©germano neto
 

 

 

 
 

 

 

 

infância

 

 

a santa desce da nuvem

& com violência enterra o pecado nos meus olhos

como a placenta ocre lêndeas o Verbo

 

vó preta macera patuás me benze

com alquímicas negras vogais

desamarra a memória do tronco (há um negreiro

navio que à noite aporta no seu sono)

mas ainda sente o estalido da chibata: gritos

porejando na mordaça

 

vovô se aferra ao colchão intumescido

de fado & notas inflacionadas chora

o mar & a todos xinga com seu renascido

sotaque português

 

na beira do córrego vejo a vida: a véspera do bote

hipnotizando o sapo

 

mamãe bate roupa no tanque & sonha

com a cesta de alimentos um roach gordos

dízimos no ofertório

os pés de barro do domingo

ainda são embalados pelo saltério

 

na primavera papai enlouquecerá

& caminhará nu pelo quintal catando o eco das pedras

 

meu nome é de imperador

nas mãos do armilo três vezes

a infância regressou ao futuro

minha alma começa a ser íngreme me escalam

os elementos as vidências soturnas da inocência

o rútilo esperma do anjo caído

 

 

 

 

 

 

um rapaz latino americano

 

 

os pretos me aceitam branco

os brancos me tratam servo

a certidão atesta pardo

os índios me convidam irmão

deus me adestra cão

cavalo me honra o exu

oxossi me guarda seu filho

homem a mulher me pragueja

 

 

 

 

 

 

2016

 

 

tudo aconteceu muito rápido

numa semana

os fascistas tomaram o poder

na outra ana foi embora

perdi o emprego

tive que pegar minhas coisas

meu semblante orgulhoso

& guardar no porão

da casa de minha mãe

beijar a mão morta de meu pai

 

um par de dias outra notícia

o amigo também perdera o emprego

& havia se matado

outros chegavam sem aviso

cheios de fúria & de fome

cansados demais para pegar em armas

novamente

josé me encarou com a vertiginosa lucidez

dos loucos & disse vou a brasília vou matar o presidente

foda-se a morte foda-se o cárcere

tenho a companhia de todos esses anjos

a me perdoarem a me guiarem

quem entre nós reinventará

não a roda mas a guilhotina?

 

minha geração sempre deveu aos deuses

& ao mundo

 

olhos de cão a quinhentos kilômetros do mar

 

 

 

 

 

 

retrato do poeta usando anúncios

de emprego pra limpar a bunda

 

 

um x-burguer fiado & cinco pares de roupas melancólicas

olhos imprestáveis indo embora na enxurrada

ninguém ainda atirou no presidente

no rádio um poeta paulista fala sobre ezra & a usura

os anúncios de emprego ao menos

servem pra limpar a bunda

 

na torre da igreja a ave maria avisa: 6 p.m.

o medo seguiu seu cheiro &

te encontrou dentro da nuvem de amoníaco

você nunca precisou de muito

uma garota acordes alguma grana

satisfeito o rio divisando intocado céu

 

a grana poeta

sempre a grana

sem ela a nudez & as uvas

não são o ponto de partida do poema

o filho do homem não tem onde

reclinar a cabeça

o índio troca a filha por uma garrafa

de cachaça & cospe

seus dentes podres boiando na alameda

o branco penhora o brasão & as armas

o negro continua dando voltas & voltas

ao redor do baobá

percevejos ponderam entre a ásia

& os seus fundilhos

no coração só floresce o inimigo

 

os sinos na torre da igreja avisam: 6 a.m.

no rádio um pastor diz havendo línguas, cessarão

coturnos verdes já partilharam a lua

a serra & o enigma vigiam

os homens que têm fome & são mansos

esquecidas do molotov & da pedra

suas mãos forjam versos

empilham caixas

limpam privadas

nunca mataram deus

 

um anjo tosse entre as suas omoplatas

há um coldre vazio & um cardume de peixes psicóticos

se debatendo embaixo da cama

os mortos com sua voz de náusea & vapor

em vão tentam te avisar que é preciso fugir

que os aviões chegarão do norte para bombardear a cidade

 

você finalmente se levanta

pega o jornal

& caminha até o banheiro pra dar uma cagada

 

 

 

 

 

 

poema dos 40 anos

 

 

então é só isso

homens e outras coisas frágeis

que o céu devolve

às avenidas da terra

 

 

 

 

 

 

genêsis; cap. I

 

 

nego d'angola

encontrou na cachoeira

a índia guerrera

ele tava com cara

de bicho assassino

depois de correr

3 dias sem parar

nem pra beber

água fugado

do capitão do mato

ela tava com cara

de bicho acuado

bugra montada currada

aldeia queimada

marcada de esporas

 

ele falava banto

ela borun

de algum jeito

se entenderam

& fugiram dos brancos

pro fundo bem fundo

da mata escura

ela pediu pra khamaknian

confundir o caminho

do inimigo

ele pediu pra oxóssi

lhe mostrar

os caminhos escondidos

da floresta

& da fartura

 

um nkongo

uma nhorá

duas flechas

os marét

os orixás

 

assim começa

o mundo

 

 

 

 

 

 

troque os lençóis

 

 

assim que abri a porta ela sorriu & disse

caralho você só ouve música de velho

foi ao computador desancou meu chet baker

escolheu uma sequência de funk

uma voz gutural cantando

vários homem bomba bomba bomba aqui

vários homem lomba lomba lomba lá

as paredes começaram a se afastar fugindo dos graves

 

antes dela chegar

no quarto só havia meu riso sob as botas de deus

as térmitas devorando a angústia dos livros

à minha esquerda os dez mil tropeços do amor

chegando exaustos de uma vida anterior à liberdade

 

não entendia o que ela via em mim

mais uma vez eu tinha perdido tudo

passava os dias lendo o livro de jó

o eclesiastes

ou vendo pornografia na internet

mas ela sempre voltava

pra gozar em minha boca ou pra me alimentar

me contar suas estórias do jequitinhonha

sua vinda para bh os longos anos de superações

até se tornar advogada

o ritual era o mesmo

banho depois só de calcinha à minha frente

passava creme no corpo inteiro

era proibido tocá-la durante esse preâmbulo

só me deixava observar de longe

a chama se encorajando no ópio dos olhos

tocando uma punheta devagar

 

dessa vez trouxe uma novidade

óleo de maconha amiga deu passou na bucetinha

agora mete gritava ai meu deus mete mete mete mete

tanto gozou perdeu a conta achou que ia morrer

falou que estava sentindo choques nas pernas

dispense logo essas vagabundas

que vêm aqui quando não estou

porque agora você é meu entendeu

falou enquanto remexia a bolsa

precisava ir embora logo

estava esgotando as mentiras com o noivo

mas prometeu voltar segunda hora do almoço

o táxi já buzinava na rua

não me beija porque vai fuder minha maquiagem

te amo se cuida te amo meu anjo decadente

deixou cem reais em cima da mesa

coma alguma coisa por favor

e troque esses lençóis

não vou me deitar em cima do cheiro

dessas suas vadias

 

 

 

 

 

 

a poesia nunca salvou ninguém

 

 

no último andar do prédio

meus amigos

2 cachimbos

100 pedras de crack

 

(minha morte passeia entre eles

com um cigarro frouxo na boca)

 

 

 

 

 

 

o nosso amor

 

 

foi-se

coxo & proscrito

pelos arrabaldes pelas trincheiras

pela entranha

 

deixando pra trás

tudo o que é inexplicável

 

 

 

 

 

 

loreley

 

 

no lado leste da cama os ratos da insônia

roem sem pressa a corola azul das solidões

se durmo me acua o mesmo repetido sonho onde a fera

se deita aos meus pés engano os deuses &

envelheço nos teus braços

na última vez em que vieste agosto era quente & belo uma luz

aflita gritava em teu corpo de menina gozamos

juntos a hora absurda indo-se dos meus olhos

depois relembramos histórias rimos choramos & você se foi

deixando girassóis & um bilhete "por vezes tenho pintado mentalmente

telas em que te protejo te abraço forte te salvo e te livro do mundo

por outras me assusto porque presumo que essa seja uma das formas

que meu coração escolheu pra dizer adeus"

 

 

 

 

 

 

diane 35

 

 

em certos períodos ela ficava meio louca

ladainhava édens santos inexistentes

dizia que iansã & yemanjá estavam brigando

pela cabeça dela

nas mãos transidas o par de agulhas longuras

urgia cachecóis & extravagâncias

saiph betelgeuse oeste vésper parolim uauás

olhos enfebrados no firmamento nomeando

sete de paus às de copas dionísio carta dez

 

guardava-se numa castidade imperturbável & ávida

por abater o animal encerrado em mim

conversava descontínuas horas com meu pai morto na varanda

& me comunicava as represálias do velho

ele diz que você está bebendo e usando drogas demais

eu retrucavamas nem depois de morto esse filhodaputa

me deixa em paz

 

era a época em que a lua parecia não nascer

& ela não me deixava dormir

descrevendo o bestiário imemorial à espreita

na escuridão

ouvia retinir cascos carrancas caudas bilioso

algodão represando as narinas do semovente cadáver

há muitos anos velado na sala

 

eu me levantava puto amanhã

interno essa doidamas acabava me acalmando

me deitava na rede fumando bebendo vendo

ela espalhar um sortilégio de eufemias folhagens fragrâncias

falanges de seres terrulentos pela casa

 

tinha 25 anos & no início achei que ela precisava

de um deus ou de um pai

eu havia acabado de chegar do século XX

& não me encaixava em nenhuma das duas categorias

 

um dia ela trouxe campânulas agraços o vagido

do primeiro arco-íris

acorrentou tudo ao meu coração

disse que agora tudo ia ficar bem

que tinha ido ao rio da minha infância

& atirado nele meus mortos meu fundante

cansaço minha treva & aço

 

 

 

 

 

 

hotel itatiaia blues

 

 

                            ouvindo P.J. Harvey

 

 

carrego sóis manhãs

que só nasciam com a sua chegada

ruidoso lume agitando guizos & ágatas

expulsando os visitantes abismados na

minha nudez sem fôlego

estremecida de ópio & paranoia

 

cativo de tuas pequenas mãos

eu recolhia o arrebol

& o suicídio

apascentava tua voz sobre o peito

(lá fora o mundo era uma paisagem

brutal exaurindo os homens

 

carrego a mulher & seu rosto sem máscaras

correndo entre as árvores do parque

cavando o chão da infância & os chamamentos de abril

quando a mãe incrustava sermões nos seus ombros

& lhe mostrava o suor refulgente dos frutos

gotejando cores sem nome

carrego teu amante que nunca para de nascer tua redenção

que há de chegar sob a nuvem insaciada de azuis

tuas unhas puindo fantasmas nos azulejos assépticos

dos corredores do hospital

(você de novo me dizia do pesadelo descendo sobre a rosa

do fulgor da fuga constelando-se nas veias

 

carrego esquecidas gentes que viram

o céu desabar sobre os olhos da estátua

alianças penhoradas utopias de segunda mão

despejadas por falta de pagamento

o senhorio nunca dorme & me aguarda na portaria

arrancadas dos dedos dos mortos rebrilham as joias de família

minha diária é dois san marino & uma pedra

sob o boulevard segue o arrudas levando a merda

& os cadáveres da cidade

você escrevia poemas insulares no moleskine en la sangría del lino

nube y damnácion me mandava postais desperte com el llamado

de un cigarro y los horizontes que elegimos después de una pesadilla

& os navios partiam involuntários rumo à quinta estação

levando as pilhagens do desejo & seu quinhão

de mácula & despedida

 

carrego o revel torso de são sebastião

esfaqueado por michês numa alameda sem saída do barro preto

carrego um milagre sob as dobras da jaqueta

teu nome como uma oração desesperada vagueando

na minha cara vincada de porradas & incerteza

carrego notícias de outro século: ruínas gregas viraram cracolândia

carrego cannabis correrias camisinhas os dias

colidindo no éter minha alma despenhada chapinhando bêbada

sobre o parapeito papelotes de dez transações de haxixe iggy

& cobain em k7s decadentes

 

carrego o animal que vai discretamente ao banheiro

& vomita os restos da virgem carrego teu subúrbio

congestionado de aeronaves & esqueletos rancorosos

carrego a foto do rimbaud negro o verão que nunca mais

retornou do norte aquele que acorrentado ao feto

chorou no colo de todas as vulgívagas

lolitas manchadas de acne & batom

seus rostos foscos bafejando contra o vidro do carro

carrego o retrato empoeirado onde mamãe sorri

sem dentes carrego este sonho intranquilo

apunhalando o ocidente & o às de copas

 

carrego o delírio da praça da estação às 3 da madrugada

a voz de deus dançando na curva da noite

talhando imperecíveis pornográficos hieróglifos na febre

rubra dos corpos (vem, me fode...

 

desapressadas as paredes do hotel assistiam

anjos andróginos deambulando no teu cheiro

a tarde fugindo para dentro do teu sexo

meus dedos caralho língua precipitando-se

ansiando alígeras moradas na nuca cu coxas costas boca buceta umbigo bicos

dos mínimos seios

a sombra do teu primeiro gozo devorava a alvura

riocorrente além da pele

 

carrego maior que o mar um grito de dor & fogo

consumindo todos aqueles que te tiveram ontem hoje porvir

(quando você se for

os amores loucos nunca esquecidos serão um frêmito sob o assoalho

sórdido me mordendo os calcanhares

babosos de mágoa & de esperança

 

carrego um par de reticências

o futuro em baldeação

nos espelhos

a lâmina casta sonhando o sangue dos noivos

 

(colho flores duvidosas por entre os monturos do éden

& as serpentes rastejam no brilho incólume da sala de estar

 

mas também carrego aragem & desassombro reparações

renitente olor em meus ouvidos marés

que se arrebentam incansáveis

devolvendo à praia todos os corações que se renderam

 

por isso eviscero vogais na sede

dos teus amargos escravos

& o músculo tamborila uma

venérea canção no teu ventre

 

por isso estou sozinho na chuva com mãos

que não soam

 

por isso desinvento o sul

guardião do canto impiedoso dos relógios

volto ao antes de ti (vésperas astrolábios

restando nas latitudes) & te tenho em tua mãe

o caos ainda empalidece a infância do abismo

& te vejo alentando os peixes agônicos & tardios

 

por isso te fiz este salmo impronunciável

 

por isso posso dizer: te amo

 

por isso não há adeus

 

segue em mim este perfume

pegadiço acalanto acordando

a memória

 

acordando este cego punhal

no flanco

 

 

[Poemas dos livros Os ratos roeram o azul e Retrato do poeta quando devedor do aluguel]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Gilcevi é poeta e músico. Nasceu e vive em Belo Horizonte. Publicou Os ratos roeram o azul (Letramento, 2016) e Retrato do poeta quando devedor do aluguel (Letramento, 2018). Também integrou a banda Carolina Diz com quem lançou os discos Se perder (2004) e Crônicas do amanhecer (2008). Atualmente é vocalista da banda Cadelas Magnéticas, que lançou recentemente seu primeiro disco, disponível em todas as plataformas digitais.