PRECISA-SE DE POETAS NA AMÉRICA LATINA
precisa-se de poetas na América Latina
precisa-se de poetas como precisa-se de vermute
fuzis de assalto
precisa-se de poetas na América Latina
precisa-se de poetas para
matar a fome com a ambivalência
de repulsivos moluscos bivalves
precisa-se de poetas na América Latina
com carta de apresentação
aos caudilhos precisa-se
quando a única via for
quando a corda no pescoço
servir de arrimo
precisa-se de poetas na América Latina
precisa-se de poetas como se um Sol anguloso
partisse
o edifício de fogo da ruína
PALINÓDIA
Para um jovem comunista
A primeira coisa que eu soube de você
é que estava morto.
Uma violência para os olhos
do poeta pequeno-burguês, mas
não como uma cegueira antes
como um mosaico
a visão das moscas
assim como atravessado
pela lança insuspeita do tempo
assim como um sonoro
"o que estou fazendo aqui?"
No entanto ainda
de pé
porque escamoteio o fundamental.
Mas ainda não seja hora
de abandonar o poema como
um último gesto de dignidade.
Peço antes desculpas
pela descoberta álacre, mas tardia
de que afinal o poema
não está tão longe da revolução
afinal eles se reconhecem pela
arcada dentária pelo
desvio imposto a duras penas
no fluxo diário das coisas visíveis
para que um vestígio luminoso
permita que o humano sofrimento
não vá além do suportável.
ÂNCORA
todas as coisas estragam-se de ter um nome
o meu melhor poema não foi o mais demorado
o meu melhor poema
todas as coisas estragam-se de ter um nome
não há ninguém que te valha a sombra
ou a arquitetura dos olhos (oblongo testemunho
da beleza — inatacável —
das nossas infinitas formas
de dar errado)
CARTA AO PAI
eu e meu pai temos em comum o gosto pelas fortalezas afirmativas
a certeza incontornável que se dá num átimo
de enorme poder concentracionário
o que significa que eu e meu pai temos em comum (uma farmácia)
o que significa que o meu pai
essa semana quer o uísque mais caro e reina sobre esta terra
e na semana que vem quer o projétil mais caro para
mirar delicadamente no epicentro da cabeça
o meu pai não sabe que o corpo é iniludível o corpo
tem sempre razão e, portanto, não se preocupe, pai
quando estivermos atônitos em queda livre
ou atados à areia bruta que mora
no fundo do buraco negro ou de algum outro
acidente cósmico muito denso e oclusivo
embalado a vácuo poço sem fundo e apneia originária
quando de repente pensarmos: "daqui não há
homem que se levante", não se preocupe
— é aí que mora a linguagem
TAXIDERMIAS
Para o Frederico Klumb, por ocasião do tropeço-comum
na Flauta-Vértebra
que tenho eu com a gênese da beleza
tempestade de aço
se tens meu corpo e todos os seus agudos sinais
angústia dúplice
quantos nomes serão necessários
para que não tomes mais os meus órgãos
de assalto, para que não sejas o invólucro
impiedoso de todas as noites
para que não venças em teu propósito de minha
implosão fragmentária
quantos nomes serão necessários para que tuas dobras
não ultrapassem a vertigem comum dos dedos
Vênus tripartite, convocação ao delírio e à
sutura, assim não, mulher, você desata
uma música diferente de todas as outras (minha)
— Shostakóvitch? Por que tão agressiva
se inevitável, quem te adivinha a escala cromática
para que teu incômodo cumpra a inscrição
visível em minha pele
e eu te reconstitua — palha a palha —
com todo o teu direito a uma constelação
do desassossego?
VOZ
Para a Alice
Costuro a noite em tuas costas
— rapto —
a recusa de toda parecença
— (inconsútil) vem, imagem
para o arranque para
o que é música e seu contrário
talho (furtivo), nome
quero-te vivo
fantasma espelho cantante
setembro, 2019
Alice Vieira mora em Belo Horizonte desde 2009. É graduada em Letras pela UFMG e mestre em Estudos Literários pela mesma universidade. Possui poemas publicados nas revistas "Em Tese" (2018) e "Gueto" (2018). Publicou, em outubro de 2018, seu primeiro livro de versos, intitulado {Open Source}, pela Editora Penalux. Em 2019, fez parte da coletânea Poemas Reunidos I, da revista portuguesa "A Bacana".
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