©magdalena russocka

 

 

 
 

 

 

 

Dias de contagem

 

 

A morte, essa curiosidade. Que lambe devagar como amante tímido, como bicho de rua. Essa vontade de rostos que só a saudade traça. O medo nervoso das doenças ruins, dos acidentes ruins, da velhice ruim sendo ofuscado por uma euforia que se apresenta em convite. Um relembrar de fatos bobos, tristes, bons. A mãe das fotografias velhas, com roupas estranhas (tudo é estranho quando se é passado). O pai de uma tristeza disfarçada, burlando o faro dos que pressentem, o dó dos que percebem. Um irmão mais novo, um gato escaminha, um avô caduco, uma amiga de infância, um homem bom, uma mulher desperdiçada.

Tanta gente ida. A balança em desnível frenético. Mais um corpo, mais um corpo, mais um corpo, mais um copo. Cheio de aguardente e soluços. Despedidas. Abraços, palavras, terços recitados para a audiência ávida por ritos, para a plateia de olhos sujos, de inveja funda, de pouco sentimento. A amargura cavando um oco nas entranhas. Os dedos tesos amassando a fronha. O choro seco de quem aprendeu a se aguar só por dentro.

A morte, esse lugar sem instruções. Onde estão as criaturas do meu afeto. A vida, esta passagem estreita, autofágica. Coleção de ausências. Eu, quarto semiesvaziado. Travando na garganta as faltas. Esfregando as carnes sem calor. Absorvendo o derredor desabitado que confunde e desampara. E a solidão desaforada que insinua crenças em visões de eternidade.

Por hoje, vou procurar moedas. Limpar, polir. Que a paga de Caronte precisa estar sempre pronta. Para o dia que não sei.

 

 

 

 

Território

 

 

Lá, branco e preto namoram. Homem e mulher. Homem e homem. Mulher e mulher. O suor do trabalho vai para a cama sem banho. O suor da trepada escorrega os corpos na cama sem-vergonha. O gozo grita fode, grita mete, grita o dia de merda igual a todos os outros. A merda que invade as narinas a céu aberto. Merda de gente, de bicho, de viciado, de vadia. Ninguém mais sente. Nariz é pra cheirar o pó. O pó que menino vende.

Menino mata gente grande. Lá, mata. Mata velho dedo-duro, mata mulher que trai, puta que não rende, comerciante que não paga. Mata menino, também. E morre menino no descarte do dia ou da semana. De crack, de bala achada, de desafeto, de porrada, de polícia, de saco cheio. Só não morre de rir. Nem de medo. Soldado não pode ter medo. Não pode nada. Soldado não é autoridade. Nem no tráfego, nem no quartel. Mas pensa que é. Até quando chupa o dedo para dormir. Quando mija na cama, quando chora no sono, quando abraça a HK33, quando chama pela mãe sem abrir os olhos.

Mãe é o caralho! Lá, quase sempre é. A bêbada que queima o braço do menino com brasa de cigarro. Menino de quatro anos. Porque ele pede doce, pede colo, pede rua. É a noiada que vende bebês para os turistas de língua enrolada. Em troca de dinheiro pra comprar bagulho fino e enfiar no rabo dela e no dos homens dela. Os homens que arrebentam o menino de porrada e deixam ele nu do lado de fora de casa. Nos dias piores. Nos melhores, não. Nos dias bons o menino dorme na cama quente. Estuprado a noite inteira. Inteira, não meia. E a vagabunda não acredita no menino. Nunca. Mesmo acreditando. E repete que ele é ruim que nem cobra. Que ele quer que o homem dela vá embora. E arrebenta o menino de porrada e deixa ele nu do lado de fora de casa, soluçando alto.

Lá, pastor anda limpinho. Roupa passada, camisa dentro da calça, o pinto dentro da calça. Difícil é o pastor fazer um fiel. Quem faz fiel é o tráfico. Os do pastor ostentam na igreja as bíblias gastas. Os outros ostentam no baile funk. Junto com os meninos que não são de lá, mas que brincam de ser. Direitinho. Até o fim do baile. Depois descem para o asfalto dirigindo carro do ano. Vão para casa. Para amansar a larica com comida boa e um pouco mais de pó. Ou de pedra. Na beira da piscina com vista para o mar. Tomando scotch cowboy servido no Baccarat da mamãe. Mamãe de menino rico não queima braço com cigarro, não dá porrada, não deixa nu do lado de fora. Põe dinheiro na conta.

Os fiéis do pastor dormem cedo. Nos braços de Deus e de Morfeu. Os do tráfico vão atrás das coxas. De homem, mulher, menina, menino. Branco e preto fodendo pelo resto da noite. Fazendo mais meninos para descarte. Uns, no lixo, arrancados às pressas antes da vida. Outros, mais tarde um pouco. Só um pouco. Só o tempo de primeiro virar soldado, de virar noiado, de trepar com homem, mulher, preto, branco. E de voltar mais uma vez para a casa da mãe. Esperando um carinho na cabeça, um riso da boca de dentes tortos, podres. Porque boca de mãe deveria rir sempre. E falar vem cá meu filho pra eu te dar um beijo; Deus te abençoe; como foi teu dia; vai sair com quem?; põe um casaco; já fez os deveres?; come direito.

A HK33 empinada dispara rajadas de fogos de artifício. Cachorro marcando território.

 

 

 

 

Não bato

 

 

Eu podia sair e andar alguns passos à direita ou à esquerda e bater em algumas portas e encarar alguns rostos surpresos e abrir a boca e contar que hoje lá em casa não tem migalha. Eu podia falar da fome que queima. Da insônia. Da náusea. E da ironia dessa náusea que brota da falta. Falar da outra fome, a que precisa mastigar afetos. Da outra ânsia, a que precisa vomitar afetos. Eu podia falar como é raso o buraco que eu chamo de abismo; e que ainda assim é abismo. Mas, antes, eu preciso de pão. O de fermento. Porque hoje, lá em casa, não tem migalha. Tem ladainha. Falta emprego, dinheiro, coragem, gás, coragem, sal, coragem, arroz, coragem. E pão.Quando eu era pequena, minha mãe dizia que água e pão a gente sempre tem. Não é verdade. Hoje, não tem pão. Tem prato, mesa, geladeira. Tudo vazio. Um vazio servido no prato, na mesa, no estômago, na cabeça, nos olhos. Vazio de pão dói mais.

Alguns passos. À direita, à esquerda. Tanto faz. Tanto faz a porta, o rosto, o estranho, o amigo. Eu não vou pedir. Fico aqui, sem migalha, mas não peço. Nada. A ninguém. Fico aqui e choro sem fazer cena, e sinto as unhas latejando, e vomito, e tonteio, e desmaio, e levanto. E deixo tudo começar outra vez. E espero a inanição, a morte. Mas não peço. Nem à direita, nem à esquerda. Que não dou a ninguém o direito de negar. De me negar. De se negar a mim. Que não dou a Deus o direito de me dizer que fome e piedade é o que tem para hoje. 

Todas as portas estão vivas. Eu sei. Eu escuto as vozes, as gargalhadas, o sexo, os aparelhos de TV ligados na novela das sete. Escuto do lado de cá. E aí a mão se fecha para bater na madeira que me separa do estardalhaço das crianças, das lambidas dos cães. Mas os pés recuam. Obedientes, altivos, enfraquecidos. A cabeça recua. E impede a mão fechada do horror da piedade. Daqueles olhos que seriam, primeiro, incrédulos; dos pensamentos que seriam, em seguida, dúvidas sensatas: quem é você? A louca que incomoda, a vizinha desconhecida, a preguiçosa que não procura emprego, a filha sem mãe, a mulher sem marido, a amiga sem amigos. E, então, a compaixão, o dó, o acolhimento, a compreensão, a mão entre as mãos, o conselho, o me conta a sua história, o coitada de você, a humilhação. O horror da maldita piedade. Que depois despreza. Que depois escarnece. Que depois aprisiona. Que depois abusa. Que depois rejeita, afasta, repele, foge, se esconde, evita, aborta.

Eu podia sair e andar alguns passos, bater em algumas portas; em todas elas. E pedir um pão. Mas eu não vou. Eu não peço. Eu não mendigo. Eu não estendo a mão. Nem hoje, que a morte me estupra.

Eu morro. Mas morro sem bater.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Cinthia Kriemler nasceu no Rio de Janeiro e mora em Brasília. É contista. Queria ser poeta. Autora dos livros Na escuridão não existe cor-de-rosa (2015); Sob os escombros (2014); Do todo que me cerca (2012), todos pela Editora Patuá. E de Para enfim me deitar na minha alma (2010), projeto aprovado pelo FAC-DF. Na Amazon Brasil, mantém os e-books Atos e omissões e Contações. Está em diversas antologias de contos, em algumas poucas de poemas. Escreve todo dia 16 para a Revista Samizdat. Seu blogue: http://cinthiakriemler.blogspot.com.br.