sorte
toque aqui e diga abra
um biscoito da sorte
por favor
eu sei dos receios dos desencaixes
eu já entendo o suficiente das insuficientes
políticas de inclusão
minha mala vazia dança pra lá e pra cá no meio do quarto
não porque eu pretenda viajar
mas porque estou com preguiça
de guardá-la no alto do armário
veja bem
01 alergia na virilha
13 telefonemas de um número desconhecido
o tapete que comprei e ficou ali no canto enrolado
pois estou com pena de colocá-lo no chão
e o cachorro fazer xixi em cima
quanto tempo se tem a perder?
as comidas estragam em uma rapidez assombrosa
e eu só percebi isso agora
que comecei a cozinhar
toque aqui e diga abra um biscoito da sorte
eu estou pouco propensa a dizer qualquer coisa
a demandar aberturas
minha sorte é atravessar o dia e dormir
sem pensar muito no que
perdi hoje
eu ando feroz como as águas
lembra quando ficamos só eu e você no planeta marte?
agora não mais
eu ando triste como as águas
chorando dentro da boca dos outros
e me encolho tanto pra caber
no espaço entre os minutos de cada hora
que às vezes nem eu me encontro
sim, eu ando feroz como as águas
eu lembro tudo e mais um pouco
mas lamber as minhas lembranças com você parece que não
faz vibrar o agora em
nada
por mais que eu me debruce sobre o tempo
correm as memórias pra fora
no escuro não sei dizer se você caminha
pra longe
ou pra perto
de mim mas fecho os olhos e tento lembrar só
de todos os lugares onde ainda podemos
encostar
um no outro
verão
o que não te digo é que
sempre faz calor por dentro do meu corpo
é sempre verão
porque estou sempre em movimento
mesmo quando estou parada
porque sempre há faíscas correndo
gatilhos sendo puxados
insetos tietando as luzes que piscam
tudo ao mesmo tempo agora
e ainda que eu tentasse conter
não conteria
porque não consigo nem sequer
ocupar esse espaço
sem sentir que há algum cômodo ainda
não visitado
algum canto esquecido que não alcanço
terreno vasto inexplorado
o que não te digo é que esse corpo
abriga um oceano
você percebe os faróis
mas não enxerga os naufrágios
nunca precisou
presenciar um afogamento
enquanto segura os pés no raso
dentro do meu corpo não se faz silêncio
por trás de todos os apelos
há sempre um canto escuro de sereia
esses dias
o fim passa tão rápido
às vezes penso que vou colidir com a cama
que vamos nos tornar a mesma
substância
eu sob as paredes de uma casa idosa
o tipo de idosa silenciosa que esquece
panelas no fogo
e não pergunta por ninguém
(nem haveria quem respondesse)
às vezes penso que já estou longe
que em algum momento fui
esfarelada e agora me espalham
sem que me seja possível retornar
ao ponto central (talvez porque não
haja centro)
o fim é imediato o fim não espera
ele acontece antes de acontecer
posso dizer que não vou ser pega
pelos tentáculos do tempo e ainda assim
who's to say
mastigo os relógios da casa até que
as horas não estiquem mais
esses dias que estamos vivendo há anos
(deus esses dias que estamos vivendo há anos)
não existe palavra
que os impeça de acontecer
do fogo
tenho lentamente morrido
a cada mulher morta no jornal
eu tenho lentamente morrido
lentamente desaparecido
a cada mulher morta no jornal
todas as fotos delas memorizadas
em mim
cada uma delas
se mesclando ao meu corpo
como se fôssemos a mesma
e uma só
morrêssemos todas juntas
eu tenho sentido dores
em todas as partes do corpo
que foram massacradas violadas arranhadas
eu passo a mão e sinto os buracos
de todos os tiros que já me mataram
às vezes abro a boca pra dizer mas não digo
às vezes na garganta esganada
ainda procuro incansavelmente um resto
de voz
e quando penso que o silêncio vai me mastigar
a qualquer momento
como um tsunami violento o grito
ainda vem
pra me lembrar
que nesses nossos corpos mora
uma raiz profunda
ancestral
a resistência de um vulcão à espreita
que se prepara pra lamber o mundo
de uma vez
invisible self
começa uma fogueira
sem querer
todo o seu corpo acordado agora
sem querer
sente o grito estourando os dentes enquanto salta
você sabe exatamente para onde ir
sem precisar perguntar
não existe nada a ser dito
que o seu corpo já não tenha ouvido enquanto
dormia
mas ele esquece
começa uma fogueira agora
sem pensar
começa um grito agora
enquanto salta
enquanto corre
sem pensar
você responde a todas as perguntas que nunca
foram feitas
você atravessa todos os espaços onde ainda
não pisou
deixa o seu corpo perceber que sabe
o que ele já sabe há milênios
e insiste ainda assim em esquecer
começa uma fogueira
e entra nela agora
sem hesitar
você não lembra mas nasceu pronta para todos
os incêndios
2019
a barbárie coloca as mãos sobre
o meu peito toda noite
por trás dos meus olhos
brotam crianças
sem rosto mulheres sem bocas
o quarto invadido por esse grito
fino esquálido pegajoso
que pouco a pouco
cresce toma as paredes
os móveis os cômodos
não adianta fechar as janelas
todas as noites a barbárie
sapateia sobre as ruas com
pés de ferro
espalha seu cheiro por todas as casas
desmorona algumas
incendeia outras
levanta a mão dos homens sobre
os ossos já quebrados das mulheres
acende os corpos que acreditam
serem os únicos corpos possíveis
e por isso mesmo vandalizam qualquer
outro
pra que nenhum outro
exista
todas as noites a barbárie sobe
sobre os palanques congrega enormes
cultos produz plácidos discursos
dita leis ideias estragos
do lado de fora a chuva leva
o resto de uma chance
estraçalhada
para a boca sempre um pouco mais aberta
do bueiro
uma mulher correndo
toda a felicidade do mundo está
em mim é só ver
o sorriso que escorre pelas minhas pernas
o sorriso que afrouxa as articulações
uma mulher correndo
eles sabem
nunca é só uma mulher correndo
que dizer então da que sorri
com os pés vulcânicos mastigando a terra
lambendo o tempo dos homens
como lamberia uma cria
fraca demais para se manter em pé
toda a felicidade do mundo mora em mim
mesmo quando meus dentes estilhaçados
vão se soltando pelo caminho
e eu mesma os pisoteio como pisotearia
um rio de pérolas
trégua
cubro o vazio para que ele durma
em paz
não tenho ossos
para tantas quedas
e o que tinha já foi
cinco ou seis lutas atrás
hoje o dia amanhece mudo
os inimigos com as tropas
lá fora
mas ainda repito involuntária
os gestos
contra o silêncio
do oponente sem rosto
tenho dores medievais
não escuto mais berros
costuro partes que não se pertencem
estou límpida e aniquilada
mas parece que vim
para ficar
setembro, 2019
Maíra Ferreira nasceu em 1990 no Rio de Janeiro, onde cursou Letras e mora até hoje. Atualmente, termina o mestrado em Teoria Literária na UFRJ e escreve diferentes textos pelas esquinas da internet. Esses dias que estamos vivendo há anos é o seu segundo livro e foi publicado pela Editora Urutau, em julho de 2019.
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