©edward hopper
 

 

 

 
 

 

 

 

ars poetica

 

 

os pequenos incidentes dos dias

não são mais do que dobras e vincos.

poema a poema, passo a alma a ferro.

 

 

 

 

 

 

mil novecentos e oitenta e cinco

 

 

nesse tempo, deus existia ainda

e tudo quanto era frágil respirava

loucamente.

 

havia sempre música

para os cleptomaníacos do coração,

cada menina, uma letra incompleta.

 

os rapazes cresciam

com olhos prateados

e totens erguidos nas dunas.

 

debaixo da saia das raparigas

havia flores rasgadas

e sonhos de cavalos bêbedos.

 

tão jovem, só o vento

— e as revoluções do amor

que beijo a beijo atraiçoávamos.

 

 

 

 

 

 

canção para um navio distante

 

 

o teu corpo brilha na noite,

como um navio clandestino,

à deriva pelo sono.

 

às vezes, na escuridão,

se a maré muda e o medo desperta,

o teu corpo ancora a meu lado.

 

abre no meu ser incandescente

uma ferida, uma ilha de sal,

uma passagem para o mar.

 

e sílaba a sílaba, meigamente,

verto o azul frio do lume

no meu peito naufragado.

 

à hora do vento, à hora da maré,

o teu corpo é sempre

o mais belo navio de cada noite.

 

 

 

 

 

 

lolita

 

 

naquela idade, ela é uma flor de fogo,

tão bela e maldita

quanto o amor.

 

aparelho nos dentes, beijos de menta,

desvanece-se como o balão de um chiclete,

os lábios feridos de sangue.

 

para atravessar a noite contigo,

a alma e só a alma

é o mínimo que te pede.

 

 

 

 

 

 

depois do amor

 

 

às vezes, depois do amor,

quando feras dóceis rondam o nosso sono,

e afastam os passos dos teus amantes,

 

às vezes, quando me encosto à nudez, exausto,

e tomo o peso às tuas palavras,

e fico sempre devedor,

 

às vezes, quando me inventas um nome

para que a madrugada chegue

e eu não tenha de morrer nunca mais,

 

às vezes, penso no deus que te perdeu,

e choro, às escondidas,

por ele.

 

 

 

 

 

 

pedidos de empréstimo

 

 

toda a noite, as vozes de poetas mortos

me emprestaram versos e canções,

numa insónia ardida até à madrugada.

 

whitman e pessoa, os mais insistentes,

cintilavam poemas distantes,

ecos de júbilo e melancolia a jovens bárbaras.

 

poderei devolver o vinho doce

a quem não o pedi?

quantas moedas vale um verso roubado?

 

toda a noite tapei os ouvidos

e supliquei ao cão que uivasse, até o silêncio doer

e a manhã voltar o rosto para leste.

 

 

 

 

 

 

relâmpago

 

 

se os dias tivessem côdea,

a infância saberia a sementes ou doce de amora,

no final de uma tarde de verão.

 

a vida nesse tempo era feita de coisas simples,

como perseguir os gatos, pé ante pé,

sobre os muros coroados de vidro verde,

 

ou ser mais azul nas asas das andorinhas,

que sossegavam a melancolia

na luz de manhãs onde sangrar era impossível.

 

não havia dor nem palavra inútil,

nem adão nem eva nem serpente,

nem a solidão vadia dos cães pelo pomar.

 

nada acontecia, os deuses repartiam a eternidade

com os humanos, o vento lavrava a seara

e mentia-lhe sobre a morte.

 

 

 

 

 

 

submissão

 

 

quando tinhas quinze anos e eu vinte,

na tua compaixão

pela minha sede,

 

deixavas-me lamber-te as feridas dos joelhos,

e fazer amor

com a tua sombra nua.

 

 

 

 

 

 

êxtase

 

 

o corpo aguarda, inquieto e tenso,

como um arco retesado,

o momento da chuva ardente.

 

enquanto os dedos ressuscitam

lugares desejados no escuro

ou relâmpagos primordiais.

 

enquanto no ventre se abre

a chaga onde o mundo inteiro

principia e dança e se multiplica.

 

e pulsam espasmódicas estrelas

e a boca embebeda-se e morre

sobre outra boca.

 

o momento que brilha tão cegamente

e onde o teu nome voa

incendiado com o meu.

 

 

 

 

 

 

a morte era uma desconhecida

 

 

estava só, sentada num café vazio,

escrevendo nomes e nomes,

num livro cor de cera.

 

era jovem, mas tinha gestos antigos

como a luz, e a sua boca

na boca dos vivos sabia a pó.

 

a morte era uma desconhecida

que fumava, cigarro a cigarro,

o último dia do outono.

 

 

 

 

 

 

epitáfio para um poeta

 

 

                            À memória de meu Pai,

                            João Braamcamp de Mancelos da Silva

 

 

semeaste estrelas e ceifaste a noite,

enganaste a morte e beijaste a eternidade,

uma sílaba azul de cada vez.

 

 

 

 

 

 

por ti, reparti a noite, o medo e o amor

 

 

por ti, reparti a noite, o medo e o amor,

nudez a nudez,

numa equação tão ínfima quanto perfeita.

 

recolhi todos os papagaios de papel,

destroçados pelo vento norte,

até nada mais ferir a praia.

 

roubei o fogo e voei até ao sol,

querendo beijar a chama límpida,

que só cresce no fim da tarde.

 

estendi numa corda as palavras,

em versos incendiados,

para que não tivesses de inventar o silêncio.

 

e menti-te sobre a morte e o inverno,

esperando que o dia de amanhã

cobrisse, brando, todo o horizonte.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


João de Mancelos nasceu em Coimbra, em 1968. É licenciado em Ensino de Português e Inglês (Universidade de Aveiro, 1992), mestre em Estudos Anglo-Americanos (Universidade de Coimbra, 1996), doutorado em Literatura Norte-americana (Universidade Católica Portuguesa, 2001), pós-doutorado em Estudos Literários (Universidade de Aveiro, 2006-2012) e agregado em Estudos Culturais (Universidade de Aveiro, 2015). É docente na Universidade da Beira Interior e escritor. Publicou vários livros de ensaio, poesia e ficção. Os seus interesses incluem Literatura e Cinema. É membro do PEN Clube Português. A sua página encontra-se em joaodemancelos.wordpress.com.