©herbert g. 
 
 
 
 
 
 
 

sorte

 

 

toque aqui e diga abra

um biscoito da sorte

por favor

eu sei dos receios dos desencaixes

eu já entendo o suficiente das insuficientes

políticas de inclusão

minha mala vazia dança pra lá e pra cá no meio do quarto

não porque eu pretenda viajar

mas porque estou com preguiça

de guardá-la no alto do armário

veja bem

01 alergia na virilha

13 telefonemas de um número desconhecido

o tapete que comprei e ficou ali no canto enrolado

pois estou com pena de colocá-lo no chão

e o cachorro fazer xixi em cima

quanto tempo se tem a perder?

as comidas estragam em uma rapidez assombrosa

e eu só percebi isso agora

que comecei a cozinhar

toque aqui e diga abra um biscoito da sorte

eu estou pouco propensa a dizer qualquer coisa

a demandar aberturas

minha sorte é atravessar o dia e dormir

sem pensar muito no que

perdi hoje

 

 

 

 

 

 

eu ando feroz como as águas

 

 

lembra quando ficamos só eu e você no planeta marte?

agora não mais

eu ando triste como as águas

chorando dentro da boca dos outros

e me encolho tanto pra caber

no espaço entre os minutos de cada hora

que às vezes nem eu me encontro

sim, eu ando feroz como as águas

eu lembro tudo e mais um pouco

mas lamber as minhas lembranças com você parece que não

faz vibrar o agora em

nada

por mais que eu me debruce sobre o tempo

correm as memórias pra fora

no escuro não sei dizer se você caminha

pra longe

ou pra perto

de mim mas fecho os olhos e tento lembrar só

de todos os lugares onde ainda podemos

encostar

um no outro

 

 

 

 

 

 

verão

 

 

o que não te digo é que

sempre faz calor por dentro do meu corpo

é sempre verão

porque estou sempre em movimento

mesmo quando estou parada

porque sempre há faíscas correndo

gatilhos sendo puxados

insetos tietando as luzes que piscam

tudo ao mesmo tempo agora

e ainda que eu tentasse conter

não conteria

porque não consigo nem sequer

ocupar esse espaço

sem sentir que há algum cômodo ainda

não visitado

algum canto esquecido que não alcanço

terreno vasto inexplorado

o que não te digo é que esse corpo

abriga um oceano

você percebe os faróis

mas não enxerga os naufrágios

nunca precisou

presenciar um afogamento

enquanto segura os pés no raso

dentro do meu corpo não se faz silêncio

por trás de todos os apelos

há sempre um canto escuro de sereia

 

 

 

 

 

 

esses dias

 

 

o fim passa tão rápido

às vezes penso que vou colidir com a cama

que vamos nos tornar a mesma

substância

eu sob as paredes de uma casa idosa

o tipo de idosa silenciosa que esquece

panelas no fogo

e não pergunta por ninguém

(nem haveria quem respondesse)

às vezes penso que já estou longe

que em algum momento fui

esfarelada e agora me espalham

sem que me seja possível retornar

ao ponto central (talvez porque não

haja centro)

o fim é imediato o fim não espera

ele acontece antes de acontecer

posso dizer que não vou ser pega

pelos tentáculos do tempo e ainda assim

who's to say

mastigo os relógios da casa até que

as horas não estiquem mais

esses dias que estamos vivendo há anos

(deus esses dias que estamos vivendo há anos)

não existe palavra

que os impeça de acontecer

 

 

 

 

 

 

do fogo

 

 

tenho lentamente morrido

a cada mulher morta no jornal

eu tenho lentamente morrido

lentamente desaparecido

a cada mulher morta no jornal

todas as fotos delas memorizadas

em mim

cada uma delas

se mesclando ao meu corpo

como se fôssemos a mesma

e uma só

morrêssemos todas juntas

eu tenho sentido dores

em todas as partes do corpo

que foram massacradas violadas arranhadas

eu passo a mão e sinto os buracos

de todos os tiros que já me mataram

às vezes abro a boca pra dizer mas não digo

às vezes na garganta esganada

ainda procuro incansavelmente um resto

de voz

e quando penso que o silêncio vai me mastigar

a qualquer momento

como um tsunami violento o grito

ainda vem

pra me lembrar

que nesses nossos corpos mora

uma raiz profunda

ancestral

a resistência de um vulcão à espreita

que se prepara pra lamber o mundo

de uma vez

 

 

 

 

 

 

invisible self

 

 

começa uma fogueira

sem querer

todo o seu corpo acordado agora

sem querer

sente o grito estourando os dentes enquanto salta

você sabe exatamente para onde ir

sem precisar perguntar

não existe nada a ser dito

que o seu corpo já não tenha ouvido enquanto

dormia

mas ele esquece

começa uma fogueira agora

sem pensar

começa um grito agora

enquanto salta

enquanto corre

sem pensar

você responde a todas as perguntas que nunca

foram feitas

você atravessa todos os espaços onde ainda

não pisou

deixa o seu corpo perceber que sabe

o que ele já sabe há milênios

e insiste ainda assim em esquecer

começa uma fogueira

e entra nela agora

sem hesitar

você não lembra mas nasceu pronta para todos

os incêndios

 

 

 

 

 

 

2019

 

 

a barbárie coloca as mãos sobre

o meu peito toda noite

por trás dos meus olhos

brotam crianças

sem rosto mulheres sem bocas

o quarto invadido por esse grito

fino esquálido pegajoso

que pouco a pouco

cresce toma as paredes

os móveis os cômodos

não adianta fechar as janelas

todas as noites a barbárie

sapateia sobre as ruas com

pés de ferro

espalha seu cheiro por todas as casas

desmorona algumas

incendeia outras

levanta a mão dos homens sobre

os ossos já quebrados das mulheres

acende os corpos que acreditam

serem os únicos corpos possíveis

e por isso mesmo vandalizam qualquer

outro

pra que nenhum outro

exista

todas as noites a barbárie sobe

sobre os palanques congrega enormes

cultos produz plácidos discursos

dita leis ideias estragos

do lado de fora a chuva leva

o resto de uma chance

estraçalhada

para a boca sempre um pouco mais aberta

do bueiro

 

 

 

 

 

 

uma mulher correndo

 

 

toda a felicidade do mundo está

em mim é só ver

o sorriso que escorre pelas minhas pernas

o sorriso que afrouxa as articulações

uma mulher correndo

eles sabem

nunca é só uma mulher correndo

que dizer então da que sorri

com os pés vulcânicos mastigando a terra

lambendo o tempo dos homens

como lamberia uma cria

fraca demais para se manter em pé

toda a felicidade do mundo mora em mim

mesmo quando meus dentes estilhaçados

vão se soltando pelo caminho

e eu mesma os pisoteio como pisotearia

um rio de pérolas

 

 

 

 

 

 

trégua

 

 

cubro o vazio para que ele durma

em paz

não tenho ossos

para tantas quedas

e o que tinha já foi

cinco ou seis lutas atrás

hoje o dia amanhece mudo

os inimigos com as tropas

lá fora

mas ainda repito involuntária

os gestos

contra o silêncio

do oponente sem rosto

tenho dores medievais

não escuto mais berros

costuro partes que não se pertencem

estou límpida e aniquilada

mas parece que vim

para ficar

 

 

setembro, 2019

 

 

Maíra Ferreira nasceu em 1990 no Rio de Janeiro, onde cursou Letras e mora até hoje. Atualmente, termina o mestrado em Teoria Literária na UFRJ e escreve diferentes textos pelas esquinas da internet. Esses dias que estamos vivendo há anos é o seu segundo livro e foi publicado pela Editora Urutau, em julho de 2019.

 

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