EM VIAS DE EXTINÇÃO
E então é outra vez
todo um tempo na carne,
o gelo, o concreto,
a multidão dissolvendo
o corpo que interessa
E está perdido há tanto
da pele, dos cabelos,
dos olhos,
essas peças agora mecânicas
gastas,
incapazes de chorar
pelo fato indiscutível
de que nem as palavras,
as armadilhas, as chantagens
poderiam contornar
a solidão de pássaro,
esse último, no escuro,
o mudo, mutilado,
em extinção.
EXPIRAÇÃO
O silêncio aos gritos
na noite
atropela a angústia
das vociferações de gatos
e corujas famintas
O silêncio não vê as coisas
que aos poucos desbotam
por toda parte
Não respeita
os restos de visão e audição,
insiste com o tormento
Não respeita nem sono,
nem veias bloqueadas
Quer empurrar a verdade
já tatuada e deglutida
Não poupa sequer
a vida de óculos,
que, na melhor hipótese,
é pouca, é menos
Metade.
DISTRAÇÃO
I
Não poderia pensar
em política, extorsões,
nós econômicos,
reivindicações públicas
ou corrupção
Não entenderia
jogos de poder,
apresentações de egos
histriônicos
Não haveria
como
II
Todos esses dias
dentro dos dias
Esses séculos
sobre os ombros
Com estas presas
na jugular.
ESPIRAL
Imagina a vida em flashback
a exemplo de filmes, livros
Fica à espera de que tudo
volte ao fato nenhum, início,
ao começo dessa história
A trama rola e você sabe,
você pensa saber a hora
boa, indolor, a sedação
Mas pensando melhor,
sempre sobra um tropeço,
um choque, culpa,
o desejo de ficar cego
A trama rola e você pede
um café, você pede um abraço,
um coração novo, uísque,
três dias de anestesia, voz
que te diga alguma coisa
Você se corta, rasga a roupa,
quebra a máquina, quebra
Você tem medo e se encolhe
dentro da caixa de papelão
com os fósseis que carrega.
NARCÓTICO
I
E dizia amor, saudade,
essas coisas, deixava
um abraço, respondia:
também
Aprendeu poemas
de Mary Jo Bang,
comprava doces
e pequenos animais
nos dias errados
Alimentou sobressalto,
desespero, desejo,
raiva, esperança
II
Faço de conta
que te ouvirei um dia,
aqui ao lado, cantando
tudo aquilo, tudo
alto, bem alto.
CAÇA
A matilha cerca, embosca,
morde, mata
Os cães vão direto
às entranhas
Procuram tecidos
moles,
mas, com espanto,
estancam
A presa é um corpo
vazio.
LEMINGUES
Cansados de engodos,
nem lhes serve o genoma,
o mapa que os condena
a nenhuma arma ou voo
Nem mesmo o fogo cuspido
em algum conto, mito
que valha a pena
Lemingues tristes mergulham
do décimo oitavo andar.
PARÁBOLA
Qualquer animal aprende
os gritos de alerta, o medo
das aves de rapina, ciladas
dos grandes felinos
Um canino cravado
entre duas costelas
dói para sempre
mas, veja bem, ensina
técnicas de respiração
e sobrevivência, a sentir
os movimentos subterrâneos
dos vermes e sismos
Farejamos, planamos
a ponto de iludir o ar
Procuramos, desvendamos
enigmas, sirenes
As árvores sopram sinais
Fale! Ouça!
E o mundo continua surdo
e mudo.
NENHUMA VEZ
Era uma vez um carneiro
era uma vez um lobo
era uma vez um condor
era uma vez um polvo
era uma vez um pombo
era uma vez um bicho
e ninguém nunca soube
nem quis saber
o que era.
CÉU DE INVERNO
Quando não precisava,
foi amor
Com o tempo, o caminho
vazio e sem sol
Talvez, como Li-Po,
cantasse os grous,
escuras penas sempre
em céu de inverno
Rosto e aves
perdidas, distantes
No ideograma,
seu nome ainda é a flor.
MOTO-CONTÍNUO
Todas essas voltas
da corda
em torno do corpo
A domadora
arremessa o chicote
Inflo o torso
Devo sorrir
para ela,
para o público
Não se assuste
com as cicatrizes
sob os pelos
São antigas
São herança
de família.
SALMO
Sustentam que os sons seguem
caminho sem fim, sinto que sim,
é o destino das palavras sem volta
que o tempo curto de uma vida
de inseto não deixa que calem
Talvez ainda possamos ouvir
Talvez ainda nos salvem
as emissões delirantes de certos
pássaros, a lírica simétrica
e sonora dos golfinhos
Ainda teremos cama
no inverno.
[Poemas de Fundamentos de Hiperventilação e Apneia. Patuá, 2019]
setembro, 2019
Alberto Bresciani nasceu no Rio de Janeiro. Vive em Brasília. É autor de Incompleto movimento (José Olympio Editora, 2011), Sem passagem para Barcelona (José Olympio Editora, 2015, finalista do prêmio APCA de Literatura - Poesia de 2015) e Fundamentos de ventilação e apneia (Patuá, 2019). Integra, entre outras, as antologias Outras ruminações (Dobra editorial, 2014), Hiperconexões (Editora Patuá, 2014), Pássaro liberto (Scortecci, 2015), Pessoa — Littérature brésilienne contemporaine (Revista Pessoa, edition spéciale — Salon du Livre de Paris, 2015) e Escriptonita (Editora Patuá, 2016). Tem poemas publicados em portais, blogs e sítios da internet e em revistas e jornais impressos.
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