o que fica
faz algum tempo estou louca
com a ideia de ter trombose muitas mulheres estão
tendo trombose nos últimos tempos
eu penso que poderia ser eu a próxima
poderia ser eu então penso tanto que começo a pensar
que pensar tanto pode atrair o que não quero atrair mas quanto mais tento
não pensar mais penso
a verdade é que desde sempre tive muito medo
de ter que amputar alguma parte minha dizia preferia morrer
dizia eu prefiro morrer do que isso
agora penso que talvez seja porque depois de já ter perdido tanto
não aguentaria perder uma parte do corpo não aguentaria
o horror de um ex-membro
a coceira fantasma
uma nostalgia espessa no lugar de tudo o que aquela mão
já encostou e agora não está mais em lugar nenhum
todos os chãos pisados por aquelas pernas
resquícios que ficam nas células do corpo e agora não
estão em lugar nenhum
outro dia falei para uma amiga que achava engraçado
quando anunciavam uma promoção imperdível
porque nada no fundo é imperdível a gente perde tudo e mais
um pouco desde sempre eu mesma nos últimos anos
venho perdendo amigos perdendo amores perdi
meu pai algum dinheiro alguma dignidade
e de tudo saí ilesa
embora não intacta saí ilesa como quem atravessa
o deserto do saara como quem corre a maratona e chega à linha de chegada
aos pedaços derramado estropiado mas chega
e aos poucos recupera o fôlego aos poucos se recompõe
vai enfim se adaptando à ausência do que ficou
pelo caminho
não sei dizer se os amputados algum dia param
de sentir dores fantasma
de coçar as ausências eu não sei eu nunca conheci
um amputado mas já me perguntei como seria me apaixonar
por um será que eu amaria a ausência de perna
dele como amo a presença da outra perna
será que amo aquele espaço vazio que é também ele
será que me dói saber que aquela perna dele
me escapa
porque ela eu não conhecia não vou chegar a conhecer
nela eu não encostei
o que me faz pensar que nunca vou encostar inteiramente
em seu corpo pois uma parte dele nunca conheceu o meu
toque
será que me acostumo a ser abraçada com um braço só
e sentir o desamparo em um lado do corpo
enquanto o outro é acolhido
ou vou aguardar sempre o carinho da outra mão
enquanto essa repete seus gestos viciados os únicos que conhece
sem alcançar o potencial da mão que não
existe mais
não sei dizer eu nunca conheci um
amputado mas raramente consigo tirar os olhos deles
quando os vejo na rua sua habilidade exacerbante
em ficar em pé com uma perna só
em acolher um braço mecânico como parte sua
em não perder o equilíbrio a elegância
não perder aquilo que não se perde quando todo o resto já foi
perdido
e nessas horas eu lembro da frase que meu pai repetia
saudade é aquilo que fica daquilo que não ficou mas pai
o que fica
às vezes é mais do que aquilo que vai
o que vai às vezes transforma o que fica
radicalmente
(uma perna por exemplo se torna radicalmente outra quando
se torna a única perna
do corpo
um braço precisa aprender a ser dois braços quando
se torna o único braço
do corpo)
eu também não sei o que fica porque me parece que ainda não
perdi tudo o que tenho para perder talvez aí
quando tudo estiver perdido eu finalmente entenda
o valor da palavra
saudade
ou outras que vão nascer a partir das que precisei perder
e que se apagam como estrelas mortas há milênios e ainda um tanto
brilhantes confundindo a nossa visão que não sabe discernir
entre uma estrela viva e uma estrela
morta
talvez pai seja por isso que eu tenha tanto medo de perder as pernas
ou de perder os braços porque no fundo
venho pedindo à vida
que me tire tudo
tudo que pode ser tirado de alguém
pois quero entender o que sobra
eu quero ver o que sobra pai
quando não sobra nada
quando no chão brilha apática a esmirrada
palavra saudade
e embaixo dela eu de repente encontro
um alçapão
fim de festa
isolada na minha sibéria particular
há quanto tempo
tanto
cachorros imaginários a abocanhar meus ossos
que não são usados para mais
do que uma dança por década
uma dança em câmera lenta
contra a parede branca
que lambi muitas vezes para ver se algum dia escorria
uma presença
abro as pernas pro passado
como se fosse fim de festa
é o fim da festa
e ele vai me comer muitas vezes e eu vou
olhar pela janela imaginando um grandioso
salto interminável para boca do
nunca
nunca
nunca mais
colocar os pés no chão
uma mulher correndo
toda a felicidade do mundo está
em mim é só ver
o sorriso que escorre pelas minhas pernas
o sorriso que afrouxa as articulações
uma mulher correndo
eles sabem
nunca é só uma mulher correndo
que dizer então da que sorri
com os pés vulcânicos mastigando a terra
lambendo o tempo dos homens
como lamberia uma cria
fraca demais para se manter em pé
toda a felicidade do mundo mora em mim
mesmo quando meus dentes estilhaçados
vão se soltando pelo caminho
e eu mesma os pisoteio como pisotearia
um rio de pérolas
a mão incurável
as meninas para tornarem-
se mocinhas precisam
aprender a não crescer
tantos dentes nas gengivas
vazias (ou os homens olharão
de longe os lábios delas) as meninas
para tornarem-se mocinhas
precisam aprender a não
deixar uma perna vazar
entre as outras (ou dirão delas
que se movem além do
necessário) as meninas
para tornarem-se
mocinhas precisam
aprender que um útero não
é um útero mas uma
granada adorada
por deus
(ou os homens as trocarão
por terroristas)
para tornarem-se mocinhas
as meninas mastigam
as próprias
febres
pulo do gato
venho desossando os espaços
que ocupamos juntos como a criança
intrigada com as mágicas do mister m
reprisa e reprisa a cena em busca
do pulo do gato aqui o gato não pula
aqui o truque batido e engessado se repete
conforme o tédio dos deuses
mas meu bem eu estive em crise e lembrei de você
trouxe a lembrança mais límpida trouxe o ódio
mais ártico estampado na ânsia pelo retorno
do que não chegamos a ser
venho ninando nos braços o meu amor
necrosado ainda na espera
dele acordar
e me contar uma história
ridiculamente
nova
ode ao salto
quando os cavalos mergulhadores são obrigados
a mergulhar eu li
que para que eles não fujam e não desistam
na hora h
o chão lá de cima se abre sozinho
de forma que não há outra saída
a não ser descer e entrar de cabeça
na água lá embaixo
e é só assim que os cavalos mergulhadores não
desistem nem recuam nem mudam de ideia
porque na verdade eles não sabem
que estão prestes a cair
eles não sabem que serão jogados de tão alto
encurralados em uma situação onde
não existe retorno não existe
plano b exceto abraçar a queda agora
já que ela está aqui e exige
ser experimentada
e eu pensei que se eu fosse um cavalo
e fizessem isso comigo da próxima vez eu
é que não subiria as escadas
eu é que não pisaria lá em cima de novo
sabendo que mais uma vez o chão
poderia se abrir e eu mais uma vez
seria obrigado a saltar
talvez os cavalos sejam inocentes e não
pensem que se um homem fez uma coisa uma vez
ele vai fazer outras vezes também talvez os cavalos
sejam benevolentes e queiram dar novas
chances aos homens ainda que eles não mereçam
e continuem jogando os pobres cavalos
lá de cima
para boca do mar
na verdade pensando bem eu também
não sei se eu li isso ou se imaginei quando
vi a fotografia de um cavalo saltando
e concluí que não haveria motivo pra um cavalo
saltar de bom grado espontaneamente
os cavalos não são suicidas como nós somos
os cavalos têm algo incrível chamado
instinto de preservação
então a não ser que fossem obrigados não saltariam
os cavalos mergulhadores querem ser só cavalos
foi o que eu pensei
eles querem ser só cavalos
no chão onde podem segurar a vida com os cascos
potentes e exercer suas habilidades de galopar em alta velocidade
mas talvez eu é que não entenda nada
de cavalos e de saltos
e talvez haja saltos que não são suicidas
talvez os cavalos entendam alguma coisa
lá em cima e saltem mesmo porque querem
porque o chão não é o bastante para os seus
cascos potentes e suas habilidades de galopar em alta velocidade
talvez eu devesse ser mais como os cavalos
mergulhadores e me lançar de alturas inconciliáveis
para tentar entender
alguma coisa
que o chão não permite
que eu entenda
pequena princesa
se você diz que vem às nove, por
exemplo, desde as sete estarei
enrolando os cachos que não
nasceram para ser cachos e preparando
a comida com receitas que nunca
aprendi e retirando os pelos
de todos os lugares onde não se
pode ter pelos e deixando à mostra
a pele que precisa ser
pelada pelando a pele impelida
pelo relógio marcando nove horas
e alguns minutos que é quando
descubro que na verdade você
não vem e meus pelos agora
entopem o ralo do banheiro
desejando não terem sido
expulsos da vida por tão
pouco.
amanhã quem sabe
os domingos incendiados começam cedo
gosto de fingir que não sei
pra onde ir
gosto de fingir que são meus
últimos dias
amanhã quem sabe
visto um mapa por dentro
e espero a próxima coceira apontar
minha nova direção
o que soube está morto e enterrado
o que quis está morto e enterrado
o que tive está morto e enterrado
parece que esqueço alguma coisa
não sei se as chaves o fogo ligado
mas saio mesmo assim
porque não existe
outra forma de sair
que não seja esquecendo algo
indecifrável
trégua
cubro o vazio para que ele durma
em paz
não tenho ossos
para tantas quedas
e o que tinha já foi
cinco ou seis lutas atrás
hoje o dia amanhece mudo
os inimigos com as tropas
lá fora
mas ainda repito involuntária
os gestos
contra o silêncio
do oponente sem rosto
tenho dores medievais
não escuto mais berros
costuro partes que não se pertencem
estou límpida e aniquilada
mas parece que vim
para ficar
it's a match
faz 2 semanas que não sinto o cheiro do céu
parece que os dias não são suficientes pra grande parte
das pessoas embora pra mim eles sobrem eu tento
enfiar nas horas tudo que posso mas ainda assim
os dias gelatinosos melam
a minha vontade
faz 2 semanas que não lembro como se encosta em
uma pessoa às vezes até queria ser
daquelas que namoram há tantos anos
que já não falam eu mas sempre nós
nós vamos
nós não vamos
estão sempre tão juntos não perdem programas por falta
de companhia
eu nunca falo no plural mesmo quando estou acompanhada
porque mesmo quando estou acompanhada eu não estou
acompanhada
eu estou no canto da sala mesmo quando estou no centro
e estou muda mesmo quando estou cantando
estou paralisada enquanto danço ensandecida sobre a mesa no final da noite
um baile de favela
people say I'm the life of the party
o silêncio de mil desertos do saara
em longos áudios no whatsapp
ela responde com um emoticon de coração eu quero enfiar o coração dela
na privada ou esfaqueá-lo até que dele saia (puta que pariu)
uma palavra
digo que vou dormir mas continuo aqui
os despertadores do mundo vão despertar
para vidas meticulosamente preenchidas
nas minhas horas um buraco mais fundo que o buraco entre as pernas
de deus
enquanto o celular apita
it's a match
mais um
você e um desconhecido qualquer poderiam ter gostado
um do outro
as últimas consequências
em outras circunstâncias a verdade
é que eu queria mesmo atear fogo ao seu
discernimento até que dele não sobrasse
nada eu queria decapitar a sua obediência morna
a sua benevolência pegajosa como a dos
deuses de ombros paternos e nenhum rosto
em outras circunstâncias eu teria mesmo chupado
a sua decência e fincado sobre ela
a bandeira da insanidade
teria aberto pra você de bom grado a granada
que me colocaram entre as pernas e acompanhado
a sua explosão com a mais tranquila curiosidade
eu queria ter rido escandalosamente como riem as histéricas de freud
como riem as bruxas queimadas na inquisição
eu teria rido com o riso mais pontiagudo
que já invadiu os seus ouvidos enquanto você
desmonta a sua montada figura de homem
a sua controlada figura de homem e entende
que aqui não há espaço para o seu entendimento
em outras circunstâncias eu teria mesmo te levado amor
até as últimas consequências e você morreria sabendo
que não existe melhor lugar
para se morrer
do que entre as pernas de uma
mulher |