Fuga das horas

 

 

Fugir é preciso

Da cidade de dentro

Do centro

Do umbigo

 

Correr rumo às matas

Se enfiar na própria casca

 

Fugir é preciso

 

Tem horas sou meu amigo

Mas grande parte do tempo

Quase não me aguento

 

E fugir é preciso

 

Sem pensar em nada

E que tudo caia

Quando a hora travar

 

Relógio de pulso já não te escuto

Na fuga das horas eu só sinto o pulsar

 

É quando acelera o rock ‘n’ roll em meu peito

De repente, tudo claro, me entrego satisfeito

 

E fugir é preciso

Do tempo, do entorno,

Da hora, do útero

Do abrigo

 

Fugir é sempre preciso

 

Do centro da cidade da terra da cabeça do umbigo da fome do medo do zumbido da sandice da miséria do breu da dor da Certeza com C maiúsculo do conforto com c minúsculo da subordinação de dentro da inveja da hipocrisia do quadrado da mentira de raskolnikov da opressão do lixo do mau gosto do inferno da mesmice da ordem do desinteresse da ânsia do dízimo do desespero do despreparo da centralidade da ordem do barco do comodismo de cá de lá de cá do oficial do consumo do lugar da baia da preguiça da rotina do abandono da tristeza de jack torrance da pretensão da prepotência da pasteurização do mundinho do exagero do homem-bomba do cúmulo do acúmulo da vaidade do desemprego do leão do desprezo da solidão da inércia do rockfeller do cheque especial do óbvio da burocracia da claridade da annie wilkes do sedentarismo do achismo do mr. jang dos radicais do desgosto do esgoto do ódio do estado do estado do estado dos fantasmas do feliciano dos fast-foods do furacão do mau gosto da farsa da fila do puritanismo do gesso do momento da agonia da morte do fim

 

Fugir

 

Fugir é preciso.

 

 

 

 

 

 

Ágiodeságio

 

 

Vou pagar cada centavo

Do que eu quis (er)

(vi)        ver

Do Homem que Caminha em minhas veias corre o sangue

Ao custo de Munch goteja o suor sagrado

 

E pagarei cada centavo.

 

Em seis mil folhas

de um cheque sem fundo

pré-datado

 

sem fundo

como eu

                         produto sem garantia

 

} do leito ao peito do pleito ao leito {

 

E pagarei

porque honro minhas dívidas

como honro minhas dúvidas

 

Sim, vou pagar cada centavo.

 

de todo desprazer

em lágrimas, cervejas, feridas,

guimbas, prazeres, suores, partidas

 

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxx parcelas

com cheque sem fundo roubado

de um banco falido

 

vou dar um pré-datado.

 

afinal,

 

essa vida é um até quando

muito breve

e ninguém controla essa inflação.

 

o preço é cada vez mais alto

nem sei se vale

se vale mesmo cada centavo

 

 

 

 

 

 

E pronto

 

Para que ter pressa?

Eu não tenho

Cansei de ímpeto ser

 

Vou di va gar

Sem mais pedir que passe

Domingo algum segunda-feira

 

Tiro é proveito

Com ou sem estribeira

É dito e feito

 

Não quero a pressa

Aprendi que do relógio ela me faz

Presa fácil

 

E é isso!

 

Ter pressa é ser presa

Frágil

É servir-se em bandeja

 

Saciar a fome do anti desejo

 

 

 

 

 

 

Compri(mi)do

 

 

Ontem

Parecia cumprida

 

A vida

Num instante

 

Mas não!

Não há cessar

 

Tudo é L ida.

 

Caminhões de Camões

Nenhum Lusíadas

 

 

 

 

 

 

Complementude finirônica

 

 

Eis a beleza da vida

 

 

só estamos prontos

 

 

quando

 

 

 

 

n

c

 

m

p

l

 

t

 

s

 

 

 

 

 

 

Itinerário (O X da questão)

 

 

E depois de tudo o que resta?

Só resta ir mais longe

E depois de tudo o que?

Só resta ir mais

E depois de tudo?

Só resta ir

E depois?

Só resta

E?

 

?

 

E?

Só resta

E depois?

Só resta ir

E depois de tudo?

Só resta ir mais

E depois de tudo o que?

Só resta ir mais longe

E depois de tudo o que resta?

 

 

 

[Do livro Fuga das Horas, 2015]

 

 

 

.manhã lisérgica de junho}

 

 

tenho nove horas de biografias

um metro e meio de demora

vinte segundos de espera

dois litros de memórias

 

o tempo sobre mim cai a quinze mil pés

gravidade tem peso de maçã

 

alucinações me habitam

a cada duzentos e cinquenta e oito quilômetros

é quando um metro me apavora

 

tenho dois minutos de altura

para uma tonelada de vida

faço em dia o sonho

para dez anos luz de ida

 

as papilas dos meus olhos nesse instante

desprendem um quilo de águas

minha boca vê só em sentir

e me abre uma estação de sorriso

 

neste átomo de segundo

 

 

 

 

 

 

.sinais}

 

 

há tantos sinais

vagantes nas ruas dessa capital

no entanto essa gente apressada

só vê o sinal

que para

e dispara

o trânsito

 

 

 

 

 

 

.ofício}

 

 

tudo me traz poesia

o livro meia-boca

a noite de luar

o haicai de Guerman

a prosa de bar

o longa de Almodóvar

o erro, a frase, o olhar

o jazz de Charlie Parker

sonho, canção, cheiro, paladar

 

tudo que me invade

traz o desejo de eternizar em palavras

realidades despercebidas

 

àquilo que é indescritível

deixo asas

 

 

 

 

 

 

.a verdade absoluta

sobre o amor perfeito}

 

P

 

                                                                                             {s.m.}

lanta da família das violáceas,

também chamada violeta-tricolor:

Amor-perfeito

 

 

 

 

 

 

.lápide#1}

 

 

estive

 

aqui

 

não

 

estou

 

 

 


saí

 

e

 

fiqu

 

ei

 

 

 

[Do livro Do Universo Rabisco o Mundo, 2011]

 

 

 

Inocência

 

 

Sempre longe

Demasiadamente livre

A sombra dessa árvore não me esquenta no inverno

Bela de se ver... como é bom sentir.

 

Pertencemos a mundos distantes

Tanto que não nos permitimos viver juntos

A árvore está lá

\ de mim \ longe

Livre em demasia

 

Eu permaneço aqui

Meu nome ainda é o mesmo

No meu jardim não nasceu

Nenhuma igual aquela

\ bela de se ver

 

Sou sempre o mesmo a romper o

\ hímen dos papéis.

 

 

 

 

Inventando cicatrizes.

 

 

 

 

Sem acrescentar nem mais um ponto ou vírgula

Diferente da árvore, eu mesmo

\ apenas.

       

Minha alegria é uma sereia de pernas abertas

Nunca deixei de amar aquela árvore

 

 

 

 

 

 

A imagem

 

 

Me destorce o espelho

Não enxergo o que penso

Só a imagem do que nunca vejo

 

Reflito no espelho

Se realmente me reflete

Meus desejos não os vejo

 

Que ilusão olhar no espelho

Onde a essência jamais reflete

A dor do outro um desgraçado engrandece

 

A imagem é tão falsa

Não tanto quanto o espelho

Às vezes gosto do que vejo apenas arrumo os cabelos

 

Finjo que tudo está tranquilo

A angústia elefante desse grilo

Diante do espelho os sentimentos não os vejo

 

Frente ao espelho sempre paro antes de sair

A imagem corrijo

Os sentimentos ninguém vê

\ a efígie ainda funciona

 

Em qualquer vidro me conserto

Perdido eu fico quando não me enxergo

Em águas de rios e lagos também me encontro

\ peixes e outros que se arrumem

 

 

 

 

 

 

Alvorada

 

 

De manhã

 

cedo

 

a sede

 

do dia

 

 

 

 

 

 

amanheço.

 

 

[Poemas inéditos]

 

 

 

 

 

[imagem ©jaci XIII]

 

 
 
Raphael Rocha (Belo Horizonte/MG, 1986). Autor do livro de poemas Fuga das Horas (Patuá, 2015) e Do Universo Rabisco o Mundo (Litteris, 2011) ganha a vida como jornalista em Brasília. Participou de antologias poéticas e tem poemas publicados em jornais do país, como o Correio Braziliense e sites de literatura. Em 2014, lançou o projeto Commodities, uma banda que tem sua configuração alterada a cada show.