foi distribuindo as guias conforme a micro área de trabalho de cada Agente de Saúde. Aquilo me deixou mais tranquilo, pois elas tinham parado por um instante de aporrinhar a minha cabeça com aquele bando de perguntas cansativas que só serviam pra especular sobre a minha vida.

"Esse eletrocardiograma aqui é de quem?" Célia perguntou, segurando-o na mão.

Uma das Agentes deu uma olhada.

"Não é meu", respondeu.

Outra, idem.

Betti pegou a guia e leu o endereço em voz alta.

"Rua das Cinzas, 113, Alvamar II, lá no barrão".

A Agente responsável por aquela área, ainda não tinha sido contratada, ou seja, isso significava que aquele eletrocardiograma, que era tão demorado pra ser liberado pela secretaria de saúde, e que tinha de ser entregue para que o paciente pudesse ser clinicado no outro dia, poderia dançar.

"Esse endereço fica mais próximo da área da Norma", Tânia disse, segurando a barra da longa saia preta que usava.

Norma olhou seus sapatos branquinhos que havia comprado em alguma loja especializada em roupas pra enfermeiros e médicos, e não foi nem um pouco complacente.

"Deus me livre que eu vou descer naquele barrão. Meu pé vai ficar todo cheio de lama, esse endereço nem fica na minha micro área".

"Mas é pra amanhã", disse Betti, tentando convencê-la.

"Não vou colocar meu pezinho no barro, de jeito nenhum".

"Não tem um telefone?" Rosnou a Agente Rosa.

"Se lá não tem nem asfalto, muito menos telefone". Respondeu Vanda.

Aquilo foi me dando raiva. Um sentimento que eu não sabia descrever com exatidão. Aquelas vozes foram se misturando com as gotas da chuva, que lentamente, estavam parando de cair do céu. A sinfonia, agora, era do barulho da enxurrada descendo pela sarjeta em direção a algum bueiro.  Olhei pra fora e vi o tempo passando como num relógio maluco, onde os ponteiros seguiam na sincronia de várias batidas cardíacas, pulsações desesperadas que falavam no ouvido de Arnaldo Batista: "Vamos lá cara, a pessoa que está precisando desse eletrocardiograma só está esperando você levantar o rabo dessa cadeira pra ter um maldito dia feliz".

"Me dá esse troço aí", eu disse, arrancando a guia da mão de Betti.

Célia deu um sorriso e ficou olhando pra minha cara de apaixonado abandonado, e com as mãos juntas, como uma santa em posição de contemplação e devoção, disse:

"Eu sabia que você iria, eu nunca me engano com as pessoas, logo que vi você, eu sabia que você tinha bom coração".

Bom coração? Ok.

As Agentes ficaram em silêncio. Eu também não disse nada. Limitei-me apenas a fechar a porta atrás de mim e encarar a longa fila de pessoas que esperavam em pé, no corredor, para serem atendidas por um dos profissionais de saúde.

Parei um instante na porta do "matadouro" e vi uma folha descer pela sarjeta como um barquinho rumo à boca do bueiro do inferno, para depois meter o pé na lama.

As casas ao longo do caminho eram tristes na aparência rude e abandonada que tinham, mas sempre havia uma pessoa com um sorriso no rosto executando alguma tarefa doméstica. Quando cheguei ao limite do asfalto deparei-me com o enorme mar de lama que cobria o chão como uma gelatina marrom gigantesca. Alguns pingos começaram a despencar do céu, mas logo pararam, para o meu alívio. Peguei a guia de consulta e fui procurando o tal endereço. Era uma verdadeira merda, além do maldito bairro não possuir um pedaço de asfalto, a maioria das ruas não tinha placa de identificação, e outras, nem o número tinham. Levei um escorregão e quase caí no chão. Praguejei contra tudo e contra todos, e depois que fiquei mais calmo, bateu um arrependimento e botei a cabeça pra esfriar. Fui até uma mercearia que ficava num avenidão com lama saindo pelos bueiros e encontrei um mapa do bairro colado na parede, nem mesmo naquela porcaria tinha o nome da rua que eu procurava.

"Sabe onde mora Lúcio das Neves?". Perguntei pro cara atrás do balcão da mercearia.

Ele retirou a bunda do banco em que estava sentado com a velocidade de uma lesma apostando corrida com um coelho, e com a boca sonolenta, disse que tinha um cara, encanador, que poderia conhecer essa pessoa, e que se eu fosse até lá, ele provavelmente me ajudaria a achar o endereço dele.

Desci até a tal casa, e quando cheguei lá, a aparência era algo de desolador. A entrada da casa tinha uma cerca feita à base de um monte de ripas de madeira que, provavelmente, foram pegas em algum entulho cheio de ratos e baratas. Tinha uma placa escrita à mão na parede da casa: DONIZETE-ENCANADOR.

Bati palmas e uma mulher jovem e negra abriu uma das janelas de madeira e ficou um tempo olhando pra minha cara. Fez um sinal pra que eu esperasse um instante. Abriu a porta da casa e eu pude ver o enorme rastro de barro que vinha de dentro para fora. Galinhas ciscavam ao redor da lama e um caminho de tábuas conduziu meus passos até a porta.

"Bom dia, meu nome é Arnaldo Batista, sou Agente de Saúde, estou tendo problemas pra achar uma pessoa que precisa receber essa guia médica, fui até uma mercearia, lá em cima, na avenida, e o proprietário disse que o encanador que mora aqui poderia me ajudar a achar o endereço".

Ela ficou me olhando por um tempo e abaixou o olhar. Parecia que sentia vergonha de me encarar.

"É o meu pai, mas ele não tá não".

Duas galinhas brigavam por uma minhoca.

"Você sabe me dizer se tem alguém aqui por perto que conheça essa pessoa, Lúcio das Neves?"

Ela olhava pro chão.

"Lá no final da rua, na última casa, tem uma senhora que mora aqui no bairro. É a moradora mais antiga daqui. Ela conhece todo mundo que mora aqui".

Agradeci e saí feito uma bala em direção ao final da rua. Levei mais um escorregão, mas dessa vez, mantive a boca longe das blasfêmias anteriores.

Era uma casa verde com um portão de ferro todo enferrujado. Portas, janelas, tudo estava fechado. Um profundo desânimo começou a pesar sobre mim. Sentia-me como uma barata tonta, pra lá e pra cá. Imaginava que numa hora daquela as Agentes de Saúde ainda deviam estar lá no posto de saúde, sentadas, esperando dar a hora do almoço pra pularem fora. Tive vontade de começar a gritar o mais alto que eu pudesse: "LÚCIO DAS NEVES, ONDE DIABOS VOCÊ ESTÁ?"

Pensei em desistir, mas algo dentro de mim dizia que não, que se eu desistisse, pensei comigo, não seria melhor do que Norma, com seus sapatinhos brancos que não podiam tocar a lama da miséria humana.

"O que você quer?". Uma voz atrás de mim me interrogou.

Olhei pra casa e não vi nada. Só aquela fotografia isolada e com aspecto de um filme de terror do terceiro mundo.

"O que você quer?". Ouvi novamente.

Pude ver apenas o desenho dos olhos de uma pessoa pela fresta de uma pequena janela. A janela de uma casa que parecia um abrigo de guerra. Não abriu mais do que uns poucos centímetros. Parecia um diálogo com um fantasma.

"Bom dia, meu nome é Arnaldo, Arnaldo Batista, sou Agente de Saúde e estou procurando uma pessoa que precisa muito receber essa guia de liberação para um eletrocardiograma. Preciso encontrá-lo hoje e entregar isso, porque o exame é pra amanhã. É muito difícil um exame desses ser liberado novamente sem esperar uma eternidade".

A janela foi aberta mais alguns centímetros.

"Como é o nome da pessoa?". O fantasma perguntou.

"Lúcio das Neves".

Mais alguns centímetros de abertura.

Pude ver que era uma mulher velha. Também era negra e usava um lenço amarrado sobre a cabeça.

"Não tenho certeza, mas faz duas semanas que uma mulher e o filho mudaram de São Paulo, pra cá, em Sarandi. Você desce até a última rua do bairro, quando chegar lá, você vai seguir sempre por ela, reto, até o final, suba duas ruas e vire à direita. Lá você vai encontrar um prédio abandonado, era um antigo bar, agora é a casa dessas pessoas".

Fiquei olhando por um tempo a visão espantosa do fantasma.

"Ouviu?".      

Desci até o final da rua e só depois me lembrei que não havia agradecido pela dica. O final do bairro terminava numa lavoura de soja, que era coberta por grossos cabos de energia, sustentados por altíssimas torres de ferro, como gigantes solitários conduzindo energia elétrica até uma subestação que ficava lá em cima, no começo do Alvamar II.

O prédio "abandonado" tinha várias infiltrações. As duas portas de latão estavam fechadas. O número 113 estava marcado a carvão ao lado de uma delas. Fui até os fundos do prédio, lá, encontrei uma portinha, também de latão. Parei de frente pra portinha e bati palmas. Uma garoa fina descia do céu, devagarzinho...

"Sim...".

Uma mulher saiu do prédio. Tinha os cabelos crespos e bem curtos, e era de uma magreza cadavérica. Parecia que não via um bom bife fazia um tempão.

"Sou Agente de Saúde, vim trazer essa guia de liberação de um eletrocardiograma. Lúcio das Neves mora aqui?".

"Lúcio das Neves é meu filho. Lúcio... tem um moço querendo falar com você, vem aqui".

Ficamos um tempo esperando, e quando Lúcio apareceu senti que meu esforço, enfim, não tinha sido em vão. Lúcio era um rapaz que aparentava ter uns vinte e cinco anos, também magro como uma caveira. Tinha a aparência igual a da Criatura da Lagoa Negra, de Jack Arnold. Crostas grossas de feridas cobriam seus braços e pernas, e ele respirava com dificuldade. Tinha uma cara tão representada por uma mescla de piedade e desolação, que nenhum lirismo jeca poderia camuflar aquela cena. Estiquei a mão entregando a guia para Lúcio, e não disse nada, mais nada. Guardei apenas seu olhar de agradecimento como há muito tempo eu não via no rosto de uma pessoa, e muito menos no meu.

Segui andando no meio da lama sentindo por várias vezes o meu pé afundar naquela gelatina marrom. Eu estava encharcado e com sentimento de ter feito um bom trabalho. Estava encharcado e feliz. 

Quando cheguei ao asfalto limpei meus pés, mas havia tanto barro acumulado neles, que boa parte permanecia grudada no solado. No matadouro, a fila de pessoas não era nem um terço do momento em que eu havia saído. Passei pela lateral do posto e cheguei ao fundo dele. Abri a porta que dava acesso à cozinha. Estava vazia. Não havia mais perguntas, risadas, gotas pesadas sobre o telhado ou Agentes de Saúde perguntando sobre a felicidade e a vida conjugal alheia.

Sequei os cabelos numa toalha de rosto que estava pendurada num varal interno e resolvi encher uma boa xícara de café, sorvendo-a bem devagarzinho, como uma espécie de prêmio solitário aos homens encharcados.

"O homem apaixonado conseguiu encontrar o endereço?".

Era Célia, com a cabeça introduzida na cozinha franzindo a testa esticada.

"Missão cumprida, baby".

Ela deu uma risadinha e fechou a porta. Fiquei novamente sozinho com minha xícara de café fumegante. Olhei meus pés. Barro e mais barro. O chão claro do posto de saúde tinha enormes marcas de pegadas de barro. Pegadas de quem havia pisado numa atmosfera triste, cheia de fungos e princípios de pneumonia.

Abri a porta da cozinha e deparei-me com o corredor de piso branco. Olhei aquela limpeza toda e decidi não sair pela porta dos fundos como um ator insignificante sai. Sem que o canhão de luz o iluminasse para a plateia. O sol nascendo no poente do nada.

Enquanto minhas marcas ficavam no chão branco do matadouro, parei mais um instante na porta. Dei uma boa olhada na população que aguardava ser atendida por algum dos médicos de plantão e pensei num enorme navio ancorado num mar de lama com as escotilhas cheias de pessoas acenando, mandando beijos, lágrimas, risos... Olhei o relógio e já era hora de ir para casa almoçar. Olhei pra trás e vi Célia segurando na mão direita, um rodo, e na esquerda, um pano encardido pela lama dos meus pés. Sorria franzindo a testa. Encolhi os ombros querendo dizer "desculpe". Subi até o convés do navio e seguimos mar adentro.

 

 

 

 

[imagens ©domiriel]

 

 
 
 

Nelson Alexandre (Maringá/PR). É autor de Paridos e Rejeitados (Contos, 2012) e Poemas para quem não me quer (Poesia, 2013). Em 2005, recebeu menção honrosa no prestigiado Concurso de Contos Newton Sampaio, onde viu seu trabalho ser publicado pela primeira vez em uma coletânea. Faz parte da antologia 101 Poetas Paranaenses publicada pela Biblioteca Pública do Paraná em 2014 (org. Ademir Demarchi). Teve textos publicados pelas revistas: Literacia, Outras Palavras, Flores do Mal e Diversos Afins e nos jornais O Diário de Maringá, O Duque e Rascunho. É graduado em Letras pela Universidade Estadual de Maringá.