ELEGIA 2014
Entre cismas e sismos,
hesito: eu podia ter matado o déspota
e enforcado o último clérigo em suas tripas.
Em vez disso,
peregrino de bar em bar
e venho dar na sua porta com um poema novo:
este, em que digo uma coisa
e faço outra.
Entre a vodca e o tédio,
vacilo: eu devia tocar fogo no Congresso
ou na Associação Comercial
e pichar os muros da cidade com um relâmpago:
eu sou o deus do fogo e minha amada é uma cicuta.
Em vez disso,
encontro um amigo e lhe falo de meus planos,
um livro novo, uma viagem
e as pessoas que há tanto já não vemos.
Entre caracteres e confetes,
oscilo: conto a verdade e me dano
ou me dano e sonego a verdade?
Enquanto isso, engulo as pequenas mentiras
do cotidiano
com que adiamos para outro século
a felicidade coletiva
e individual.
FLORES VOTIVAS
Eu
não tenho
medo da morte.
Eu tenho medo quando uma coisa cai
e quebra
como porcelana,
seja uma velha amizade,
um novo amor
ou o sentido — fortuito — dos orbes.
Aí vem o vazio,
pior que a morte,
que não cola mais os cacos espalhados no chão.
Eu
não tenho
medo da morte.
Eu tenho medo da ode
inconclusa, da carta interrompida,
do beijo suspenso,
seja este poema — que em si nunca estará completo —
seja a vida, esta obra sempre aberta...
Por que o medo então,
se tudo é acidental
e acidentado? Por que não assumir de vez
que este medo — que me paralisa no trabalho, na fila do banco, no amor —
não é, no fundo, no fundo, o medo da própria morte?
Talvez seja
para não dar o braço a torcer
a esta velha desmancha-prazeres
que corta os brotos
antes das flores, ou, quando não,
colhe as flores antes dos frutos
— e as oferece ao Nada.
BLUES
"When the train, it left the station
with two lights on behind.
Well, the blue light was my blues
and the red light was my mind".
Robert Johnson
Ela se foi.
Estou só:
o último cara
no último bar.
Ela se foi.
Restou só a noite
dentro e fora de mim.
Ela se foi.
E com ela foi-se tudo
o que um dia eu fui.
Ficou só a minha dor,
a minha gaita
e este blues.
Ela se foi:
o dia que vai nascer
sobre a estação deserta
será o mais azul
e o mais triste
do mundo.
MEMORABILIA
"Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua".
Jorge Luis Borges
Olhar o rio e compreender que o tempo
é um rio que flui e não retorna, e, se retorna,
será, num tempo outro, um outro rio.
Olhar o rio e compreender também
que, se as suas águas as nossas mágoas
levam, é nesse rio, além da foz,
além do mar, além da noite extrema,
que as nossas lágrimas se transfiguram,
iluminadas não das mágoas mortas,
que destas já não há nenhum remédio,
mas daquelas que ainda surgirão,
pois se há fluir, se há correr, se há viver,
sempre haverá sofrer, e pena, e mágoa.
Olhar o rio e compreender que o tempo
é o rio sem fim em que nos batizamos,
irremediavelmente naufragados,
todo dia, toda hora, a todo instante.
Olhar o rio e aceitar que não podemos
nos agarrar aos ramos e às raízes
da encosta — e que os barrancos nem sequer
a fantasia da estabilidade
nos podem, despencando, transmitir.
Olhar o rio e compreender enfim
que, se a sina de todo rio é o mar,
o fim de toda gente é navegar,
ai, sem cartas, sem ferros, sem correntes,
em direção do insofismável mar,
na imensa noite que da noite outra
cai, silente, solene, generosa.
Olhar o rio e, mais que compreender,
reconhecer que o fim, no fim de tudo,
é se deixar levar por essas águas,
sem reservas, sem medos, sem paixões,
até que, num rio outro, além da noite última,
possamos vir à tona, como arcanjos,
nas águas límpidas do não-ser.
CORPO SANTO
Exausto das lides do amor,
lavo teus olhos
em que ficaram impressas
as imagens do dilúvio que nos afogou
e cujas pestanas se fecharam sobre o meu corpo torturado.
Escaldo teus pés
que conheceram as errâncias de muitos caminhos
e calcaram a cabeça da serpente numa tarde de maio.
Banho o teu dorso
dócil às minhas mãos maduras
e acostumado aos trabalhos nas galés.
Com a água das primeiras chuvas do outono,
enxáguo teus lábios
que proferiram blasfêmias de intrépido encanto.
E finalmente banho o teu púbis,
escuro como a noite primeira,
e, dentro dele,
o fabuloso sol
que me incendiou.
AMOR ADENTRO
Adentro teu corpo
como quem adentra o mar
e, mar adentro, adentra a noite:
lemes, velhas cartas de navegação, astrolábios
são inúteis para me guiar. Não sei se descobrirei Américas, Atlântidas
ou se me afogarei. Sei apenas que o mar
tem gosto de lágrimas
e o amor é salgado.
Adentro teu ser
como quem adentra o mar à noite
e, mar adentro, noite adentro, adentra o mistério dos seres,
sem âncoras, sem bússolas, sem nenhuma orientação.
Não sei se ouvirei sereias, preso ao mastro como Ulisses,
ou se serei arrebatado como Elias.
Sei apenas que é tarde,
muito tarde,
e que todo amor é amargo.
SACRAMENTO
Teu corpo é belo
não porque seja perfeito
segundo a régua
de olhar alheio.
Teu corpo é belo
(ainda que frágil)
porque é o lugar
da manifestação de tua presença
— única e irrepetível —
no tempo e no espaço.
Ora, o tempo
escorre
e o espaço
se transforma
sempre. Mas a graça
que se mostra em ti
a cada instante
se renova
em novíssimas formas.
Por isso,
cada veio
que se abre,
cada veia
que se mostra
nada mais são
do que sinais
(ainda que frágeis)
de um deus que se revela
para além das aparências.
SANGRAMENTOS
atenção:
cada palavra
é uma arma
branca
calada
vira mágoa
falada
vira chaga
nos dois casos
ela sangra
IN FINES
no fim
você está sempre só
como no fundo
sempre esteve
no fundo
você está sempre nu
como no início
sempre esteve
[Do livro Cosmogonias. Curitiba: Kotter, 2018]
setembro, 2019
Otto Leopoldo Winck. Nascido no Rio de Janeiro, capital, criou-se em Porto Alegre, mas vive em Curitiba desde 1982. Em 2006, foi vencedor do prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o romance Jaboc, publicado no ano seguinte pela editora Garamond. Em 2012, foi galardoado com o Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura, na categoria poesia. Em 2017, lançou pela Editora Appris o ensaio Minha pátria é minha língua: identidade e sistema literário na Galiza. Seu último livro, Cosmogonias, de poesia, saiu em 2018 pela Kotter Editorial.
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