©evandro o souza 
 
 
 
 
 
 
 

I

 

 

Não sei soletrar a palavra mundo

sem abrir nela uma rosa, uma infância.

Queria fazer da vida um objeto de arte.

Fazer de cada passo um passo com alguém.

Como se cada derrota sobrevivesse a si mesma,

e um balão subtraísse do ar a solidão que voa

entre mim e você.

Me isolo num verso que não vem.

Escavo um poema de meu tempo.

A palavra só existe onde o silêncio permite.

É preciso amadurecer, como algumas palavras,

como essa barba que se vai desenhando branca.

O motor dos dias esconde de ti a cidade,

o reino, as fadas.

Sou menor que todas as coisas que

ainda não existem.

Porque cumpre em qualquer nascimento

alguma alegria.

Toda a minha vida está incomunicável.

Preciso desembrulhar o rosto do mundo

e dar um nome ao que desconheço.

Preciso fazer da loucura um pouso para o amor.

Preciso soletrar a palavra mundo

sem abrir nela uma partida.

E, mesmo se partir,

levar nas mãos alguma aurora.

 

 

[04 de julho de 2012]

 

 

 

II

 

 

                            "Tudo

                            será difícil de dizer:

                            a palavra real

                            nunca é suave".

                            Orides Fontela, em "Fala"

 

 

De dentro das nuvens,

escrevo para o ócio.

Viver é distante.

A palavra, no punho pesado da vida,

faz seu voo indócil.

Versejar é comer nos lábios da morte.

É fazer descer das nuvens

alguma raiz de encantamento.

Havia no fruto do poema um coração

e suas imprecisões.

Amar é impreciso.

Há, na busca, o risco de não achar o que

se ama, e um corpo perder-se inteiro

dentro de outro corpo.

Há no ócio o oposto à velocidade da luz:

o gosto simples de vagalumear.

Parar o relógio da terra

e acender o relógio do céu.

O ócio do bico dos seios,

apontando livres para o mar.

Dos canteiros quentes sob o sol.

O ócio das máquinas e seu rangido ensurdecedor.

Do ardume das flores.

Do verso sem plumas, que faz tremer o ar.

O ócio de tão pouco vos ofertar,

senão a minha própria ausência,

nesta noite em que não há nada para escrever.

 

 

 

 

 

 

III

 

 

Caem de teus olhos

as últimas estrelas tropicais.

As margens da vida, como das águas,

carregadas de distância,

me aproximam das novas estátuas de sal.

Fico, até o fim dos meus dias, proibido

de olhar para trás.

Guardo só para nós

o que vamos partilhar aqui.

Do que é justo em você,

em mim é longe e desigual.

Tiro da palavra o meu sustento.

E quase tudo fotografo,

como se fotografam os inventos.

Nada mais pode ser demonstrado pela razão.

É preciso desperdiçar algumas palavras,

para que outras sobrevivam.

Escrevo para começar alguma coisa que não termine.

Qualquer coisa que passe além da realidade.

 

Depois de estar cansado de procurar

aprendi a encontrar.

Depois de um vento me ter feito frente

navego com todos os ventos.

 

A poesia é o ferimento mais vivo

de todo coração inabitado.

Meu sonho tomba com o horizonte,

na mesma altura do primeiro voo

do primeiro pássaro.

Recolho o resto dos dias que,

para os outros,

não têm função precisa.

A mecânica viva do esquecimento.

Onde, em nós, abrigamos a vida?

Nos dezembros, as rosas e as lembranças desabrocham.

E percebo que minha memória não é

a palavra imóvel do dicionário:

sou, entre tudo, princípio e fim.

Crio do tempo que me rouba o tempo

e lanço pássaros

sobre o que é indizível e efêmero.

Nada é mais assombroso

que o silêncio de um nome ainda vivo.

Alguma vontade que desconheço

me mantém preso a este poema.

 

Entre duas notas de música existe uma nota,

entre dois fatos existe um fato,

existe um sentir que é entre o sentir.

 

Já não é possível mastigar a vida com os dentes da infância.

Estendo saudades em um varal entardecido.

E vejo que desejar sobre mim

é desejar o seu desejo.

Ainda haverá tempo para construir

a máquina que fabricará o amor?

Crio, de minhas palavras magras,

um compromisso com o nada.

A vulva que gera a beleza

em sua alegria nua.

Nossas pupilas dilatadas

em uma terra em transe.

É preciso desviar o olhar

e ver que a vida é um grande

poema aos pedaços.

Dos mundos impalpáveis,

já não é possível pensar

na forma calma de um dia feliz.

A fala baixa, a cabeça baixa,

o amor...

Escrevo porque me falta a fala.

A intransitiva dor da linguagem.

Embora me doa sempre mais

a boca cheia de silêncios.

Pra toda cor, há um raio cinza

que corta o trópico e dorme nas antenas.

Pra todo silêncio, haverá uma bomba reversa

como o som primitivo de uma pessoa feliz.

Sobe entre nós o fogo vivo da fome, quando

percebo que esqueço de passar o café

nesta manhã de insônia,

em Ribeirão Preto.

É preciso acordar, antes que se vá

a última estrela tropical.

 

 

 

 

 

 

IV

 

 

                            Para Simone Gutierrez

 

 

                            "Senhor Jesus, o século está pobre.

                            Onde é que vou buscar poesia?

                            Devo despir-me de todos os mantos,

                            os belos mantos que o mundo me deu".

                            Jorge de Lima, em "O poeta diante de Deus"

 

 

O ar amadurece as nuvens, os pássaros, os sonhos. A terra amadurece o homem, preso em aparelhos de envelhecer. O século está pobre, Jorge. Onde é que vou buscar arroz e poesia? Pobre o rosto paralisado, nem mais um riso. O dia de colher a rua e seus novos pobres. Há falta de cisne nos olhos das pessoas. O presente embaciado, duro, empobreceu a língua e o estômago de minha gente. São pobres as canções de interpretar o mundo. Os cartões de Natal, que já não trocamos. Devo despir-me do que é belo? Nascem cem palavras de dentro de outra palavra. Um amor não nasce. O grito como coisa pública de anunciar o peso do esquecimento sobre os ombros. Na explosão dos edifícios órfãos de humanidade, sobe com o vento a palavra que deixamos de dizer. Nada dança ou reluz diante do sol dos olhos. Nem galos avançam sobre a manhã. Mas tuas mãos, como asas abertas, escrevem, o voo que a noite não pode impedir.

 

 

 

 

 

 

V

 

 

Ainda sinto as dores de cabeça e a melancolia de João Cabral. Ainda penso por que Maiakovski se foi aos 37. Ainda ouço os olhos de Carolina, descobertos de fome, cobertos de poesia. Ainda Drummond, descendo do sol, enquanto caio da tempestade. A mesma lua nos embaraça. O nó na garganta é de palavra. A vida é laço que, ainda, não aprendi a desatar.

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

                            "Não fui, na infância, como os outros

                            e nunca vi como outros viam."

                            Edgar Allan Poe, em "Só"

 

 

Como Poe, amei sozinho,

o que sozinho me restava amar.

A vida começa atrasada.

Tinha, no irrespirável das noites sem ar,

uma secura de estrelas no peito.

Carregava duas cores no bolso,

o branco e o nada.

O pouco era longo e farto.

Na madeira gasta dos olhos,

um arco-íris de carvão sustentava o céu

que era impossível inventar.

A vida, irreconstruível do fim para o começo.

Na alucinação dos dias,

a admirável lentidão do amor,

que nunca florescia.

Amar sozinho é escrever para o silêncio.

De dentro dos olhos pretos da vida,

uma rosa explode o escuro,

tão universal como a fome,

como o ódio,

como o homem.

A vida que delira e inflama,

lenta e sozinha,

como um punhado de amor,

deixado pelo caminho. 

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

Tudo está feito. Carece-nos destecer as distâncias, como a beleza, que com o homem busca se reconciliar. Escrevo com os olhos fechados o voo solitário de uma andorinha. A vida, como máquina de comoção, abre-se em dias úteis e guarda os domingos para estender ao sol a roupa lavada de lágrimas. Prendo o real em gaiolas, num ato inútil. Não se inventa como guardar as manhãs só com os olhos. Algum bicho é necessário para comer o podre da paisagem. Prezo a reza dos moribundos, a roda-viva que desce do céu a fuligem das vozes. Aluga-se uma cama vazia aos fundos deste poema. Aluga-se uma noite repetida no coração escuro do homem. Aluga-se o homem, que se esqueceu de amanhecer.

 

 

[Brasília, 26 de outubro de 2014]

 

 

 

 

 

 

X

 

 

Gosto das imensidões que brotam das pessoas. Outro dia chovia um verso tímido na boca de uma mulher. Pensei em lhe emprestar um sol que carregava no bolso. Pouco entendo de sol. Mas acendo palavras quando me sinto sozinho. Daí o sol no bolso, o medo de anoitecer como uma ausência.

 

 

 

 

 

 

XVI

 

 

Tudo em mim é partida. O destino passa pelo que os olhos não alcançam. A vida parecerá ter algum sentido quando descobrirmos que a psicologia é um estudo dos corpos. O extremo dos corpos, que só a língua em vertigem pode alcançar. Enquanto espero, ouço a música que canta a América do Sul. Quem ainda espera por nós? Todos os meus passos buscam o mar. O mar que sou e vivo. De costas para o céu, a rua profunda da vida. Nela, jogamos nossas moedas de desejos. O desejo de seguir ou de voltar. Ainda não consegui medir a distância das mãos para o coração. Tenho a sensação de que a prática dos dias nos desensina ao encontro. Encolho os ombros. Deixo que a consciência me escreva melhor. Engulo a saliva que fecunda este poema. Nasço para dentro. E sou em mim todos os mundos que me cercam.

 

 

 

 

 

 

XX

 

 

                            "Peço como herança o seu olhar,

                            Que sempre-verde vê o romper dos ovos,

                            Os pássaros que se aninham nos vasos".

                            Francesca Cricelli, em "Herança"

 

 

São mais felizes

os que enxergam na ausência.

O olho copia tudo o que vê.

A espera aguça a visão.

Olhar é como dominar o difícil ofício

de domar cavalos

e poemas.

Os óculos dos dias

vão tornando a mão invisível.

A esta altura da vida,

meus olhos, meus versos, mudam de opinião,

como as nuvens mudam com o vento.

O jogo às vezes se cansa de nós.

E nos vence.

Como o mar é condenado a revelar a onda

que não pode esconder.

Como esta noite apagará o amor,

que não aconteceu.

 

 

 

 

 

 

XXIX

 

 

                            "e a tarde

                            pendurada no raminho de um

                            fogáceo arborescente

                            deixava-se ir

                            muda feito uma coisa última"

                            Ana Cristina Cesar, em "dias não menos dias"

 

 

 

 

 

 

Tarde as tendas da alma se abrem ao sol. Tudo é tão perto, e distante o amor, paralisado. Escrevo desarmado de palavras, como quem planta abraços de papel. Aqui assento meus pensamentos. A inatingível espera da vida que não és. A cidade está vencida, as flores, os ídolos, a vida vencida. Deixa que alguma luz limpe o teu rosto. Que o sal marinho queime as tuas tardes de melancolia. Não, o tempo não chegou de completa justiça. Somos todos inocentes. Seres de avolumados cabelos, pernas e tônus muscular. Temos olhos e tato. E fábricas onde se fabricam cartazes e sobremesas de medo. Onde te escondes mais, é ali que existes. Guardo uma canção antiga num peito cansado. Guardo apenas o ar necessário para encerrar este poema. Minha casa é a rua, a ruína, o relento. Mas meu corpo ainda respira, e deseja amar.

 

 

 

 

XXXIX

 

 

                            "morrer de medo do único rosto

                            no espelho

                            polir o espelho"

                            Silvana Guimarães, em "esta tarde vi llover"

 

 

Tão longe as mãos que escrevem dentro de mim. É inverno para os olhos, mas meu peito constela uma fome de sol. Escrevo como se escrever me dispensasse de alguma obrigação com a verdade. Como se inventasse o que não consigo explicar. Quase sempre a palavra ignora o limite do entendimento. Quase sempre a vida é menos que a palavra, a vida intransponível, que repetidamente não se explica. A vida que, talvez um dia, aprenderemos a amar. Há liberdade na ausência de sentido. Escrevo, não para compreender, mas para encontrar apenas o que sinto, e seguir. Nada é tão longe quanto partir. Quando partir é deixar para trás todos os eus que nunca viveram por mim. Somos a última cópia de nós mesmos. A chave desligada da memória é um coração embrulhado para presente, que nunca foi usado, que nunca me pertenceu. Como vendem em lotes certas porções de terra, queria ter a posse de alguma coisa que fosse só minha. Decidi, então, que aquela noite poderia caber, inteira, em uma única estrela. Tomei-a, levei-a para casa e pendurei um pequeno pedaço de céu que me pertencia. A biografia do céu é também um pouco a minha: distante, nostálgica e incompreensível.

 

 

[Em A última estrela tropical. Patuá, 2019]

 

 

setembro, 2019

 

 

João Augusto é jornalista, já escreveu para cinema e tem escrito para teatro. Pai da Letícia e do Gabriel, casado com a professora Elaine. Nasceu em Bebedouro/SP e mora em Ribeirão Preto/SP desde os sete anos. Publica, em 2019, pela Editora Patuá, o livro de poesia A última estrela tropical. Escrever dá a João a comunhão com o indizível, põe nos seios da tarde umas rendas de embelezar, e revela, sob o vestido da noite, o nome impossível da vida. João descobriu que escreve porque ama.

 

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