Coragem

 

 

Me vesti para a ausência de você.

Me sinto nua, mas embuto de coragem minha carcaça com botas e jeans rasgado. Ela sussurra bem clichê:

                                         a  t  i  t  u  d  e  .

Penso demais.

Sinto.

Você não consegue esconder tudo de mim.

 

Será que você sente a minha falta? Que pensa em mim enquanto está lá,

 

                           nos lugares em que eu não estou,

 

ou esquece e eu sou pra você somente de vez em quando?

 

Escolhi preto, não (só) de luto, mas preto-seu-cabelo-tão-forte.

 

Um rito de libertação, um culto.

 

Suas meias.

 

Fico à espera do gran finale, o momento em que você teria um brainstorm e então viria me buscar.

 

As ruas molhadas de chuva, as luzes, a cadeira vazia na minha frente, a espuma da cerveja.

 

O vazio dos bares,

Os olhares e risos falsos e secos, sem graça, simples(mente) porque estão fora de mim.

 

Só o que encaixa dentro da gente pode ser (verdade).

 

sentindo mesmo estou é falta,

 

estou saudade

 

e enquanto você não vem eu esquento a cerveja só pra rir sozinha enquanto preencho teu vazio com minha própria respiração.

 

Porque a saudade

                    é uma dose homeopática

                                                        de amor.

 

 

 

 

nova ortografia

 

 

a sua eu não sei,

mas a minha idéia tem acento

ou melhor, tem assento: ela vem, passa,

e só fica quando eu a capturo com o olhar e a transformo em pensamento;

 e idéia que vira pensamento

 deixa de ser o que seria,

 ou seja,

deixa de ser

                               i-de-ia e,

                                           não mais no se-ria,

toma graça e se assenta.

com acento, é claro.

 

 

 

 

Crescente

 

 

Tem uma coisa que cresce em mim exponencialmente. Essa coisa vem de dentro do dentro, e vai subindo, subindo, arranhando minhas entranhas e rasgando tudo que há por ali. Não sei quando foi que essa coisa que cresce em mim se instalou no meu dentro, mas posso citar fatos pontuais que me lembram de que, nestes momentos, ela já existia em mim. Essa coisa estranha que cresce em mim sobe e quer sair pelos meus dedos, quer sair pelo meu olhar, quer me fazer gritar e chorar bem alto. Ela me dá a histeria da fuga, me faz olhar as coisas e o mundo a minha vida com um olhar diferente, deslocado, descolado como quem finge ainda fazer parte disto. Esta coisa que cresce em mim às vezes sai. E quando ela sai, eu respiro. Eu sinto que estou vivendo apenas quando essa coisa acorda e começa a desorganizar toda a organização das minhas vísceras. Tê-las bagunçadas é como ter minha vida jogada  à deriva, jogada à mercê de dias que eu espero que sejam uma coisa mas que torço para que sejam outra.  Neste meu balançar desejoso, espero dias que atendam a necessidade dessa coisa estranha que cresce em mim, e que também criem mais coisas estranhas a crescerem. No fim, pretendo estar cheia, coberta, voluptuosa com coisas que cresceram em mim, vontades, desejos, medos e agonias que cresceram e não quiseram jamais sair. Que eu morra como uma árvore, cheia de ramos, cheia de folhas, cheia de flores, cheia de marcas vindas de diferentes ares e com raízes profundas em vários lugares. Que eu morra como o mar, sabendo aceitar as ondas. Que eu morra sendo, por fim, eu mesma apenas uma própria coisa que cresce em mim, uma coisa inominável, uma coisa não-amor, um certo je-ne-sais-quoi que me faça sentir tão viva, tão viva, que de fato eu jamais morrerei. Porque as coisas que crescem em mim são fruto de meios, fruto de realidades, e na relação de mão-dupla inerente a todo tipo de relação terrestre, serão também influentes sobre os meios e realidades. Assim, não morrerei. Assim, não precisarei mais temer a morte. Assim, não precisarei mais me importar com coisas que me façam esquecer de meu fado final. Assim, poderei viver. Poderei respirar. A coisa que cresce em mim não tem nome. A coisa que cresce em mim me faz gritar. A coisa que cresce em mim sou eu.

 

 

 

 

Dos amores que não são

 

 

Falemos dos amores que não são, daqueles que nunca virão a ser. A maioria deles teve a chance de acontecer, mas por um motivo ou por outro, passou. O vento levou. O vento leva consigo as pessoas e tudo que elas representam para nós naquele dado momento a certa altura do campeonato da vida. Encontrar uma pessoa 10 anos depois de quando vocês eram amigos de adolescência é encontrar um novo ser, e tentar reencontrar em seu olhar resquícios do passado. Dos amores que não são, eu temo. Temo muito ao pensar que toda a escolha é minha. Existem infinitas possibilidades de realidades paralelas de se desenrolarem sob a corrente de ar que nos permeia. Mas não gostamos de pensar que as escolhas são nossas: destino é uma das palavras mais cobiçadas por aqueles que desejam encontrar um sentido no rumo que as coisas inúteis que fazemos tomam. Existem amores que não são feitos para serem postos à prova, para serem arriscados, para serem submetidos a um possível desamorecimento. Quando eu tiver lá os meus 80 anos e olhar para trás, observando o enésimo pôr do sol que já terei visto na minha longa e breve vida, eu não me lembrarei de todos aqueles que conheci. Ficarão guardados em minha memória o meu único e grande amor, minhas amizades, minha família, minhas decepções e rancores. Nisto se incluem os meus amores puros, meus amores virgens, que aconteceram sem acontecer no plano do olhar profundo de quem bem entende o que está acontecendo ali. Duas pessoas sabem quando entre elas se estabelecem entre elas os amores que não são. Porque eles ficam naquele meio-termo entre a amizade e a curiosidade de saber no que isso poderia vir a dar, porém outros motivos são maiores para impedir que isto aconteça. A escolha é feita, e então os amores que não são sabem que a coisa toda continuará a ser assim. E então se concretizam, se estabelecem, e duram, e duram, pois estes são o único tipo de amor eterno. Já os amores fortes que um dia acabam, simplesmente de fato o fazem: acabam. Os amores que não são não tem como acabar, porque nunca começaram. Eles não tem início, meio nem fim, mas acontecem, sem serem ditos a voz alta por ninguém. Os únicos a saber de sua existência são os olhares, o único tipo de coisa existente capaz de entender a complexidade das vidas paralelas. Em uma outra realidade, os amores que não são seriam. Mas não hoje. Não sem outros motivos para, de fato, ser.

 

 

 

 

Ele foi

 

 

Mas na verdade nunca foi, de fato. Afinal, eu também sou parte dele. Tecnicamente, metade exata. A laranja ao meio. Mas não completa, de modo que todos os dias eu o vejo caminhando por entre as pessoas, assoprando por entre as árvores, em cheiros e saudações que me fazem lembrar de tudo aquilo que eu não vivi, os netos que ele não viu, as viagens que a gente nunca fez, as confissões que eu nunca contei, as conquistas, os tombos, boa parte da minha vida em si. Mas ao mesmo tempo, o vínculo outrora não tão intenso, seja pela distância, seja pelos mundos tão diferentes, agora se intensificou. Eu lembro dele em cada detalhe de tudo que eu faço. Vejo seus traços nos homens de terno sentados na poltrona da janela digitando em seus computadores da empresa. Me sinto muito mais próxima, amiga e íntima de alguém que me conhecia, mas não me conhecia, que me amava, que teve sonhos, histórias e feitos que serão perpetuados pelos que se lembram dele com o coração. Porque é tudo muito simples. As coisas desse mundo passam. Nuvens. Águas. Terra. As coisas que a gente vive, também passam. Dias. Encontros. Sorrisos e risadas de quem se senta à mesa como quem nunca houvera antes na vida se reunido com aqueles que ama, e então ri, e fala, e chora, tudo como se fosse a última vez. Porque isso passa. A única coisa que fica são os olhares. Nada além deles. Nos meus olhos e nos olhos tão intensos de meu irmão, ficam os traços, as cores, as memórias, as vidas de quem sabe muito bem o valor de quem já se foi, e também o de quem fica. As coisas passam. A dor passa. A saudade é eterna e se desenrola, sob o lento amansar do tempo, em sensações mais serenas e calmas, típico do amor. A saudade é uma forma de amor. As pessoas passam - o amor, não.

 

 

você me deixou com os olhos molhados a noite toda.

 

a gente fica procurando no outro as pequenas palavras que escaparam da nossa própria boca,

 

tento crer que foram parar na sua e então amanhã eu volto pra buscar,

 

a gente marca um encontro casual

 

E

 

quando eu entrar pela porta

 

você já vai ter deixado separado todas as palavras que eu esqueci com você.

 

com a pressa dos calmos,

me devolva

uma a uma

 

as esquecidas

               e as renegadas

 

pra que quando eu sair, pela última vez, você saiba ficar

 

(sobre)vivente

 

No seu

Nu

Ortográfico.

 

 

 

 

 

 

 água-_ _ _ _

 

 

somos

 

         a falsa existência

 

                                   de um ponto

 

 

 

 

 

 

A Mexerica

 

 

tem cheiro do povo, de sobremesa depois de arroz com farofa de macaxeira

 

tem sustância no couro do estongo

 

a mexerica

 

mexe

com a gente

rica

 

 

 

 

 

 

URBANO

 

 

Uma criança descalça, no meio da rua, anda entre os carros.

 

palafitas.

 

uma velha puxa uma vaca, sozinha, por uma corda.

 

o homem pega uma galinha.

 

crianças voltando da escola se equilibram em meio a uma vala de esgoto.

 

motos e triciclos e humanos se confundem no chão lameado, a fiação exposta prestes a cair a qualquer momento.

 

a pobreza vive da riqueza de cores nos outdoors de lojas e propagandas eleitorais e

 

um menino, de uns 10, olha um anúncio de pratos de comida, e corre.

 

a cidade é um único todo vivo.

 

a noção de preciosidade da vida se altera quando tudo que se tem é pó, porque dele a gente veio e, apesar da fumaça,

 

a vida surge

em meio ao caos

 

todos

os

dias.

 

plantas entre vãos do asfalto poluído,

 

rios dentro da menina dos olhos da velha que olha pra rua,

 

e espera.

 

cada pessoa é um universo que nos tange como o soluço de choro contido da moça bonita, que

 

lenta

      a

         mente

 

se torna a velha-que-espera.

 

porque a cidade é um mundo interligado de onde não se pode fugir nem entrar:

 

a pobreza vive das cores dos humanos, e os únicos a diferenciar rosa de amarelo

 

somos

 

nós

 

(na garganta).

 

 

 

 

 

[imagens ©felicia]

 

 
 

Thaís Amaral nasceu no interior de São Paulo, em 1993. Teve seus primeiros contatos com o mundo da escrita aos 12, ouvindo os murmúrios de seu mar de dentro tornarem-se textos soltos, poemas, contos e pequenas crônicas. Desde então, vem tentando fazer com que as palavras tomem pouco a pouco um lugar maior em sua vida. Publica suas longuices e poemices no blogue Sereia no Aquário. Vive em Campinas/SP e estuda Biologia.

 

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