Com Cora Coralina, por ser um nome que muito provavelmente o leitor já conhece, eu posso ser um pouco mais rápido que o usual. A gente pode se interessar por sua poesia com sinceridade e, principalmente, seriedade crítica, mas não estou muito certo de que o que ela deixou é o suficiente para dizermos que foi o maior nome da poesia de Goiás. Obviamente, você não pode acusá-la de simplicidade ou, quem sabe, de rusticidade poética se comparado com o que a poesia formalmente mais avançada, por assim dizer, já ostentava, pois, a esse respeito, você precisa se lembrar que a poesia dela foi escrita durante toda uma vida e só publicada na velhice, e que a simplicidade e mesmo rusticidade de uma poesia não é de modo algum um demérito. A ideia de uma poesia com recursos poéticos que se comunicam com facilidade com o leitor, chegando mesmo a buscar incluí-lo, bem como a ideia de uma poesia nua e crua ligada à terra; uma e outra são ideias de pretensões podemos dizer whitmanianas. O problema é que essa poesia de Cora Coralina não tem constância, e muitos dos versos da autora parecem se sustentar muito mais pelo carisma da senhorinha que fazia doces do que de fato pela carga poética que ostentem. Simplicidade pode haver sim, e um grau de simplicidade que beiraria a ausência de poesia, mas nem por isso nós, enquanto leitores, deixamos necessariamente de demandar pelo menos um garbo e toda uma inteligência e acuidade na hora da composição.

Três exceções, porém, são eloquentes em dizer o contrário: "Cântico de Dorva", "Trem de carga" e "Rio vermelho". Este último eu faço questão de citar na íntegra, já deixando bem claro que não se trata daquele que começa com "Longe do Rio Vermelho. / Fora da Serra Dourada" (é um começo interessante, eu admito, mas não passa disso):

 

                    1

         Tenho um rio que fala em murmúrios.

         Tenho um rio poluído.

         Tenho um rio debaixo das janelas

         da Casa Velha da Ponte.

                   Meu Rio Vermelho.

 

                   2

         Águas da minha sede...

         Meus longos anos de ausência

         identificados no retorno:

         Rio Vermelho ― Aninha.

         Meus sapos cantantes...

         Eróticos, chamando, apelando,

         cobrindo suas gias.

         Seus girinos ― pretinhos, pequeninos,

         inquietos no tempo do amor.

         Sinfonia, coral, cantoria.

                   Meu Rio Vermelho.

 

                   3

         Debaixo das janelas tenho um rio

         correndo desde quando?...

         Lavando pedras, levando areias.

         Desde quando?...

         Aninha nascia, crescia, sonhava.

 

                   4

         Água ― pedra.

         Eternidades irmanadas.

         Tumulto ― torrente.

         Estática ― silenciosa.

         O paciente deslizar,

         o chorinho a lacrimejar

         sútil, dúctil

         na pedra, na terra.

         Duas perenidades ―

         sobreviventes

         no tempo.

         Lado a lado ― conviventes,

         diferentes, juntas, separadas.

         Coniventes.

                   Meu Rio Vermelho.

 

                   5

         Meu Rio Vermelho é longínqua

         manhã de agosto.

         Rio de uma infância mal-amada.

         Meus barquinhos de papel

         onde navegavam meus sonhos;

         sonhos navegantes de um barco:

         Pescadora, sonhadora

         do peixe-homem.

 

                   6

         Um dia caiu na rede

         meu peixe-homem...

         todo de escamas luzidias,

         todo feito de espinhos e espinhas.

 

                   7

         Rio Vermelho, líquido amniótico

         onde cresceu da minha poesia, o feto,

         feita de pedras e cascalhos.

         Água lustral que batizou de novo meus cabelos brancos.

 

Isso possui um nível de realização que poucos poemas de qualquer época lograram alcançar. Observe por exemplo a parte 4. O que está em jogo não é um jogo de oposições simples do tipo "a água é mole e a pedra, dura". São eternidades irmanadas, o que traz consigo a ideia da água correndo, deslizando, se esfregando na pedra. É esta nota de sensualidade que se espraia ao longo do poema todo, fazendo da metáfora da Rio Vermelho, que de fato passa pela cidade de Goiás (onde Cora Coralina viveu parte da vida), uma metáfora que carrega em seu bojo a ideia implícita da vida e da fecundação ― ideias que de resto sempre se fazem presentes quando falamos da água. A delicadeza e mesmo a forma como a poetisa constrói seu poema, fazendo dele uma espécie de murmúrio propriamente dito, onde as notas de sensualidade são como que disfarçadas na imagem do Rio Vermelho ou então no ambiente a seu redor (por exemplo os girinos), é esplêndida, de modo que aqueles instantes em que a linguagem traz jogos paranomásicos (por exemplo "lavando―levando" ou "conviventes―coniventes"), esses instantes insistem numa espécie de fricção linguística que simula o correr das águas pela terra.

Mas o que é mais impressionante é que toda a sensualidade do poema, e toda a maneira como ele se embasa num instrumental metafórico cada vez mais feminino ― até o instante em que o Rio Vermelho é comparado, de forma poderosa, com o líquido amniótico ―; toda essa sensualidade converge na comparação base que sustenta o final do poema, que é a de que a poesia da autora é uma água lustral que lhe fez renascer mesmo depois de velha, e lhe fez, até, engravidar-se de uma espécie de vida que, podemos pressupor, ela, enquanto "Pescadora, sonhadora / de peixe-homem", nunca pôde ter. Este o seu verdadeiro Rio Vermelho. Um rio que é menos seu por ser, de certo modo, imaginário? Não creio. A parte 6 nos dá subsídios suficientes para pressupormos uma conjunção carnal ou ao menos um encontro físico, mas, de todo modo, pelo simples fato de que é um Rio Vermelho interior, e pelo simples fato de que sua poesia é comparada a uma gestação de maneira arraigadamente biológica, então não restam dúvidas de que estamos diante de um rio concretamente seu.

 

*

 

Se Goiás, durante toda sua história literária, não intentasse sequer um espasmo de fuga do curralzinho literário de suas fronteiras, então eu creio que pelo menos uma menção de honra nos anais da Literatura Ocidental nós mereceríamos (ou um estudo de psicopatologia coletiva). Mas, ufa!, tentamos. Ao menos isso. E, sabe?, foi legal. Deu certo, na medida do possível. Veja só. Em 1960, um grupo de escritores montou um tal de GEN: Grupo de Escritores Novos. Conforme Moema de Castro e Silva Olival (uma das vozes críticas mais jovens do nosso Estado), o GEN representou um sopro de renovação, fazendo com que o Estado, pela primeira vez, se pusesse em sincronia com o que estava sendo feito lá fora. Antes disso, o máximo que podemos apontar como uma tentativa análoga a esta seria com a revista Oeste, publicada de 42 a 44.

O GEN promoveu não exatamente uma nova estética, mas um centro de estudos em que escritores podiam se aperfeiçoar enquanto tais. Promoveu também concursos e eventos, além de ter sido responsável por introduzir algumas das vanguardas vigentes em solo goiano, em especial a Práxis.

Um poema basta para que atestemos a forma que julgo bastante feliz com que a Poesia-Práxis entrou em solo goiano. É um poema de Carlos Rodrigues Brandão intitulado "Dizer-Dizendo":

 

         a.       onde é a forja fazer da forja

                   o ferro onde a forja ganha o nome

                   onde é o ferro fazer do ferro

                   a arma onde o ferro encontra o uso

                   o fato onde a arma ganha impulso

                   onde é o fato fazer do fato

                   o texto onde o fato apura o senso

 

         b.       onde é o texto fazer do texto

                   o fato onde o texto toca a arma

                   onde é o fato fazer do fato

                   a arma onde o fato vem ao ferro

                   onde é o ferro fazer do ferro

                  a forja onde o verbo volte ao mundo.

 

O movimento semântico que o poema-práxis estabelece é o de constatar que a palavra, esse conjuntinho de manchinhas pretas de conteúdo unívoco, uma vez que entra em contato com outras, se transforma em palavra multívoca. Ou seja, ela passa a significar muitas coisas quando está em bando, ao invés da univocidade que poderíamos apontar da palavra em estado de dicionário. E é esse movimento de ir-e-vir entre a univocidade e a multivocidade que Mário Chamie denominará de "mobilidade intercomunicante", isto é, nós partimos de uma palavra unívoca que, após o contato com outras (o que implica sempre um contexto), ganha uma acepção multívoca e, dentro do plano geral das palavras do poema, se transforma numa única palavra unívoca, isto é, o poema como se fosse ele próprio uma única palavra, um único signo. Assim: observe aquela palavra ali, sozinha, triste, sem amigos; ela acha outras palavras da sua espécie e essas palavras, juntas, enchem de vida a nossa palavrinha, que, agora, é multívoca e toda lindona; todavia, se você for afastando a câmera e observar o conjunto dessas palavras juntas que se ajudam, aí você observe que é como se todas elas formassem uma única palavra, um único signo.

Dessa transformação em signo único, Mário Chamie se referirá a um "campo de defesa", que é quando as palavras, os signos como que se amontoam e criam uma espécie de zona de independência (em graus mais avançados, são esses campos de defesa que esparramam hermetismo na poesia do cara). Estas zonas são particularmente importantes pois fazem com que o projeto-motor do poema-práxis, que é o de constatar uma zona de levantamento para erigir seus campos de defesa, consiga ser ligado, ou seja, o poeta se posta diante da realidade e, constatando as especificidades daquele contexto (em especial vocabulares), intenta uma maneira de reproduzir essa mesma zona que levantara no âmbito do poema. Sabe aquele joguinho do Raul Gil do banquinho, em que os convidados devem pensar numa série de objetos dentro, sei lá, de um quarto? Pois então. A zona de levantamento, numa comparação meio esdrúxula, seria isso, e o poema-práxis é uma maneira do poema mimetizar ou re-produzir essa zona de levantamento não só pela escolha rígida dos vocábulos e por uma busca pela objetivação e pela concreção, mas, também, pelo relacionamento interno desses mesmos vocábulos.

Não sei até que ponto esta explicação se fez clara, mas o poema de Carlos Brandão é particularmente feliz quanto a isso, se observarmos a maneira como todos os seus vocábulos remetem à ideia de um trabalho sobre o ferro, um trabalho propriamente de ferreiro, bem como se atentarmos à maneira como a disposição dos versos, em que uns parecem resultar logicamente de um trabalho empreendido pelo anterior e de maneira mais ou menos cíclica (por exemplo "onde é a forja fazer da forja / o ferro onde a forja ganha o nome / onde é o ferro fazer do ferro" ― tentando parafrasear, seria algo como: onde a forja faz aquilo que a forja faz, é onde o ferro faz com que a forja ganhe esse nome, pois, afinal de contas, forjas trabalham sobre ferro e é o ferro que dá sentido de existir à forja, de tal modo que, nesse mesmo lugar onde o ferro faz com que a forja seja forja, é onde o ferro se faz ferro, pois a forja, meio que dialeticamente, também dá sentido ao ferro); se atentarmos a essa forma de disposição dos versos, eu dizia, nós conseguimos notar como o poeta armou de maneira eu considero bastante feliz uma situação concreta, toda uma práxis propriamente falando, e, graças à maneira com que compôs o poema, graças à forma do poema e sua estrutura peculiar, ele como que mimetizou ou, até melhor dizendo, ele re-produziu o que constatou da zona de levantamento do poema (no caso, a zona de levantamento a respeito do trabalho do ferreiro) no plano vocabular e no plano sintático de seu texto.

Cito essas coisas de poesia-práxis pois o grande expoente de sua poesia em solo goiano foi Heleno Godoy. E não digo isso no sentido de que Heleno passou a vida inteira só compondo poemas-práxis; na verdade, a poesia-práxis propriamente dita de Heleno se limita a seu primeiro livro, Os veículos. O que veio depois foi um aprendizado extremamente lúcido de todas as lições que a poesia-práxis tinha a lhe oferecer, em especial lições de rigor compositivo e de compreensão do poema e principalmente do livro como um todo funcional.

Heleno Godoy, nesse sentido, é um mestre consumado. Ele é o único poeta cujo nível da produção consegue se igualar e eu digo até mesmo superar a de Afonso Félix de Sousa, o que, por conseguinte, faz dele seguramente o maior poeta já surgido em solo goiano. Fábula fingida, A casa e A ordem da inscrição são livros esplêndidos, com um grau de construção que não apenas faz com que os momentos ruins sejam elevados a uma categoria de necessários para o desenvolvimento do livro, mas, também, livros que apresentam um elevado nível de poemas inteligentes dentro de si.

Os exemplos, mais uma vez, poderiam ser inúmeros, mas eu gostaria de não exagerar na rasgação de seda.

O primeiro deles está em Fábula fingida, e dele nós podemos observar de maneira clara um poeta que conseguiu haurir com grande felicidade a lição-práxis:

 

nos espaços de teu corpo

         teu nome em todas as pedras

         no espanto de teus traços

         teu nome em todas as horas

         e meu estar incontável

         entre pedras por todas as horas

 

         nos pontos de teu corpo

         teu fato em todas as tendas

         na marca de teus braços

         teu fato em todos os laços

         e meu estar incontável

         entre tendas por todos os lados

 

         nas amarras de teu medo

         teu contra todas as feras

         no vazio de teus laços

         teu contra em todos os cantos

         e o meu estar incontável

         entre feras por todos os cantos

 

         nos confins de tua fuga

         teu normal em todas as vagas

         no desejo de tua volta

         teu normal em todos os dias

         e meu estar incontável

         entre vagas por todos os dias

 

O primeiro verso de cada estrofe traz consigo uma demarcação implícita: os espaços, os pontos, as amarras, os confins. O terceiro, por sua vez, já traz uma adjetivação (ou um alguma-coisa-dentro-de-outra): o espanto, a marca, o vazio, o desejo. Entre um e outro, isto é, na posição de versos dois e quatro, temos algo que existe nessa fenda. Mas que fenda seria essa? Há um movimento explícito no poema que é o de falar sempre a respeito de um interlocutor, mas, nos dois últimos versos, voltar a câmera para o próprio eu lírico, que, num movimento de síntese entre os versos dois e quatro, se vê cercado (o que podemos ler em especial graças a "incontável" e "por todos") de um montão de coisas. Ou seja: na última estrofe, nós sabemos que nos confins da fuga de não-sei-quem, nós temos o normal dessa mesma pessoa em todas as vagas, isto é, em todas as ondas (mas também podendo ser vagas de espaços vazios, como por exemplo vagas de estacionamento).

A disposição da ideia está um pouco intrincada nos versos, mas a ideia pode ser reconstruída se imaginarmos todas as vagas existentes no mundo. Em todas elas, nós temos o normal de uma pessoa. Mas essa relação de conteúdo, isto é, de uma coisa contendo a outra, possui um passo a mais, pois, nos confins da fuga dessa mesma pessoa (pra você imaginar melhor, pense num beco sem saída), nós temos essa normalidade contida em todas as vagas. Quer dizer, assim, que nós começamos do mundo exterior (todas as vagas), caímos numa característica da pessoa (sua normalidade) e essa característica, visível naquela exterioridade apontada, está inclusa em alguma demarcação da pessoa (o que é melhor visto no caso das duas primeiras estrofes que falam dos espaços e dos pontos do corpo dela). Enquanto o movimento óptico do primeiro verso é um movimento de especificação (por exemplo quando fala dos pontos do corpo), o do segundo é um movimento de ampliação (por exemplo quando fala do nome em todas as pedras).

Temos, portanto, um choque. Mas um choque que ocorre de maneira dupla, para, depois, nos versos finais da estrofe, que abordam o eu lírico, se fundirem ambos. Oras: no último verso do poema, o eu lírico fala: "e meu estar incontável / entre vagas por todos os dias". Durante o poema inteiro nós tivemos a ideia de uma fenda, de uma coisa que se inclui na fenda existente entre tantas e tantas coisas. O eu lírico também está assim, com a diferença de que ele não contém nada (quer dizer; conter ele deve conter ― talvez amor, paixão ou dívidas ―, mas nada disso nos é dito). Enquanto a figura da pessoa amada contém, por exemplo, em cada espaço do corpo o seu nome em todas as pedras, tudo o que sabemos do eu lírico nesses versos citados é que ele está entre vagas por todos os dias. Ele está, assim sendo, entre coisas físicas e para sempre, como que sem substância alguma, com a diferença, crucial, de que cada uma dessas vagas, conforme eu mostrei para você ao ler o núcleo de cada uma das imagens do poema (por exemplo "nos confins de tua fuga / teu normal em todas as vagas"), cada uma dessas vagas possui uma característica implícita da pessoa evocada, de maneira que, embora a imagem retratada no final do poema seja uma imagem muitas vezes triste (por exemplo "e o meu estar incontável / entre feras por todos os cantos"), o fato de que a presença da pessoa é implícita ao todo das coisas que cercam o eu lírico contribui para dar uma espécie de alento ao poema.

Nada disso seria alcançado, porém, se o poeta não dispusesse de maneira inteligente os versos, e se não incutisse, de maneira também inteligente, essa mesma ideia na frente do leitor, ou seja, aquilo que venho sempre insistindo: o poema demonstrando pro leitor determinado conteúdo muito mais do que apenas elucubrar de maneira qualquer a seu respeito.

Um segundo exemplo é retirado de A casa:

 

         Uma casa se renova vez ou outra.

         Um novo broto na planta,

         uma criança nova,

         cuidados raros.

 

         Uma casa se refaz de uma tempestade.

         Uma goteira que pinga,

         uma telha nova,

         cuidados poucos.

 

         Uma casa não se renova sempre.

         Uma incompatibilidade de gênio,

         um lençol separado,

         cuidados sutis.

 

Acho que as coisas aqui estão óbvias demais para necessitarem de qualquer comentário. Depois de um divórcio, de uma separação, a coisa deixa de se renovar. O que devemos notar, porém, e além do paralelismo gritante que o poema busca incutir (em grande medida pra contribuir com a surpresa do final), é o uso inteligente do artigo e o fato de que os substantivos estão sempre no singular, com exceção do último verso de cada estrofe, todo ele no plural e sem nenhum artigo (mais especificamente, mudando, apenas, o adjetivo dado a "cuidados").

Mas este é um texto limitado, e, assim como eu disse com Afonso Félix, eu só vou me sentir realmente satisfeito se você for procurar mais coisas de Heleno Godoy para ler. Não sei se consigo citar algo de A ordem da inscrição, que é certamente o livro mais bem construído do autor, em grande medida pois aqui um recorte rítmico passa a operar, lentamente, como uma fonte semântica. A sacada do livro é que nós, em nosso cotidiano de pessoas não ricas, vivemos uma vida muito mais ou menos, inscritos, como que jungidos a uma rotina que nos aprisiona. Os cavalgamentos ao longo dos poemas, e o recorte rítmico que incute no leitor uma sensação de incompletude a cada verso, contribuem pra dar tanto uma ideia de incômodo quanto uma ideia de ruptura miúda mas constante. E, implicitamente, essa me parece a mensagem verdadeiramente revolucionária que o livro como um todo tem a incutir.

Fique com o de número 15:

 

         Se o amor é forma, então este edifício

         foi feito de mármore, talhando condições

         de sobrevivência e enfrentamento duro

         de qualquer processo de corrosão ou um

 

         outro qualquer que venham a inventar

         e a usar contra, destruir o construído,

         inventar nomes, acusar desafetos, cair

         na tentação fácil das eficácias questio-

 

         náveis ou das perguntas de respostas ób-

         vias sobre as relações do dia com a noite

         possível, e dos encontros clandestinos

         ou não, consentidos ou conseguidos

 

         através de expedientes dúbios, como

         um vaso de flor cheirosa, um buquê

         de cravos caros e luxuosos, uma flor

         mais rara ainda, como violeta escura

 

         e refratária, difícil em sua obscura casa

         de verdes folhas propositadamente

         repletas. Se é assim este edifício, então

         pode-se ver nele uma construção mais

 

         frágil, embora mais duradoura, como

         um pé depois de outro, a mensuração,

         o espaço dividido e, às vezes, também

         compartilhado. Se o amor é uma forma.

 

Isso daqui não é simplesmente uma elucubração longa a respeito de um tema, valendo-se, para tanto, de um amontoado de situações prosaicas à maneira do procedimento usado à exaustão na poesia social de Drummond. O poeta não simplesmente expande sua frase para que siga o fio da meada do raciocínio; ele também a expande para que você, de algum modo, e tendo em vista que começamos com uma conjunção subordinada condicional ("se"), se esqueça que estamos diante de uma suspensão, isto é, que o amor pode ser isso mas também pode não ser, que o amor pode vencer todo o rol de coisas com o qual o poeta se ocupa a maior parte do poema ao mesmo tempo em que ele pode não vencer, e não ser edifício coisa nenhuma. A grande sacada do poema, aliás, me parece ser a de que, diante de uma suspensão condicional e de um rol de negativas ― se o amor é uma forma, então ele não pode ser isso nem aquilo nem (…) ―, nós, leitores, é que somos convidados implicitamente a afirmarmos o amor e de fato concretizá-lo mais do que apenas vê-lo enquanto forma vazia, como mais uma das tantas inscrições que nos jungem. É um convite que não me parece absurdo de ser feito, pois, considerando que Heleno Godoy trabalha sua matéria lírica de maneira isenta, sem se identificar em demasia com ela e sem imersões excessivas, e tendo em vista que essa matéria lírica é nada mais nada menos que nosso cotidiano, então nós, entrando em contato com esse atento estudo da vidinha do homem comum de nosso tempo, não temos como não nos identificarmos com esse material de estudo que no fim das contas pode muito bem ser qualquer um de nós.

Essa suspensão possibilitada pelo início do poema é inteligente, o que não chega a espantar pois o poeta é um mestre em inícios de poemas ― e nós sabemos bem que no geral os poetas não dão a mínima pro início do poema, o que faz com que essa preocupação de Heleno seja a preocupação de um prosador ― e de fato a sintaxe e a construção corrida e certo modo "em blocos" de muitos de seus poemas os fazem assemelhar-se a trechos em prosa ― mas, como eu dizia, Heleno é um mestre dessa coisa de iniciar poemas, e aqui bastará que eu cite o início de "Álbum de Família": "Esta menina com uma flor na mão / não sabe ainda, mas será minha mãe."

E que bom que é inteligente, esse início. Assim a reflexão trazida pelo poeta não rescende a gratuidade, aquela situação do poeta refletindo de maneira miúda não sobre, diretamente, grandes temas filosóficos (à maneira de um Antero de Quental), mas sobre pedacinhos retirados da vida urbana. Muita gente em Goiás e também fora de Goiás tentará esse conúbio entre poesia e pensamento, ainda mais considerando a égide de João Cabral que se lançou sobre boa parte da poesia contemporânea, recolhendo seus tentáculos só mesmo de uns tempos pra cá (e sim, Heleno é um dos que foram influenciados por Cabral e em alguns momentos até mesmo padeceram dessa influência, como nos poemas iniciais A casa, que beiram o pastiche).

E eu não preciso nem dizer o que acontece na maioria dos casos.

 

*

 

Yêda Schmaltz também fez parte do GEN. Todavia, é um caso um pouco mais delicado. Escreveu demais, e chegou a instantes no mínimo vergonhosos. Claro que você precisa ter honestidade crítica nessas horas, no sentido de que só mesmo alguém muito mal intencionado julga um poeta por seus piores momentos, e, por mais cancerígeno que seja ao crítico, ele deve ter a lucidez de enfrentar esses momentos ruins se pelo menos conseguir às vezes alguns realmente bons.

Se você tem em suas mãos A alquimia dos nós, então você vai encontrá-los. Em A ti Áthis também, com o adicional de que possui um projeto mais bem pensado ― e também em Baco e Anas brasileiras, um pouco anterior a A ti Áthis e que, no seu todo, empreende críticas inteligentes à condição da mulher na nossa amada e querida sociedade. Mas aqui você mire e veja: se o negócio é mesmo assim, então a conclusão a que chegamos é de que quando Yêda resolve abrir os poros de sua sensualidade, então foi aí que seus melhores momentos vieram à tona, uai. Pena que, como eu disse, em muitos outros o mau gosto impere, e quando falo em mau gosto eu estou falando de uma coisa que mais parece poesia escrita por adolescentes (ou, se brincar, coisa ainda pior).

Mas não quero ser injusto, e, portanto, vamos ficar com alguns dos bons momentos. De Alquimia dos nós eu gosto particularmente de "Os castelos":

 

         Um castelo de imagens

         como testemunha

         ― fogo e tocha ―

         e a flor arrebentando

         o vão da rocha

         (um cio).

 

         A tua unha

         ferida

         no pedregulho:

         tua unha que eu penso

         e mergulho

         (no rio).

 

Tudo aqui está na medida certa: o tamanho, a contenção, a imagem, as rimas… A pacata descrição de uma imagem esconde por trás uma erupção sensual que encontra correspondente no Rio Vermelho de Cora Coralina. Não se trata simplesmente de rimar "tocha" com "rocha" na primeira estrofe, mas, valendo-se da imagem bela de uma flor que arrebenta o vão da rocha (não creio que exagero se enxergar nisso uma conotação sexual), e valendo-se do ardor conjunto de "fogo e tocha" e do verbo "arrebentando", pintar uma cena com tintas de sensualidade latente. Há muito mais o que ser apontado no poema, é claro, para que ele receba a alcunha de inteligente, como por exemplo o fato de que o castelo de imagens testemunha o que está acontecendo (e você, leitor, vendo a imagem que vai sendo pintada à sua frente, acaba que testemunha também) e o fato de que "um cio" e "um rio" surjam entre parêntesis ― o primeiro como uma explicação que metaforiza a situação retratada na primeira estrofe e o segundo como um complemento que, de certo modo, faz com que o leitor se afaste um pouco de uma via de interpretação sexual, possibilitada em especial por "um cio" no final da primeira estrofe, e volte sua atenção a uma interpretação propriamente imagética, que é a do eu lírico mergulhando num rio ― embora esse rio também possa sofrer um processo de metaforização análogo ao que ocorreu na primeira estrofe e análogo à imagem da segunda, por exemplo a unha que é pensada e nela se mergulha.

Um segundo exemplo está em A ti Áthis, o de número 26:

 

         Nunca saberei contar esta flor

         que me nasceu por dentro

         onde não é lugar de nascer flor.

         Este amor dando pétalas

         no sangue.

         Esta cor

         anômala.

         Esta dor

         de estômago.

 

Qualquer um de nós deve conhecer pelo menos uma tropa de poetas que tenta colocar o amor no seu devido lugar de ridículo, de bobagem ou qualquer coisa do gênero ― por exemplo simplesmente falar do amor de uma maneira mais espirituosa. Yêda Schmaltz consegue isso e com grande perícia, mesclando altos e baixos na linguagem empregada, como quando por exemplo ela fala da flor que nasceu por dentro "onde não é lugar de nascer flor". É também digna de nota a maneira como ela constrói ritmicamente seu poema, com versos de 10-6-10-6-2-3-2-3-2 sílabas poéticas ― para além de outros aspectos internos como as rimas em -or: flor, amor, cor, dor, todas rimas banais que ganham um aspecto crucial aqui por apontarem para uma espécie de conteúdo interior em comum a cada um desses versos. Quer dizer: o verso de 6 sílabas é, no geral, um verso que representa a metade do verso de 10 (não parece fazer sentido, eu sei, mas você tem que se lembrar que quando falamos de versos de 10 sílabas nós no geral falamos de decassílabos heroicos, com cesura na sílaba 6). Assim, a sequência 10-6-10-6 no início é uma sequência que por si só mimetiza a ideia de alguma coisa que está contida ou pode estar contida em outra. A sequência seguinte, com versos menores feitos de 2 e 3 sílabas poéticas, juntas resultam num verso de 5, que é um número de todo modo próximo do de 6 nos versos anteriores mas que guarda consigo, todavia, graças à disposição cortada ("Esta cor / anômala" e não "Esta cor anômala"), novamente a ideia de que uma coisa contenha a outra, como se, graças à fratura efetuada, pudéssemos observar melhor. Ou seja: enquanto no início do poema nós temos uma disposição bastante comum (mesclar versos de 10 sílabas com versos de 6 é combinação corriqueira), nas próximas nós temos um movimento de afunilar o poema e adicionar um ritmo entrecortado.

Um terceiro e último exemplo, a priori um pouco bobo mas realmente muito bem realizado ― e aqui eu basicamente sigo a interpretação de Paulo Antônio Vieira Júnior em sua tese de doutorado (ótimo estudo, aliás) ―, especialmente quando você observa como a autora subverte um gênero textual vendido como sendo para mulheres ― as receitas culinárias ― e o transforma num poema erótico. Chama-se Bacanal e está incluso em Baco e Anas brasileiras:

 

         Cheiro verde:

         salsa e cebolinha

         refogadas na manteiga

         e açafrão.

 

         Bem temperado,

         um espetinho

         no coração.

 

         O fogo aceso,

         (Debussy

         com creme chantilly

         de sobremesa)

         ele vai comer:

 

         100 gr de fermento flesh-

         man

         pra crescer.

 

E aqui, senhoras e senhores, nós temos uma maneira extremamente inteligente de se compor um poema e ao mesmo tempo veicular uma poderosa crítica social sem necessitar baratear nem um nem outro.

 

*

 

Ao redor, o que vemos? Ah. Ao redor nós observamos uma turminha boa de poetas da qual nós podemos extrair, no máximo, alguns momentos acidentais que não conseguem demonstrar qualquer esboço de interesse mais alongado que seja para com a obra produzida. Gente ruim, em suma, que produziu uma ou outra coisa legalzinha. Poderiam perfeitamente estar de fora, e, caso o leitor realmente não aceite a maneira pura e simples com que eu os incluo ― isto é, de relance, fazendo vista grossa ―, então ok. Eu realmente não vou perder meu tempo tentando dizer o contrário.

Mas vamos aos nomes.

Eu dizia que a segunda metade do século XX foi quando finalmente a literatura goiana como um todo engatou, e o surgimento de uma gama considerável de nomes em nossas letras já o atesta de maneira clara. Embora eu não seja entusiasta da obra de nenhum deles, devo reconhecer que são nomes que, ainda que dentro apenas dos limites geográficos do Estado, possuem sua importância. Valdivino Braz é de 42; Aidenor Aires é de 46; Delermando Vieira, Brasigóis Felício e Gabriel Nascente são de 50; Edival Lourenço é de 52. Dos integrantes do GEN, cumpre lembrar que Yêda Schmaltz é de 41 e Heleno Godoy é de 46. (Carlos Rodrigues Brandão viveu em Goiás de 67 a 75.) Outros nomes que seriam dignos de nota seriam o de Ciro Palmerston, de 44, e Ubiraja Galli, de 54. (Tagore Biram é de 58.) A próxima década, que também possui seu interesse, traz Pio Vargas em 64 e Edmar Guimarães em 68. Jamesson Buarque, de 73, é recifense mas se naturalizou em Goiás. Miguel Jubé é de 87, Kaio Bruno Dias, maranhense, é de 90 e Walacy Neto de 92.

Esses são alguns apontamentos pra você ter mais ou menos uma ideia. Leo Lynce morreu em 54; Cora Coralina é de 1889, mas seu primeiro livro só foi publicado em 1965; o poema de João Licino que citei é de um livro chamado Você… você…, de 33;  o de João Antonio Neto, de um livro de 44; os de Benedito Odilon e de Regina Lacerda foram publicados pela primeira vez no primordial estudo de Gilberto Mendonça Teles, A poesia em Goiás, de  64 (e Mendonça Teles é de 31; Saciologia goiana, de 82); Afonso Félix de Sousa é de 25, e Íntima parábola de 60; como dito, José Godoy Garcia estreou em 48 e José Décio Filho em 53; por fim, Joaquim Machado nasceu em 29, Teresa Godoy em 31 (Violetas violadas é de 96) e José Ferreira da Silva em 40.

Mas vamos aos poemas.

De Aidenor Aires eu lhes mostro o admirável tom apocalíptico de "Breve monólogo sem epílogo":

 

         Eu também venho ferir este menino.

         Venho tirá-lo à força do teu ventre

         para lançar em fúria sobre o campo

         deste velho planeta destroçado.

 

         Eu também venho: noturna é minha origem.

 

         Eu trago a fome e o canto angustiado

         pois branca e rubra oscila em minha lira

         a carne dos lençóis, perdida alvura,

         o sangue do teu peito, rosa e vinho.

         Eu também venho ferir este menino.

         Eu também venho fechar os seus caminhos.

 

Não é só o título do poema que é horrível. "a carne dos lençóis, perdida alvura" também é, e eu vou um pouquinho além: é esse naipe de verso que você vai encontrar na poesia do autor praticamente toda. Nossa sorte é que a limpidez com que o poeta conduz o restante dos versos, e a fonte de interesse que ele consegue incutir graças ao "Eu também", salvam o restante.

De Valdivino Braz há um momento de "As jóias de Netuno" em que, graças ao uso de palavras raras, em especial proparoxítonas, concentradas num mesmo trecho, o poeta consegue transmitir a ideia de opulência com felicidade peculiar. Veja:

 

         Sinistra massa, mista

         de crustáceos e moluscos ―

         lagostos pedúnculos de antênulas,

         espongiários espantos.

         De hábitos solitários e anêmonos,

         de celenteradas pedras,

         isto de florir-se

         o reino das actíneas.

         Outra é água-viva,

         mija-vinagre,

         urtiga-do-mar,

         isto de queimar.

 

Claro que um efeito desses só acontece pois nós temos uma mescla inteligente de palavras oxítonas também fechando as frases, e isso faz com que o momento recortado do poema se cristalize de maneira positiva. O problema é quando um momento desses está acuado ali no meio de um poema de não sei quantos versos… Como eu dizia, pérola lançada aos porcos. E que nem é lá essas coisas, eu preciso ser sincero: existem momentos muito mais felizes de poemas assim, barroquizantes, macarrônicos, nos poemas iniciais de Décio Pignatari, por exemplo. Pois o que realmente pega é que um efeito desses só funciona se você o recorta com muito cuidado. Não só o cuidado de fazer com que aquilo ali flua e encante mesmo quem não entendeu patavinas, mas também o cuidado de fazer com que aquele leitor que eventualmente resolveu abrir um dicionário não se decepcione com o que aqueles termos aparentemente encantatórios queriam dizer.

Já Brasigóis Felício nos deixou "A máquina ruminante", um poema irretocável:

 

         No mar revolto

              dos dias

         o nosso medo

         deita e rola.

 

         O nada assusta

         o que no nada

              mira

         o seu ser absoluto.

 

         No mar das vítimas

         somos tonéis

         de vísceras em pânico.

 

         Tudo no tempo diz

         que nosso espantos

              é milenar,

         e de raiz.

 

         No mar do que somos

         o pouco que fomos

              se completa.

 

         Consola saber

              que existimos

         como um milagre

              que anda.

 

Versos como "No mar das vítimas / somos tonéis / de vísceras em pânico." servem de ápice não só para a poética do autor como, também, para a maioria dos poemas escritos na época. Pois, de fato, a impressão que fica é que toda a geração de poetas a que Brasigóis Felício pertence quereria ter escrito este poema. Tudo aqui está na medida certa, da ousadia das metáforas às pinceladas prosaicas (por exemplo "deita e rola", "de raiz" ou a referência a Guimarães Rosa em "no nada / mira").

Irmão de Brasigóis, Goiamérico Felício também deixou um curto poema que diz tudo o que tinha que dizer sem enrolação nenhuma. Chama-se "Permanência" e está incluso em Do exercício de viver:

 

         Este suor tanto pode

         revelar o medo,

         acusar labuta;

 

         este cheiro tanto faz

         suscitar o cio,

         destilar a vida,

         num repente de busca.

 

O leitor fica agradecido que o poeta tenha conseguido dar a volta por cima e transformar um início mediano numa segunda estrofe prenhe de agradáveis surpresas, como por exemplo a assonância em I e aliteração em S de "suscitar o cio" (que se beneficia do som de S em "faz" e em "destilar" do mesmo modo que, desse penúltimo verso, também coopta os I's) ou então a maneira como as consoantes de "acusar labuta" se mesclam em "busca", em especial o C de "acusar" e o U.

 

*

 

Se você se contorceu com o pequeno interlúdio apresentado, pode se acomodar novamente. Agora é hora de falarmos de Pio Vargas, praticamente uma lenda em terras goianas graças à sua morte precoce e graças ao vaticínio de Leminski de que Pio Vargas seria seu sucessor. Mas aqui, antes mesmo que você esboce qualquer reação, é preciso se atentar que embora na obra de Pio Vargas também possamos ver com muita clareza aqueles momentos facilitadores e certo modo imbecilizantes que a poesia de Leminski em seus momentos mais baixos ostenta, nós também somos capazes de ver aqueles instantes em que a densidade linguística, tanto conteudística quanto formal, adquire uma força poderosa e Pio Vargas consegue compor poemas tão memoráveis quanto "Iceberg" ou "Sintonia para pressa e presságio". Esse, aliás, o paralelo que realmente deve ser sustentado entre ambos os poetas, e não simplesmente um paralelo biográfico que se limitaria a constatar que, afinal de contas, Pio Vargas e Paulo Leminski foram dois camaradas bastante simpáticos, e, portanto, a sintonia entre ambos deve estar mais ou menos por aí.

Não, não, nada disso. Anatomia do gesto, de Pio Vargas, é o único livro que consegue bater de frente com os melhores de Heleno Godoy, às vezes me dando a impressão de que consegue uma concretude enquanto livro e uma estrutura interna ainda mais bem pensada e consciente que em Heleno. Sei muito bem que com Heleno Godoy, graças à constância produtiva e mesmo à abundância, é seguro dizermos que é poeta muito mais consumado do que Pio Vargas foi. E aqui não cabe nem tanto sairmos pela tangente daquelas desculpas a respeito da precocidade, pois se Pio Vargas foi precoce, Heleno Godoy o foi igualmente ao entrar com 17 anos para o GEN. Na verdade, essa coisa toda de uma vida inteira que poderia ter sido mas não foi é muito bonita se você for prantear suas pitangas longe de águas literárias. Posso estar parecendo um pouco ríspido, mas a literatura, já dizia Harold Bloom, é uma atividade opressora, e não existe espaço para aqueles artistas que eram simplesmente precoces ou que tinham um futuro brilhante. Tudo o que interessa à literatura são resultados. A pergunta que devemos fazer não é se Pio Vargas, com 50, 60 anos, se tornaria o maior poeta goiano ou não, pois ele infelizmente não chegou lá. Devemos nos perguntar se, com a obra que ele nos deixou, e sem qualquer maneira de querer adequá-la à pouca idade ou qualquer coisa do tipo, ele produziu boa literatura.

E minha resposta é sim, ele produziu. Existem momentos realmente frouxos em Fábula fingida, e, já em A casa, nós observamos que em alguns momentos Heleno Godoy estabelece um diálogo cabralino próximo eu diria até demais, por vezes sucumbindo ao resultado final da pugna da angústia da influência, para evocar Bloom mais uma vez. E aqui por dois motivos simples: o primeiro deles é de que a angústia da influência, que é algo que concerne muito mais ao poeta do poeta e não apenas ao poeta (de modo que aquelas perguntas jornalísticas de se o poeta entrevistado sente ou não angústia da influência são no mínimo estapafúrdias), é uma característica própria dos grandes poetas, uma vez que a angústia da influência é, em termos bloomianos, um embate (um agon) e não um ser deglutido pela figura do poeta anterior. Se você consegue se levantar e revidar as porradas que a tradição literária te dá, ou se você consegue pelo menos agir em legítima defesa e bloquear um ou outro tapa, então você é bom. Quem não é bom sequer esboça reação. Logo, se na poesia de Heleno Godoy nós conseguimos ler um embate entre sua poesia e a de Cabral, então é porque não estamos diante de um poeta fraco. Além do mais (segundo motivo), se ele estabelece esse embate e perde em alguns momentos, em outros ele se sai muitíssimo bem, inclusive compondo instantes de alto valor poético que conseguem beber na fonte cabralina de maneira criativa.