©tiffany bozic 
 
 
 
 
 
 
 

EM VIAS DE EXTINÇÃO

 

 

E então é outra vez

todo um tempo na carne,

o gelo, o concreto,

a multidão dissolvendo

o corpo que interessa

 

E está perdido há tanto

da pele, dos cabelos,

dos olhos,

essas peças agora mecânicas

gastas,

incapazes de chorar

 

pelo fato indiscutível

de que nem as palavras,

as armadilhas, as chantagens

poderiam contornar

a solidão de pássaro,

esse último, no escuro,

o mudo, mutilado,

em extinção.

 

 

 

 

 

 

 

EXPIRAÇÃO

 

 

O silêncio aos gritos

na noite

atropela a angústia

das vociferações de gatos

e corujas famintas

 

O silêncio não vê as coisas

que aos poucos desbotam

por toda parte

 

Não respeita

os restos de visão e audição,

insiste com o tormento

Não respeita nem sono,

nem veias bloqueadas

Quer empurrar a verdade

já tatuada e deglutida

 

Não poupa sequer

a vida de óculos,

que, na melhor hipótese,

é pouca, é menos

Metade.

 

 

 

 

 

 

DISTRAÇÃO

 

 

I

 

 

Não poderia pensar

em política, extorsões,

nós econômicos,

reivindicações públicas

ou corrupção

 

Não entenderia

jogos de poder,

apresentações de egos

histriônicos

 

Não haveria

como

 

 

 

II

 

 

Todos esses dias

dentro dos dias

 

Esses séculos

sobre os ombros

 

Com estas presas

na jugular.

 

 

 

 

 

 

ESPIRAL

 

 

Imagina a vida em flashback

a exemplo de filmes, livros

Fica à espera de que tudo

volte ao fato nenhum, início,

ao começo dessa história

A trama rola e você sabe,

você pensa saber a hora

boa, indolor, a sedação

Mas pensando melhor,

sempre sobra um tropeço,

um choque, culpa,

o desejo de ficar cego

A trama rola e você pede

um café, você pede um abraço,

um coração novo, uísque,

três dias de anestesia, voz

que te diga alguma coisa

Você se corta, rasga a roupa,

quebra a máquina, quebra

Você tem medo e se encolhe

dentro da caixa de papelão

com os fósseis que carrega.

 

 

 

 

 

 

NARCÓTICO

 

 

I

 

 

E dizia amor, saudade,

essas coisas, deixava

um abraço, respondia:

também

 

Aprendeu poemas

de Mary Jo Bang,

comprava doces

e pequenos animais

nos dias errados

 

Alimentou sobressalto,

desespero, desejo,

raiva, esperança

 

 

 

II

 

 

Faço de conta

que te ouvirei um dia,

aqui ao lado, cantando

tudo aquilo, tudo

alto, bem alto.

 

 

 

 

 

 

CAÇA

 

 

A matilha cerca, embosca,

morde, mata

 

Os cães vão direto

às entranhas

 

Procuram tecidos

moles,

 

mas, com espanto,

estancam

 

A presa é um corpo

vazio.

 

 

 

 

 

 

LEMINGUES

 

 

Cansados de engodos,

nem lhes serve o genoma,

o mapa que os condena

a nenhuma arma ou voo

Nem mesmo o fogo cuspido

em algum conto, mito

que valha a pena

 

Lemingues tristes mergulham

do décimo oitavo andar.

 

 

 

 

 

 

PARÁBOLA

 

 

Qualquer animal aprende

os gritos de alerta, o medo

das aves de rapina, ciladas

dos grandes felinos

 

Um canino cravado

entre duas costelas

dói para sempre

mas, veja bem, ensina

 

técnicas de respiração

e sobrevivência, a sentir

os movimentos subterrâneos

dos vermes e sismos

 

Farejamos, planamos

a ponto de iludir o ar

Procuramos, desvendamos

enigmas, sirenes

 

As árvores sopram sinais

Fale! Ouça!

E o mundo continua surdo

e mudo.

 

 

 

 

 

 

NENHUMA VEZ

 

 

Era uma vez um carneiro

era uma vez um lobo

era uma vez um condor

era uma vez um polvo

era uma vez um pombo

era uma vez um bicho

 

e ninguém nunca soube

nem quis saber

o que era.

 

 

 

 

 

 

CÉU DE INVERNO

 

 

Quando não precisava,

foi amor

 

Com o tempo, o caminho

vazio e sem sol

 

Talvez, como Li-Po,

cantasse os grous,

 

escuras penas sempre

em céu de inverno

 

Rosto e aves

perdidas, distantes

 

No ideograma,

seu nome ainda é a flor.

 

 

 

 

 

 

MOTO-CONTÍNUO

 

 

Todas essas voltas

da corda

em torno do corpo

 

A domadora

arremessa o chicote

Inflo o torso

 

Devo sorrir

para ela,

para o público

 

Não se assuste

com as cicatrizes

sob os pelos

 

São antigas

São herança

de família.

 

 

 

 

 

 

SALMO

 

 

Sustentam que os sons seguem

caminho sem fim, sinto que sim,

é o destino das palavras sem volta

que o tempo curto de uma vida

de inseto não deixa que calem

 

Talvez ainda possamos ouvir

Talvez ainda nos salvem

as emissões delirantes de certos

pássaros, a lírica simétrica

e sonora dos golfinhos

 

Ainda teremos cama

no inverno.

 

 

[Poemas de Fundamentos de Hiperventilação e Apneia. Patuá, 2019]

 

 

setembro, 2019

 

 

Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. É autor de Incompleto movimento (José Olympio Editora, 2011), Sem passagem para Barcelona (José Olympio Editora, 2015, finalista do prêmio APCA de Literatura - Poesia de 2015) e Fundamentos de ventilação e apneia (Patuá, 2019). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminações (Dobra editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá, 2014), Pássaro liberto (Scortecci, 2015), Pessoa — Littérature brésilienne contemporaine (Revista Pessoa, edition spéciale — Salon du Livre de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016). Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da internet e em revistas e jornais impressos.

 

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