lembrava-me dele no canto
da sala as mulheres passando ele
sorrindo no canto da sala
ele sabia de tudo ele não sabia de
nada não se lembrava
de quase nada mas ela
parece lúcida acho
que ela entende o que se
passa acho que ele
está nos observando no outro
dia perguntei o que o senhor vê
daí? ele sorria para mim as
mulheres passando sem parar ele
sorrindo no canto da sala
eles são muito mais velhos
do que eu ela disse uma vez
na hora do café faz duas
semanas que estou
aqui duas semanas é por isso
que estou assim mas já
[...]
levantou o rosto
devagar
depois tornou
a soltar a cabeça
a expressão era de
dor olhos contraídos
ombros contraídos lábios
para baixo posso
voltar mais tarde você
está com sono?
ficava cerca de dois minutos
com a massa na boca
sem engolir abria e
fechava os olhos
muito devagar
a cabeça dependurada
sobre o tronco um ângulo
de 90 graus um "L" para
baixo será que ela
pode me ouvir? repito
a mesma história sempre
sem saber se sou
ouvida ontem a senhora
me perguntou você é
neta dela? pegue
o meu casaco por favor ponha
nas costas pegue minha
carteira por favor acho
que vou demorar
[...]
nesta hora tudo se
apaga tudo se repete
é a hora da rotina
vamos pensar o que
você pode fazer nesta
hora está escuro aqui
não posso sair a vista
embaralha a visão
se mescla com as coisas
sei que horas são não
tiro o meu relógio
do pulso estou melhor
estou quase
enxergando tudo
[...]
quando faz frio
assim ela costuma me
chamar deixo
a porta aberta
ela grita mais alto grita
até o corredor ficar cheio
de vozes mortas ainda hoje
quando passo em frente à
casa vejo o eco grudado nas
paredes e me pergunto ainda
hoje se ela de fato existiu
se ela estava mesmo
atravessada na cama de casal
se os pés estavam
mesmo um descalço o outro
com o tênis xadrez amarrado se
o abajur estava de fato tombado e
aceso na mesa de cabeceira a
mesinha cheia de lenços de papel
cigarros e restos de comida
[...]
ainda hoje quando
passo em frente à casa vejo
seu corpo atravessado na
cama de bruços o corpo mole
o cabelo cobrindo um dos lados
do rosto ouço as vozes
mortas pregadas no corredor
ainda hoje ergo o abajur
caído na mesinha ainda a
espero me chamar
deixo a porta aberta e
ouço cada vez mais alto ouço
o meu nome reduzido a uma
sílaba uma exclamação um "i"
esticado que gruda nas
paredes que cava um eco
na tinta das paredes nos
quadros nos tapetes ouço
seus passos sobre os tapetes ainda
hoje diante da casa me
pergunto se ela existiu se um
dos lados do rosto estava
mesmo colado no lençol e o outro
coberto com os cabelos o corpo
amolecido branco sobre
o lençol e ao redor tudo muito
escuro os olhos sem foco
a cegueira corroendo tudo ao redor
[...]
um único foco de luz
o abajur tombado sobre a
mesinha ou não seria
dali a luz que contornava
levemente os móveis a pele
a luz fraca e me pergunto
se ela de fato existiu se
a lâmpada teria explodido ao
cair ou se a porta estaria fechada
ainda que fizesse muito frio
nessas noites ela costuma
gritar mais alto ela
costuma chamar por mim ou
por ele um "i" esticado foi o que
a vizinha me disse
eu me perguntando se ela
de fato existiu e quando e
por quanto tempo por
quanto tempo aguentaria
ficar ali inerte por quanto
tempo aquele corpo
inerte ficaria ali branco
atravessado amolecido por
quanto tempo
tudo ainda poderia durar o
quanto tudo teria durado
se eu não estivesse ali a porta
aberta os gritos no corredor
[...]
a rotina que mais uma vez se
repete o que foi que
eu fiz o que deixei de
fazer o corredor estreito as fotos
de família o velho sobrado
conheço esse rosto de algum
lugar esta era a história que eu
conhecia de cor alguma coisa
que perdia o fio da meada não sei
o que fiz ou deixei de
fazer busco o fio por
quanto tempo tudo dura
tudo seria diferente se eu
não estivesse ali? ela se
perguntava toda vez quero
sair daqui faz frio deixo
a porta aberta nessas noites
ela grita mais alto
[...]
naquele dia os olhos
vermelhos e abafados algo
que seria um modo
de chorar a boca arqueada
para baixo a paralisia
da mão esquerda um
tremor os olhos vermelhos
e abafados quase
úmidos a pouca
fala os braços as pernas
mais finos do que na
semana anterior ela
menor e menor o corpo
minguado o arco nas
costas o arco na boca
murchando a boca escoando
por um tubo que ia
para baixo do chão
o frio nos ossos a mão
o tremor ininterrupto apoie
seu braço aqui
na cadeira
eu disse
mas a mão não parava
de tremer
estou indo embora posso
voltar amanhã
sempre é hora de partir sempre
é a última vez
[...]
fechar o portão preto olhar
as casas em frente
descer a ladeira sentir
o sol nos ombros fazer a lista
inteira na cabeça voltar
repetindo as contas na cabeça
fazer as contas mais
uma vez o peito doído e
pequeno o peito minguando
menor e menor o corpo
escoando ladeira abaixo eco
imenso tudo vazio ao
redor e longe longe dizer
onde
até quando
dizer mais alto para
o ar o eco o contorno vazio
o reflexo da voz no
vazio a propagação
em círculos concêntricos
[...]
vigio o oco do espaço olhe
ao redor jogue seu olhar ao
redor na linha mais
à frente um apoio parapeito
como se dali avistasse o
vazio e adiante o horizonte
colorido ver a árvore florida antes de
atravessar a rua colar as costas
no espaldar como se
dali
horizonte vazio
adiante e mais à frente
as cores se mesclando cinza azul e amarelo as
cores que variam
em pouco tempo apenas
tonalidades respirar mais fundo
na subida o ar da manhã gelado os
carros saindo das garagens o som
das vassouras raspando
calçadas a manhã lenta diante
das casas o prolongamento da manhã
o telefone a voz do fundo
de um poço você está aí pode me ouvir
o recado que desloca o dia
[...]
talvez eu não volte
tão cedo ela precisa ser removida
decidir o que fazer depois não fazer
mais nada respirar fundo diante
da ladeira busco um apoio as costas
vergam para frente no íngreme da
ladeira um apoio no parapeito veja
a linha do horizonte olhar para
frente não olhar para baixo uma
leve variação na tonalidade do dia muitos
dias em um só muitas velocidades
em um mesmo dia
[Extrato de Ensaio para casa vazia. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016]
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