Dezembro de deserção

 

 

"O amor comeu minha paz e minha guerra.

Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu

verão. Comeu meu silêncio, minha dor de

cabeça, meu medo da morte".

 

João Cabral de Melo Neto

 

 

Eu soube que ela ia embora na hora em que ferveu a água do chá. Não foram os olhos quem disseram. Os olhos não diziam nada. Também não me disse nada a boca de dentes de ratinho, o nariz de buracos grandes, a pele de areia vermelha. Disseram-me as mãos. As unhas enfiadas no miolo da carne, os dedos sem cor nenhuma, de branco transparente, discordando do avermelhado do corpo inteiro, herança índia que ela nunca me contou. Eu vi nas mãos dela que ela iria embora. Que aquele era o chá derradeiro. Que a boca dela não encostaria mais em xícara daquela casa. Nem na minha boca, em parte nenhuma do meu corpo. Nunca mais ela sentiria o gosto salgado que dizia que eu tinha. Como se eu fosse um mar, carregasse o oceano dentro de mim. Ela me beijava e dizia que eu tinha gosto de mar. Que enfiar a língua na minha boca era sorver ostra recém abortada. Eu nunca tinha comido ostra. Socada naquela roça. Sempre terra, sempre horta, sempre mangueira saturada de fruta. Mar nunca. O meu andar tinha sido ali. As caminhadas pelo sítio, a mata do Divino, coalhada de tucanos, a cidade nos dias de domingo. O percorrer dela tinha sido o mundo. Rosa correu o mundo. Caminhou pelos retalhos coloridos estampados no globo que era do meu pai. Andou pela Índia, China, Guatemala, Filipinas, Argélia, Noruega, Turquia. A cada lugar marcava o corpo com uma tatuagem. Chegou na roça com a mochila azul nas costas, feito um caramujo carregado de casa e eu pude ver os braços. Ancôra, coração, peixe-espada, relógio, um índio americano. Quando as roupas da mochila dormiam no armário do corredor e Rosa na minha cama, vi as marcas do corpo inteiro. A arraia manta na barriga, o palhaço e a flecha nos seios, as coxas cobertas por desenhos tribais. Os pés eram jardins. Todo sortimento de flores, arbustos, borboletas púrpuras. A primavera morava nos pés de Rosa. E eu amei a primavera. E também o inverno das costas, os flocos de neve caindo no chão branco, ainda que o dela fosse vermelho. Amei o verão que ela trazia no escondido da coxa, o solzinho laranja desenhado onde ninguém podia ver, só visto por quem escancarasse suas pernas. Impossível ver o sol e ignorar o sexo de crina vermelha. Se visse o sol, via o sexo. Se via o sexo, via o sol. E eu vi tudo. Cada marca, cada desenho. Até o outono que ela carregava no calcanhar. A folhona seca do Canadá.

O dia em que ela chegou, era fevereiro. Queria que todo dia fosse fevereiro. Queria que ela chegasse pra sempre. Os braços bordados, a mochila azul. Que todo dia batesse palmas na porta de casa me pedindo um copo água, que sol escaldante, tinha me esquecido deste sol aqui dos trópicos, que bonito esses girassóis, você que cuida, mora sozinha aqui, não tem medo, olha, uma globo. E foi passeando com o dedo indicador pelos quadrados coloridos, dizendo o nome de cada lugar. Quando mudava de continente, tomava o cuidado de tirar o dedo, evitando se afogar naquele oceano pintado de azul. Ia rodando o globo devagarzinho, como se viajasse. Viajou assim por dez meses. Os pés enterrados em mim e os dedos passeando pelo mundo. Foi meu tanto de felicidade nesta vida. Antes disso, não tinha pretensão de alegria nenhuma. Tirante os girassóis colossais de asas amarelas, a horta, os tucanos que vinham bicar mamão na porta da cozinha, minha sobra era silêncio. A mãe tinha morrido. O pai também. Eu já tinha acatado a vida. Nada afora os girassóis, os tucanos, os livros na cadeira do alpendre, o chá de hortelã de manhã cedinho. Aí chegou fevereiro. Chegou a Rosa. A mochila azul. Os braços estampados. O dedo no globo. Eu tinha chão. Rosa me deixou de pés no vento. Eu não sabia se voava ou se caia.

Rosa me contou do mundo depois da borda do sítio. Disse que no posterior da minha divisa tinha aquele universo todo do mapa. Que naquele além tinha tigre de pelo azulado, chocolate que queimava, montanha de gelo e mulher que amava mulher. Eu queria cavalgar o tigre, mastigar o chocolate, trepar a montanha e amar a Rosa. Queria meu corpo de papel branco colado naquele corpo vermelho pintado. Rosa foi meu mundo. Eu, mar solitário, o oceano dentro de mim ganhando continentes.

No depressa dos meses, meu corpo foi copiando os traços que pintavam o dela. As pernas entrançadas, feito trama de rede, as barrigas presas pela cola do suor, dos humores, dos líquidos todos. E eu fui ganhando desenhos. Minha coxa friccionava a dela e eu tinha uma flor. Dávamos as mãos e na minha aparecia o espelho da lua que enfeitava a dela. Rosa achou graça e me pediu que eu ficasse de bruços. Deitada em cima de mim, olhando para o forro do teto, esfregou as costas nas minhas até que começassem a aparecer os flocos de neve que faziam o inverno dela. Tive também meu verão, meu outono no calcanhar, meus pés de primavera. Tive o ano inteiro gravado no meu corpo. Tive Rosa estampada em mim. Ela dizia que assim era bom. Que o amor tinha me carimbado. Eu nem importava. De de ser arremedo, dela ter me desenhado, timbrado minhas pernas, minha barriga, meus braços. Eu só queria que os dias ficassem cativos ali no sítio. Que não passassem meses, estações, anos. Que a gente nunca morresse. Queria acordar todo dia com a Rosa me dizendo que eu tinha gosto de mar. Queria copiar os desenhos todos, até a joaninha que ela sonegava na axila.

Rosa nunca saia do sítio. Eu que ia até a cidade. Trazia chocolate, pão de centeio, castanha. Ia sempre coberta, camuflando minhas ilustrações. Tinha uma prima que de vez em quando eu visitava, para que ela não estranhasse minhas ausências. Ela me dizia que eu devia casar, ter filhos, uma vida. Ela não sabia que minha vida inteira estava no sítio, passeando o dedinho fino pelo globo do meu pai. O mesmo dedo que investigava meu sexo, penetrava minha carne. Ela desconhecia que minhas águas selvagens haviam encontrado terra. Que eu trazia o verão na coxa direita, o inverno nas costas e o medo de morrer no coração.

Voltar para o sítio era enlouquecer. Eu desatinava um tanto a cada vez que rodava a maçaneta da porta. Eu chamava, já quase sem ar e toda vez me imaginava chamando e chamando, correndo para o terreiro, cavocando a plantação de girassóis, peneirando os pedregulhos, Rosa, Rosa, Rosa. Mas ela vinha. Sempre vinha no primeiro chamado. Largava o globo, o livro, o chá. Explorava o saco de compras, abria o chocolate, punha um pedaço na boca, me beijava e dizia que eu tinha gosto de mar.

Ela não falou que ia embora. Só enfiou as unhas nas polpas das mãos, enquanto esperava a água levantar fervura. Bebemos o chá no alpendre. Ela na cadeira da mãe e eu no chão, assistindo o alvejar do dia de quase verão. Lavou a xícara e saiu. Disse que veria os tucanos na matinha. Não vestiu as costas com a mochila azul e nem me olhou. Só foi. Eu morri ali. A gente morre quando perde o medo de morrer. Eu perdi o meu. O amor comeu. O amor que Rosa deixou embrenhado em mim. Ele me comeu inteira, viva. Nem lambeu primeiro pra ver se gostava do salgado que eu tinha. Escancarou a boca mastodôntica e me engoliu. Comeu meu inverno das costas e meu verão ocultado no entre das pernas. Mastigou minha carne, as fibras dos meus músculos, as cartilagens das minhas articulações. O amor esfolou minha pele, minhas marcas de catapora, as frieiras nos vãos dos dedos, as estrias que me rajavam a barriga. Arrebentou os calombos das minhas varizes, os nódulos que meu corpo escondia, as glândulas. Arrancou meus cabelos, o sebo do meu couro cabeludo, o esmalte dos meus dentes. Violentou minhas artérias, explodiu cada enzima, cada plaqueta. O amor estourou meus óvulos armazenados, os filhos que eu nunca teria, que eu nunca quis ter. Desmoronou as paredes do meu útero, macerou as pedras da minha vesícula. Engoliu o sangue venenoso ainda não filtrado pelos meus rins, depois meus rins. O amor comeu o câncer de esôfago que eu teria aos cinquenta e quatro anos e as infecções de urina que eu teria aos trinta e quatro, trinta e oito e aos quarenta e dois. O amor comeu minhas enxaquecas, minhas insônias, as unhas guardadas, meus metros de unhas que ainda nem tinham rompido as cutículas. Bebeu meu mar de um gole só. O amor me comeu, enquanto Rosa passeava pelo globo. Não mais com o dedo. Ele me devorava e os pés dela corriam Belize, Haiti, Senegal, Mongólia, Finlândia, Paquistão. O amor descascou as figuras xerocadas no meu corpo, enquanto eu tinha certeza que Rosa enfeitava o dela com um girassol amarelo-gigante. Talvez no seio. Ele me deglutia, enquanto ela fazia de mim só mais um desenho no corpo vermelho. Esfregava o girassol que eu era em outros seios, me distribuindo para a humanidade. O amor me comia e ela nadava outros mares. Eu era um pingo no mapa dela. Rosa era meu mundo inteiro.

 

 

 

 

636

 

 

Eu tenho mil cento e cinquenta e sete mortes. Meu assento cheira à merda, vômito e urina. No minuto final, meu amigo, no instante em que a corrente elétrica já torrou os miolos, espirrou os olhos para fora, todos cagam, vomitam e mijam. Abrem os buracos, destampam tudo. Fica mais fácil do capeta entrar. Eu facilito o trabalho, arrombo as entradas. Isso aí: sou um arrombador.

Antes eu trabalhava mais. Já cheguei a fazer dezesseis no mês, acredita? Merda-mijo-vômito dia sim, dia não. São idênticos, você precisa ver. É como se eu estivesse eletrocutando um mesmo filho da puta com duzentas vidas. Devem ser todos uma família só. Se eu fosse polícia saía por aí pegando essa raça antes que eles parassem no meu colo. Quando sentam aqui é porque já fizeram muita maldade: enfiaram o pau em cu de criança, queimaram mãe viva, espatifaram cabeça de velhinha com martelo. Uns filhos da puta. Se peguei inocente? Depende do que você chama de inocente. Gente que não fez o que disseram que fez? Claro que sim. Uma coisa é o que diz o processo e processo é papel, a vida de verdade é outra coisa. A questão é que você pune o cara não só pelo que ele fez, mas também pelo que não fez. É o método mais eficiente de manter a ordem: matar o desgraçado antes dele causar a desgraça. Devia ser sempre assim, garanto que evitaria muita morte de gente decente. O mundo se divide entre quem deve ou não morrer. O que faz você estar de um lado ou de outro? Tudo, meu amigo, o buraco de rato de onde você saiu, a vagabunda da sua mãe, o cheiro do seu suor. Uma máquina perfeita não admite engrenagens soltas. Se você não estiver bem encaixado, algum dia se senta no meu colo.

Agora respondo sua pergunta: nunca matei inocente. Se não tinha culpa, o pai tinha, o avô, o caralho a quatro. É atávico, se o pai era assassino o filho vai ser, ainda que não mate ninguém, mesmo que morra sem nunca trepar vai ser estuprador, caso o avô tenha sido.

Eu te conto como é: eles te amarram pelos pulsos, cintura e tornozelos. São três metros e vinte e cinco centímetros, somadas todas as tiras de náilon. As dos braços medem cinquenta e dois centímetros, as dos tornozelos sessenta e um e a da cintura noventa e nove. São colocados quatro eletrodos no topo da sua cabeça e dois em cada perna. As áreas são previamente depiladas para que os pelos não peguem fogo. Um capacete de metal distribui os choques. Embaixo dele uma esponja embebida em água e sal facilita a condução da eletricidade, trezentos e trinta gramas de sal para cada litro de água. Os eletrodos são interligados por oito fios, formando uma corrente em paralelo, permitindo que o choque deflagrado na cabeça seja replicado nas pernas, volte para a cabeça e retorne às pernas.

São três ciclos: 2.300 volts, 8 segundos: cérebro, baço, olho, mucosa, língua, dente, traqueia, unha. 1.000 volts, 22 segundos: nuca, dedo, osso, músculo, laringe, orelha, rim, cotovelo, veia, artéria, pâncreas, coxa, pé, pulmão, fígado, axila, córnea, bexiga, testículo, calcanhar, antebraço, pescoço. 2.300, 8 segundos: joelho, uretra, esôfago, umbigo, cartilagem, coração, coração, coração.

Na primeira carga é como se abrissem sua cabeça e despejassem uma panela de óleo fervente. Os batimentos cardíacos atingem o pico de cento e noventa por minuto e se o sujeito tiver sorte vai ter uma parada agora. A maioria morre mesmo na terceira leva de choque, quando o cérebro já virou sopa e o coração arrebentou. Morrer no meu colo é morrer arrebentado, por isso é que vestem o capuz. Como é que eu sei? Sou eu quem faço isso, esqueceu? Não é que eu goste. Também não desgosto. É o que eu faço, simplesmente faço. A cada vez que acionam a alavanca a mágica acontece. No resto do tempo eu hiberno, nem existo de verdade quando não estou chacoalhando com o condenado.

As coisas que eles pensam naquele segundo final, você nem ia acreditar, o cérebro desses caras é pura merda. A maioria pensa em comida, juro. É claro que antes disso surge a imagem da mãe, da avó, vez em quando algum filho, pai não tem, porque essa gente nunca tem pai. Mas naquele instante próximo do fim, quando já embostearam meu assento, os desgraçados pensam em comida. Já vi frango frito, pernil assado, pizza de calabresa, torta de banana, chocolate, figo. Você ainda pergunta como vejo as memórias? Estou dentro deles, encharcando o cérebro de corrente elétrica. Nessa hora eu sou eles: o choque, a memória, a comida, a merda, o olho pulando do buraco, a sopa eletrificada do cérebro, o coração explodindo, o sangue. É aí que eu vejo a desgraça que fizeram. A faca enterrada na barriga da mulher loira, a criança arrebentada, o gozo doente deles, a cabeça da mãe aberta pelos golpes da marreta, do taco de beisebol, do martelo, sempre a mãe, sempre a cabeça, o que varia é o objeto que parte o crânio.

É claro que nem sempre foram eles. Às vezes foi o pai, a avó, o tataravô. Ainda assim, eu vejo. A memória do crime está guardada no DNA. Podem nem ter conhecido a bisavó, mas vai estar lá, registrado na cabeça do cara, o instante em que ela afogou o bebê no balde com sabão em pó. Essas imagens ficam escondidas nas partes do cérebro a que eles não têm acesso. Sabe aquelas dobras? É para isso que servem, para esconder. Só podem acessar no momento da morte e mesmo assim não em qualquer morte, só nas que doem para valer.

Teve um caso que me intrigou. Penso nele até hoje. Quinhentas e vinte e uma mortes se passaram e ainda penso no cara. Foi o 636, é assim que eu o chamo. Eu me lembro o nome dele, dele eu não me esqueci nada. Data de nascimento, nome da mãe, a catapora que teve aos três anos, mijou na cama até oito, tinha um estojo de vinte e quatro lápis de cor, gostava do lápis roxo escuro, o décimo quarto da sequência. Chamo de 636 porque ele é um número, uma morte, mais um filho da puta que fritou em mim. A verdade é que deveria ser mais um. Não é.

Conheci o 636 quando ele se sentou para o teste. Eles fazem um ensaio uns dois ou três dias antes da execução, só para o sujeito saber como vão ser as coisas. Amarram as correias, enfiam o capuz, falam aquele blábláblá do Estado está te executando, o inciso tal, da lei tal, do Código, da Constituição: a parafernália da justiça. No teste estou sempre meio dormindo. Nesse caso foi diferente, quando o cara sentou em mim eu acordei. Parecia que eu dormia há trezentos anos e acordei de uma morte. Já teve a sensação de acordar da morte? É como sobreviver a um afogamento, emergir depois de sete minutos e meio. O 636 tinha eletricidade suficiente para me acordar, para não me deixar dormir nunca mais. Comecei a ver tudo do cérebro dele. Tudo. Vi a mãe com ele no colo, dando o peito, a avó tirando uma assadeira de biscoitos do forno, ele na beira do píer pescando garoupa, na escola, preenchendo o caderno com letra redonda, riscando um quadrado azul com a régua. Tudo muito rápido, a porra da vida do cara passando em alguns segundos. Ele era um retardado, um completo retardado. Nenhuma maldade. Nenhuma. Não estourou passarinho com espingarda, esquartejou lagartixa, roubou dinheiro da avó, cuspiu na professora. Nada. Quase um padre, foi até coroinha dos seis aos treze. Um perfeito imbecil. Para você ter uma ideia, o sujeito nunca comeu ninguém. E ninguém que estou dizendo é ninguém mesmo: nem mulher, nem homem, nem galinha, nem vaca. Pô, passar a vida sem enfiar o pau em lugar nenhum? Currasse uma cabra, uma jumenta, uma puta, um veado. Tanta moça por aí, voltando tarde do trabalho, atravessando terreno baldio. Só mostrar uma faca, enfiar o dedo embaixo do casaco fingindo revólver, coisa mais fácil do mundo é comer mulher. Não. Além de imbecil era celibatário.

Nos três dias que se seguiram fiquei pilhado. Nunca tinha acontecido antes, é como se eu estivesse eletrificado permanentemente. A alavanca desligada, meu acento vazio e eu dando choque. Veio um técnico, olhou os fios, os eletrodos, a alavanca. Nada, eu estava em ordem, pronto para funcionar. Tão pronto que já funcionava.

A execução atrasou quatro dias. Tiveram receio de que eu distribuísse choque entre os presentes, não segurasse a carga de dois mil e trezentos, mandasse logo oito mil e seiscentos volts, torrando o condenado, as correias o capacete. Eu fui ficando ansioso. E se o cara tivesse morrido, hein? Infartado antes que eu pudesse eletrocutar. Eu não temia pelo cara, o sujeito ia morrer mesmo, não importava quando, não importava no colo de quem. Mas esse eu precisava matar, tinha que achar a maldade que ele escondia, qualquer coisa, um pecado, uma punheta, um soco no amigo, uma escarrada na professora. Precisava saber.

O 636 chegou em uma terça-feira. Não, não sei os dias da semana, os meses, os anos. Contagem de tempo para mim é execução, número de mortes: um, dois, dezesseis, trinta e sete, quarenta e nove, cento e cinco, trezentos e vinte um, quinhentos e dezoito, seiscentos e setenta e dois, setecentos e treze, mil e noventa e três. O guarda anunciava o dia da semana, o mês, o ano, a exata condenação. Prestei atenção em tudo, principalmente na exata condenação. Estava escrito que o 636 tinha descarregado uma submetralhadora thompson M128 na amante. Uma mulher de trinta e um anos, chamada Lisa Catarina Sanches, que estava grávida de oito meses e pressionava o cara para ele deixar a esposa, assumir o filho e a porra toda. No processo dizia que ele não aguentou a pressão e no dia nove de fevereiro, às três e quarenta e cinco da madrugada, foi até a casa da amante e, depois de terem feito sexo, sentou o dedo na metralhadora: sete tiros no peito, nove na cara e quatro na barriga, o suficiente para explodir um elefante.

Eu nem precisava entrar no cérebro dele para saber que nada daquilo era verdade: amante, mulher, gravidez, sexo, tiro. Pegaram um retardado de laranja. Mais do que nunca eu tinha a sanha de ver cada nó daquele cérebro de merda, descobrir a maldade do 636. Ninguém morre sem pecado, meu amigo, ninguém. Não via a hora dele se sentar no meu colo. Se eu tivesse pau, estaria de pau duro. Segurei para não começar a dar choque antes da hora, enquanto amarravam as correias, vestiam o capuz. Qualquer suspeita de avaria agora poderia atrasar ainda mais a execução.

Ele se sentou e eu só via o escuro. Que diabo estava acontecendo que eu não conseguia sintonizar o pensamento do cara? Ele estava vivo: noventa e oito batimentos por minuto, veias bombeando sangue para o coração, artérias devolvendo para o corpo, o estômago dissolvendo o resto da última refeição (arroz, batata cozida, peixe assado e banana). Comecei a dar choque, de leve, controlando a eletricidade. Mandaram logo dois mil e trezentos, segurei em quinhentos e oitenta e oito, o bastante para dar uma sacudida nas memórias dele. Apareceu uma imagem de mulher. Cabelos escuros, olhos pretos, vestido azul mostrando metade das coxas e dos seios Era a mãe do 636. Agora a verdade iria aparecer, a mãe do cara era uma puta, só podia ser. A maldade era a putaria da mãe, ele estava pagando por todas as trepadas, todas as vezes em que ela guardou no sutiã a nota de cinquenta, depois de chupar o pau do garçom, caminhoneiro, polícia, advogado. Não era. A vaca não era puta. A imagem seguinte foi ela ajoelhada na igreja, olhando o 636 ajudando o padre a derramar o vinho na vasilha da hóstia. Caralho, onde estava o pecado? Estava difícil de segurar a carga, eu estava irritado e irritado vou logo descarregando dois mil e cem. Os batimentos do 636 subiram para cento e sessenta e dois e ele esguichou o primeiro jato de merda. A mãe aos cinco anos de idade vestida de anjo na procissão de domingo de ramos, sentada na carteira da escola aos oito, ajudando a encher os pratos de sopa para os velhos do asilo aos dezenove. A cabeça do 636 impregnada da imagem da mulher. Por que ele guardava as memórias que deveriam ser só da mãe?  Cadê a maldade, meu amigo, que caralho de cérebro torcido era aquele capaz de esconder tão bem escondido? A mãe distribuindo doces no Cosme e Damião, costurando o fundilho do uniforme do filho, descascando cebola para o jantar. Aquilo estava me deixando enjoado. Só não vomitei, porque não tinha boca.

O coração acelerou para duzentos e dois. O 636 estava vivo por um milagre. Eu tinha poucos minutos. Um, dois, no máximo quatro. Foi o suficiente. Nos cinquenta e sete segundos que precederam a morte, eu vi. A mãe de vestido vermelho deitada em um chão úmido. Parecia um banheiro, tinha umidade de banheiro. O vestido estava rasgado no colo, os dois seios espremidos para fora. A saia do vestido levantada, tapava parte da cara. Mesmo assim, eu consegui ver o olho direito todo estraçalhado, uma baba de pus e sangue descia igual a uma lágrima. Em cima dela um sujeito de canivete na mão. Não soltou a arma nem quando gozou na mãe do 636 de olho direito arrebentado. O pecado estava descoberto: filho de estupro. O 636 era uma engrenagem solta. Ele podia morrer em paz. Eu, matar em paz.

 

 

 

 

É tudo sal, plâncton, areia e bicho morto

 

 

"No fundo do mar há brancos pavores,

Onde as plantas são animais

E os animais são flores".

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

 

Deu as últimas instruções antes de cair na água: o Montai por último, ninguém fica pra trás. Entrem com calma, passo de gigante, igual a gente treinou na piscina. Chequem lastro, regulador, colete. Um de cada vez, na ordem combinada. Cecília, Augusto, Jonas, Marcão, Ester e Denis. Depois que todo mundo estiver dentro, é a vez do Montai.

No fundo do barco, Montai balançou a cabeça em concordância, ao mesmo tempo em que levantava o polegar direito.

André enfiou o regulador na boca, sentindo latejar o dente. Caralho, devia ter ido ao dentista de uma vez.

Deu o passo de gigante e, na água, tirou o regulador para encorajar os alunos. Um a um foram entrando. Jonas relutou, queria desistir, esperar no barco.

— Meu, seu nome vem da porra da história com a baleia, você é do mar, cara. É igual a gente fez na piscina. Passo grande, olhando pra frente, não pensa em nada, só vem.

Jonas entrou. Depois Marcão, Ester, Denis, por último Montai.

— Vamos descer devagar, sem respirar rápido, vocês têm ar de sobra. Cada um de olho na sua dupla. Se alguém precisar subir, sem desespero. Polegar pra cima e eu ou o Montai vamos até aí.

Abocanhou o regulador e deixou escapar um ai quando a borracha encostou no dente inflamado. Um atobá afundava o bico na água e saía com um pequeno polvo. Quis tirar o bocal e chamar a atenção dos outros para o que acabava de ver. Lembrou do dente, desistiu. A ave agora soltava o polvo e voava. Cada quase mergulhador preocupado com o equipamento, a justeza do lastro, a quantidade de oxigênio no cilindro. Montai ajudava Ester com a máscara: cuspia no visor, esfregava as pontas dos dedos na lente e devolvia. Ninguém viu o atobá.

Sinalizou ok para o grupo, juntando polegar com indicador e começou a descer. Fechava os olhos nos primeiros minutos de descida, mesmo que estivesse com alunos. Gostava do silêncio do mar raso, morno de sol. Quando abriu os olhos, não viu sua dupla, girou o corpo para a direita e localizou. Fez ok com a mão e Denis respondeu da mesma forma. Desceu um pouco mais e o polvo ferido flutuava. Um filete de sangue azul esguichando de um dos tentáculos. Morto? Contrariando os princípios de respeito e não interação, tocou com a ponta do dedo. O polvo piscou três vezes. Os olhos tinham o brilho baço de quem vai morrer. Oito tentáculos: sete se agitando, um imóvel. Denis distraído com um cardume de mariquitas. Podia ter mostrado ao aluno o animal ferido, os tentáculos vivos, o morto, a luta primitiva de-vida-de-morte. Não mostrou.        Passaram por barracudas enfezadas, salemas riscadas de laranja, peixe-palhaço, tartaruga-verde, um baiacu inflado, cardumes de sargentinho, peixe-agulha, arraia chita, dois ouriços (um preto e um azul), uma estrela do mar vermelha e uma moreia de boca de demônio.

Trinta e cinco minutos e era hora de subir. Levantou o polegar para cada um do grupo. Gostava da praticidade dos mergulhos rasos, quinze metros de distância entre a terra do fundo e a borda de fora. Quando trabalhava na plataforma, o que incomodava não era o escuro, o frio de nevar os ossos, as turbinas imensas, as ferramentas, tubulações gigantes. Eram as milhares de toneladas de água sobre a cabeça, duzentos e cinquenta metros de profundidade e o peso do mundo sobrecarregando o corpo. Entrava nas turbinas de olhos fechados (ainda que os abrisse, não veria nada além de noite). A vida ali era escura e precária. Tudo na pressa de morte.

Mais um ai quando tirou o regulador. Amanhã sem falta marca dentista, arranca a porra do dente de uma vez.

— E aí, pessoal, quem está se sentindo mergulhador? Gostaram?

Todos falavam ao mesmo tempo, a euforia do primeiro mergulho: viu aquele peixe palhaço? A arraia passou pertinho de mim, tive até medo do ferrão, era chita? Era chita sim, as pintas. E o baiacu? Caramba, igual uma bexiga. Nossa, e a moreia? Não acredito que você não viu a moreia, passou raspando o Montai. E o ouriço azul? Era azul, deu pra ver.

André entregava os certificados, chamando os nomes. Tinha despido a parte de cima do corpo. No peito, tubarão-tigre e submarino. Nas costas, cavalo-marinho, escafandro e estrela do mar. Da cintura para baixo continuava vestido de mergulhador. Ninguém via a tatuagem na coxa esquerda: um triângulo equilátero pintado de preto.

Um dos alunos abriu uma caixa de bis. Pouquíssimas coisas na vida eram melhores que chocolate depois de mergulho. André fez que não com a cabeça, em respeito ao dente.

O barco aporta, cada aluno pega a mochila e desce. André, Montai e o marinheiro ficam mais um pouco. Esvaziam coletes, estendem roupas encharcadas, enfileiram cilindros.

— E aí, André, que achou do grupo?

— Sei lá, Montai, esses caras acham que mergulho é adrenalina, cair na água e ficar olhando peixe. Mergulho é outra coisa.

O marinheiro raspa as sobras dos pratos no mar: cascas de banana, restos de pão com maionese, migalhas de bolachas, sementes de maçãs, flocos melados de granola. Centenas de peixes se aproximam do barco para comer: pargos, dourados-do-mar, corvinas, anchovas, cavalas e tainhas.

— Topa um mergulho agora, André? Rola, Baiano?

O marinheiro franze a boca e levanta os dois ombros, enquanto termina de enrolar uma corda.

— Tá meio mexido, mas dá pra ir. Agora é bom no Meros. Só falar.

— Bora, André?

— Cara, tô com um dente aqui me matando, bichado até o miolo, só do bocal encostar tô vendo estrela.

— Pra fechar o dia. Uma hora pra ir e voltar. Não dá, Baiano?

— Uma hora não digo. Hora e meia.

— Bora, André?

O dente pulsava como um coração. Doíam todos. E também o pescoço, a orelha direita, a cabeça e os cabelos. Desceu de olhos fechados, sem aluno nenhum. Montai não fechava os olhos nunca. E se um tigre aparecer bem na sua frente, hein, André? Vai perder? Aqui não tem tigre, Montai, no máximo um limão ou lixa, que a gente já viu trocentas vezes. Vai saber se não tem tigre, branco, o mar não tem cerca, André.

Abriu os olhos e Montai estava com a mão direita espalmada sobre a cabeça, sinalizando tubarão. Mesmo com o rosto escondido por máscara e regulador sabia que o amigo estava rindo. Devolveu a brincadeira com um fuck. Não riu. O dente doía demais.

André tornou fechar os olhos, enquanto desciam mais um pouco. Quando abriu, não era Montai quem estava a seu lado, mas o polvo ferido. O tentáculo machucado ainda esguichava sangue. Nove quilômetros separavam o primeiro ponto de mergulho de onde estavam agora. Só o sangue era vivo: azul e luminoso, desenhando serpente no mar. O polvo estava morto. Agonizou nove quilômetros para morrer aqui? Queria piscar uma última vez os olhos baços? Ou nadou seis quilômetros, o sangue jorrando mar afora, mar adentro, o corpo-cabeça derramado sobre os pés, outros três quilômetros de correnteza deslocando o cadáver. Segurou o corpo do polvo com a mão esquerda e com a direita fez um afago desajeitado na cabeça mole. Teria beijado, não fosse o regulador (e se o dente não doesse tanto). Soltou o animal sabendo que não era mais um polvo. O que morre no mar, se torna mar. É tudo sal, plâncton, areia e bicho morto.

Não viu Montai. Estava a três metros abaixo, dedicado a um cardume de agulhinhas, quem sabe um peixe-pedra, uma moreia de fita, um cavalo-marinho fluorescente. O mar avançava na indiferença da morte do pequeno polvo, dissolvendo massa visceral, três corações, ventosas, brânquias e sangue azul.

Um pargo passou do seu lado direito. Era tão grande que nem parecia pargo, devia ter mais de dois metros. A porção de água deslocada pelo peixe provocou uma leve correnteza. Algas mortas e pedrinhas minúsculas sacudiram. Uma pontada no dente. Corrente fria, corrente morna, bolhas de ar saindo da sua boca, da boca de todos os peixes, de todos os polvos, lontras, anêmonas, bolachas do mar, tartarugas-pente. Tudo vivo, tudo na pressa de morte.

Não via Montai. Não estava a três metros abaixo, nem acima, nem metido em caverna, naufrágio, investigando o mar à procura de tubarão-tigre, branco, martelo, o mar não tem cerca, André. Talvez Montai não estivesse nunca, era só ele, o mar, os bichos todos (vivos e mortos), o dente latejando. Não suportava mais o dente. Arrancou o regulador com um puxão. Esperou que a água salgada invadisse os pulmões. Não era morte, o ar de que necessitava estava na água. Arregaçou a manga da roupa de mergulho e não se surpreendeu com as escamas cobrindo a pele tingida de sol, a cicatriz no pulso, a mandala tribal do antebraço. Desvencilhou-se do lastro sabendo que não precisava dele para permanecer no fundo. Despiu-se das nadadeiras e da roupa, tendo dificuldades de passar os pés pela justeza do macacão. Tirou sunga e máscara. Arrancou o dente dolorido usando o indicador e o polegar (o mesmo polegar que tantas vezes sinalizou necessidade de subir e de descer, mar acima, mar abaixo). Não precisava mais do dente. De nenhum deles. Arrancou todos, os caninos por último. Os dentes levados pela correnteza nadando com linguados, tampinhas de garrafa, lascas de conchas e caravelas translúcidas. Da gengiva magoada rebentava sangue: azul.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru/SP, é defensora pública e trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Sempre foi apaixonada por literatura e há alguns anos escreve as próprias histórias. Seu primeiro livro, Enfim, imperatriz (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria Contos.