©tante tati 
 
 
 
 
 
 
 

Ablução

 

 

Lavo os dentes

cotidianamente,

mas o ar

que respiramos

— impregnado pelas

manchas vermelhas

dos noticiários

— o ar

é ácido

e turvo

e corrosivo

— falta-lhe eucalipto

e o inexorável prazer

dos comerciais.

 

Lavo os dentes

cotidianamente,

mas o ar que se infiltra

é seco

e amargo

e mancha os dias

como essas pequenas mortes

matinais.

 

E a morte não liga

para dentes.

 

 

 

 

 

 

Tenho uma máquina

 

 

Tenho uma máquina

azul de ferir

 

silêncios.

Mais carne que carbono,

 

a materialidade do engenho

mente a volatilidade

 

dos dedos.

Tenho uma máquina

 

de ferir

com nuvens.

 

 

 

 

 

 

Alquimia

 

 

Tangível ou não,

algo só existe no instante

de seu timbre.

Se cantamos "silêncio",

ele persiste apenas na reverberação

que o realiza.

Se bramamos "amor",

ele só emerge na engrenagem

da boca que o declina.

Antes que morramos, portanto,

cantar o nome das coisas

para que subsistam na alquimia da palavra.

Nada antecede o verbo.

Antes que morramos,

escamotear os bolsos da morte,

estrondar seu nome três vezes.

Antes que morramos,

marcar com grito a alcunha

de todo silêncio:

a materialidade das coisas

depende do som

que dobra o inexistente.

 

 

 

 

 

 

Questão

 

 

Existir

na medida

que me cabe,

 

nem mais,

nem menos.

 

A morte encurtando poros,

a vida escurecendo a madeira

[e tingindo a chama,

 

nem mais,

nem menos.

 

Claro como um girassol

ou fremindo como o bem-te-vi

que canta temporais,

 

nem mais,

nem menos.

 

Existir

na morte que me rumina

e na vida que aflige,

 

nem mais,

nem menos.

 

E beijar

cada senhora

em sua esquálida forma:

 

uma exigindo espelhos,

outra gritando cacos.

Existir transparente,

 

nem mais,

nem menos.

 

 

 

 

 

 

Sopro

 

 

Subitamente,

uma brisa arrepia sobrancelhas;

o mar agudo adentra ossos;

das ondas só o sal permanece;

dedos param de assustar bem-te-vis.

 

Chegada a hora da esfinge,

o momento é de despir

a pele;

entranhar o casco retorcido

no corpo;

ouvir a orquestra de tom

bar mudez.

 

 

 

 

 

 

As prostitutas de Bangladesh

 

 

Sim, é triste enrijecer

sombras nos olhos

enquanto por dentro renasce,

sempre e sempre,

um clarão de sol nascente.

 

 

 

 

 

 

 

Luminescências

 

 

Quantos grilos

erguem a noite

?

Quantas raízes

solidificam a pata

?

Quantos trinares

alçam a tarde luminescente

?

Quantas asas

eternizam o vento

?

 

 

 

 

 

 

O sentimento das pedras

 

 

Uma

pedra

é uma

pedra,

não mais

que massa

e esquecimento.

 

Um

corpo

é um

corpo,

não mais

que mineral

e alumbramentos.

 

Corpo

e pedra

próximos;

corpo

e pedra

cinzas;

corpo

 

e pedra

cidades;

corpo

e pedra

desespero.

Um corpo

é uma pedra

 

e uma pedra

é um corpo.

Pesam ambos

e ambos

danificam

o vento.

Não há conceitos

 

opositores:

pedra

e corpo

são metafísicas

de fogo

e água.

Por isso

 

todos pedra;

por isso

todos corpo.

E assim como a pedra

sangra o cerne dos dias,

o corpo rememora

os oceanos

 

que o atinge.

 

 

 

 

 

 

Baleia de aço

 

 

                            Para Simone Brantes

 

 

Todos os dias,

tal qual Jonas sepultado por entranhas,

sou engolido pela baleia

de aço enquanto nas mãos mundos

de ossos e veias explodem.

A viagem de concreto

dos homens não se alheia ao poema.

Como podem ouvidos tão cansados

para o nascimento do canto?

O poeta plastifica pássaros,

come memórias,

liberta mares,

fere o enrijecer,

enquanto tantos e tantos digerem

suas próprias vicissitudes

e não observam os curtos milagres

no barro cru das páginas.

São breves,

talvez tristes,

os sinos que denunciam

pequenas guerras à margem

de nós.

Mas ninguém ouve.

Mas ninguém canta.

E todas as noites abandonam

a baleia em sua sede de tonéis

e piche e retornam a casa

represados de silenciosos oceanos.

O poeta,

alheio a sede comum,

afoga-se

enquanto atira ao mar pequenos esquifes

repletos de livramentos.

 

 

 

 

 

 

Santificado

 

 

Amar com audácia

e desespero e estrondo,

como a fruta que se lança

do galho sem saber

da queda a imensidão.

 

Amar com enfermidade

e delírio e cinzelando

um nome na pele,

como os escultores que criam na pedra

uma carne para a loucura.

 

Amar com enfermidade

e ânsia e fim,

como o pai que abraça

seu filho em Hiroshima

aguardando a queda do sol.

 

Amar

é cultivar

raízes na pele.

 

Amor

é catástrofe

santificada.

 

 

 

 

 

 

Marés

 

 

Uma das maiores recordações da infância: o mar. Ao pisar nas lodosas pedras da praia, ao me aproximar do sal, sentia no corpo o arrepio da maresia, a ansiedade de um animal terrestre na espinha. Entendia-me vivo e era necessário suportar a imensidão, o horizonte.

Dizem que a maresia corrói ferro (e temos ferro no sangue). Para mim ela sempre pareceu erguer o azul em pequenas partículas de transparência. A forma como as ondas desenhavam os caminhos, apagavam o presente... O horizonte era um olvidar de peixes. Anos depois, sem entender aquelas pedras, sem compreender aqueles arrepios de sal, reencontrei-a como quem descobre uma concha ao revirar areia. A mesma intensidade de mar invadiu-me. Os arrepios salgados, as partículas de azul…

 

Ela possuía toda a imensidão dos oceanos nos olhos, mas não se afogava.

 

 

 

 

 

 

Emancipação

 

 

Se somos

espelhos carnificados

— imagem e semelhança —

por que devorar

tua carne

é pecado de fogo?

 

 

setembro, 2019

 

 

Angel Cabeza nasceu no Rio de Janeiro. Escritor, atua como coordenador editorial, produtor gráfico e projetista. Publicou Canção para os seus olhos e outros castanhos (Urutau, 2019), Sempre existe um último momento (crônicas, 2011) e Vidro de guardados (poemas, 2010). Integra as antologias Os melhores poemas de 2016 (ZL Editora, 2017, edição bilíngue), O Casulo (Patuá, SP), 29 de abril, o verso da violência (Patuá, 2015), Escritores da Língua Portuguesa, Volume I (ZL Editora, 2012), Qasaêd lla falastin — Poemas para a Palestina (Patuá, 2013) e Geração em 140 caracteres (Geração Editorial, 2012). Possui textos publicados em diversas revistas literárias, entre elas Odara (UFRJ), Vício Velho, Literatura e Fechadura, Gueto, Zunái, Subversa, Eutomia, Cronópios, Cuarto Propio (Universidade de Porto Rico), Verso Destierro (México) e Generación Espontánea (Madri).

 

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