©elisa riva 
 
 
 
 
 
 
 

Eu estava no terceiro ano de medicina quando arrumei um emprego num laboratório de patologia. Eu me sentia à margem na faculdade, esquiva e estranha entre colegas sabidos e ansiosos por fazer perguntas inteligentes. Geralmente tipos cardinais e idealistas como líderes de turma e pseudogênios. Do tipo que terminam sendo empresários de consultórios caros com diplomas na parede, têm dois filhos em média, e falam em entrevistas na tevê sobre saúde, azia, gases, e bem-estar, ou se filiam à MENSA. Ou ambos. Pensar em levantar a mão para fazer uma pergunta me causava taquicardia e náuseas. Além disso, eu temia não usar as palavras certas.

Eu gostava de ciência, mas devaneava nas aulas. Sempre tive uma sensação de estar sonhando, perdida no passado, embora fosse muito focada quando algo me interessava. Acho que por isso fiquei fascinada por patologia. As peças anatômicas, uma atmosfera vintage, os microscópios e as lâminas, sobretudo. As lentes possibilitavam-me o hiperfoco que eu buscava. Tive uma excelente nota na disciplina, e meu interesse era evidente. Operou-se em mim uma espécie de mudança, pois deixei de ser aquela pálida estudante de cabelos despenteados que chegava atrasada na sala de aula. Tornei-me monitora de patologia, e vestia meu avental bem engomado para auxiliar meus colegas mais jovens com prazer.

Em meio a este progresso, fiz boa figura com o lendário chefe do departamento, o professor Gastão, um homem baixinho de cabelos e bigode branco, com cara de português e óculos de aros dourados e olhar severo, e ele convidou-me para trabalhar como sua pupila em seu laboratório privado, no centro da cidade. Terças e quintas após meus compromissos discentes, das 18h às 20h. Eu dividia a função com dois outros colegas, tipos esforçados e metódicos que precisavam de um dinheirinho extra. Eu também. Nem todos os estudantes de medicina são filhinhos de papai, e sempre detestei depender de mesada.

Meu trabalho consistia em descrever, medir e pesar as peças que chegavam no laboratório, e em selecionar fragmentos para processamento com parafina e cortes para as lâminas. Era um trabalho chamado de 'macroscopia'. A microscopia era tarefa para patologistas experientes como o professor Gastão, que às vezes me chamava entusiasmado para olhar a coloração perfeita de alguma lâmina ou um achado excepcional ao microscópio. Sim, ele era um verdadeiro entusiasta do seu ofício, que cumpria com rigor, e havia uma beleza nesta austera devoção que os outros pareciam não compreender.

Dedicar-me à macroscopia talvez tenha sido a primeira descoberta de meu fetiche por descrições precisas e detalhes, que eu iria aprofundar mais tarde em outras áreas. Catalogar e controlar faziam parte de um recurso inconsciente para lidar com uma infância e um mundo desordenado lá fora. Ao cair da noite, duas vezes por semana, trancada na solidão do laboratório, com seu piso de tabuleiros de cerâmica em preto e branco, eu me sentia serena. Em controle.

Meus colegas ficavam impressionados com o fato de eu trabalhar para o Dr. Gastão, pois todos tinham medo dele. Eu não. Eu sabia ser uma excelente submissa, aplicada, cordial e obediente. Aquilo me dava prazer. Não havia gritos. Eu era bem tratada. Se não contrariado, o Dr. Gastão era muito polido e justo, raramente fazia um elogio, mas quando fazia era muito bem merecido. Aprendi lições valiosas de disciplina com ele, astuto como Saturno. O salário era adequado, e empregos para estudantes de medicina eram raros, o que ainda era um bônus no meu currículo.

Quantas horas agradáveis eu passei ali, solitariamente debruçada sobre uma tábua de cortar, segurando uma régua de madeira e uma faca afiada, descrevendo, medindo, e cortando peças cirúrgicas e de biópsias em fragmentos precisos. Fatiei muitos úteros, ovários, tumores, seios, tireoides, próstatas, lesões de pele, e pequenas peças de biópsia de esôfago, estômago e brônquios com dimensões de 2 e 3 mm. Eventualmente chegavam coisas raras. Um intestino num balde, um pulmão, que tinha consistência esponjosa ao corte, resseções parciais de outros órgãos. O laboratório era famoso, e referência para muitos hospitais na cidade, e chegavam coisas muito variadas. Mas não lembro, por exemplo, de identificar nenhum testículo.

Recordo com detalhes as texturas, os cheiros, o formol que ardia nos olhos, as colorações aprendidas no espesso compêndio de capa dura vermelha escuro de patologia. Termos como 'branco-nacarado', 'branco-acinzentado', 'variegado', 'aspecto de carne de peixe', anotações sobre necroses, hemorragias, nódulos e outros achados, tudo rigorosamente observado e mensurado. As melhores descrições de macroscopia são as mais precisas e claras, e eu adorava aquele exercício.

Eu gostava também daquelas estantes antigas de madeira com frascos de vidro exibindo órgãos, cortes transversais de cérebro e fetos nos corredores do laboratório ou no departamento da faculdade. Lembranças que me deixam cheia de nostalgia. Eu poderia ficar ali, embalsamada, em algum tipo de estranho fetiche vitoriano de mumificação egípcia. Helpless. A patologia pode ser muito kinky. Não sei por que, faz-me lembrar uma pequena passagem de um filme de humor negro BDSM que gosto muito, Secretary. James Spader, com sua estudada frieza peculiar e seus cabelos loiros estaqueados, injetando insulina em flores diabéticas dentro de uma estufa de vidro. Não é patologia exatamente, mas lembra essa atmosfera por algum motivo. Deve ser sido a inspiração do diretor em medical fetishes, que tem adeptos bem entusiastas.

Trabalhei no laboratório do professor Gastão durante quase toda a minha formação na faculdade. Por volta do quarto ano tive aulas com o professor Aristides, na disciplina de medicina legal. Ele tinha compleição militar, era bastante rígido, jovem, embora parecesse velho, com um bigodinho bem aparado que faria inveja ao Führer. Usava uma camiseta Hering branca por baixo de suas camisas impecáveis de algodão também brancas, um cinto estilo personal e calças formais de cor cinza. Tornei-me voluntariamente sua assistente, determinada a seguir possível uma carreira de patologia e médica legista e a enriquecer meu CV, e aos sábados eu ia ajudá-lo nas autópsias. O professor Aristides tinha um estilo muito rude de dominação, sua raiva saltava à superfície quando era contrariado, como era evidente pelos espasmos de seus músculos faciais. Para controlar-se, ele trancava-se no seu escritório e fazia várias séries de apoio de frente, arfando.

Eu era uma excelente assistente, pesava os órgãos e o auxiliava devotamente, mas ele parecia não valorizar o meu trabalho. No começo eu temia desagradá-lo, esforçava-me em dobro, mas fui reagindo. Suas constantes humilhações verbais e put downs não faziam o meu estilo. Nunca gostei de degraders, são vulgares. Ele não tinha a finesse do professor Gastão, não conhecia a arte de disciplinar com o olhar. Foi frustrante. Tornei-me negligente, passivo-agressiva, acordar aos sábados tornou-se um desprazer, e eu aparecia com a cara amassada de sono, atrasada, o que deixava furioso. Quem disse que os submissos não sabem se divertir? Um dia o informei que estava deixando meu posto, pois estava prejudicando meus estudos, e ele ficou arrasado e ressentido comigo. Teve que descrever as autópsias e pesar os órgãos sozinho. Ninguém queria ser sua pupila ou pupilo, ainda mais num necrotério em manhãs de sábado.

Outro dado interessante é que o professor Aristides forçava os alunos a comprarem seu livro de medicina legal. Um livro feio, pequeno, de capa mole verde-folha, cujo miolo parecia uma xerox. Uma decepção para uma fetichista como eu. Eu adorava livros, e tinha um bom livro texto de medicina legal em casa, de um legista da Universidade Federal da Paraíba. Não tinha capa dura, mas possuía dimensões apropriadas de livro texto, era bem escrito e explicativo, com referências e fotos. Contudo, o narcísico professor Aristides não aceitava outras fontes, queria apenas que os alunos descrevessem na prova final as exatas e enfadonhas palavras de sua pseudoapostila, e tinha a fama de dar notas baixas para quem não rezasse pela sua cartilha. Assim vinguei-me solenemente do mestre no dia da prova num escuro anfiteatro. Pela única vez na faculdade de medicina eu colei com gosto, apesar de ser uma aluna ética e aplicada. Escondi o livro no meu colo e copiei, descaradamente, trechos idênticos ao do livro. Obtive a nota máxima no teste. Foi delicioso.

Um pouco antes desta época eu também me tornei pupila de um excêntrico neurocirurgião na Santa Casa de Misericórdia, o Dr. Lobo, carinhosamente conhecido pelas enfermeiras do hospital como Dr. Louco. Seu pupilo anterior tinha ido embora fazer residência no Rio de Janeiro, e um aspirante a psiquiatra me apresentou a ele, que estava muito precisado de alguém para assisti-lo. Poucos futuros cirurgiões se aventuravam pela neurocirurgia, preferiam auxiliar hérnias e retiradas de vesículas nas suas horas vagas.

Eu não queria ser cirurgiã, mas gostei do Dr. Lobo, pois coisas diferentes me atraíam. Ele prometeu que me ensinaria um pouco de neurologia, e me emprestou um livro belíssimo de semiologia neurológica, o que me convenceu. Com a minha vocação para o masoquismo, eu lia o tal livro antes de dormir, acordava cedíssimo, ajudava o Dr. Lobo na enfermaria, e tentava pôr em prática na enfermaria de neurocirurgia meus solitários estudos semiológicos, antes de seguir para as aulas na universidade.

O Dr. Lobo era careca, andava sempre de avental, portava óculos de aros de tartaruga, e tinha um fusquinha azul turquesa, que ele dirigia a toda, freando bruscamente no estacionamento do hospital. Quando descia do automóvel ele assoviava e movimentava em círculos um longo cordão de metal cheio de chaves, caminhando firmemente com a postura muito ereta e uma barriga um pouco protusa. Seu assobio era inconfundível. Ele tinha estilo, parecia um cientista louco, e eu adorava ser a sua única assistente.

Eu subia num banquinho no centro cirúrgico, toda paramentada, enquanto observava e auxiliava suas trepanações. Lembro de segurar solene uma cuba metálica onde ele depositava pedaços de tumor cerebral. Ele era metódico e eu era atenciosamente precisa. Uma combinação preciosa. O único momento infeliz que tive foi a minha primeira experiência com a morte de um paciente, um sertanejo amável que tinha um tumor e uma hidrocefalia gigantes e não resistiu. Nunca esquecerei sua ataxia, seu olhar, sua bondade, sua filha trazendo frutas na visita. Chorei tanto em casa quando ele faleceu que parecia que tinha morrido um membro da minha família.

Após uns meses no posto, comecei a chamar atenção dos meus colegas-auxiliares-de-hérnias. Eles vinham espionar pela janela no centro cirúrgico quem era essa pupila do Dr. Lobo. Ficaram enciumados e assim passaram a me chamar de lobinha. Meu mestre dava muita risada destas coisas, com o seu sarcasmo peculiar, e as enfermeiras também. Elas gostavam muito dele, e eu desconfio que ele era um pouco feminista. Dr. Lobo me ensinou de verdade a fazer o exame neurológico, e outros pequenos truques. Quando cursei a disciplina eu já estava meio sabida, e me arriscava a fazer algumas perguntas, estava bem menos insegura do que o meu chatérrimo debut na faculdade.

Fiquei fascinada com os neurologistas. Eles eram estranhíssimos. Havia um homem de queixo longo e ar de lorde, que parecia ter sido pupilo do Dr. James Parkinson na Inglaterra. Às vezes eu não entendia o que ele falava, e tinha a impressão que conversava consigo mesmo. Ele tinha um sobrenome italiano, gostava de filmes antigos, e sofria de enxaquecas.

Havia outro bem baixinho que andava com calças verde-oliva, um avental de pipoqueiro e uma mala 007. Ele mandava amostras séricas para pesquisa de doenças raras num obscuro laboratório alemão, e era explicitamente bígamo. Diziam que levava as duas mulheres para a missa, uma alemã alta da Bavária e uma cearense descendente de uma tribo indígena. Quem disse que os nordestinos são necessariamente conservadores? Havia também outros tipos curiosos, que sempre tinham aquele ar obsessivo, e antiquado, característico dos neurologistas.

Às sextas-feiras eu frequentava as reuniões da neurologia no hospital. Eles discutiam com ar esnobe doenças raríssimas que decoravam em letras miúdas nos vários volumes da Encyclopédie médico-chirurgicale, devidamente encadernados em couro e letras douradas, que comprei mais tarde em doze penosas prestações quando era residente. Eu ficava boquiaberta de admiração. Às vezes alguém tinha um espasmo (seria de prazer?) e um deles apontava, sarcástico 'uma mioclonia', ao que se seguiam risadas contidas. Nada passava despercebido. Depois iam até a cantina da faculdade onde se sentavam calados em volta de uma mesa de fórmica, e sacrificavam uma cajuína e tapiocas. Depois se trancavam nos seus laboratórios.

Nessas alturas eu havia começado o internato e desistido da patologia, para desapontamento do Dr. Gastão. Eu gostava do contato com os pacientes, e tinha receio de passar a vida toda dentro de um laboratório. Fiquei seduzida pela neurologia e por aqueles curiosos instrumentos que os neurologistas usavam, martelos, diapasões, agulhas para testar sensações e pela roda de Wartenberg (hoje muito popular em lojas de fetiche na Europa), pelos belíssimos atlas de neuroanatomia, e todos aqueles lindos apetrechos medievais usados nos exames de eletroencefalografia e eletroneuromiografia.

Segui para a metrópole em busca de uma formação mais sólida, São Paulo naturalmente, onde se concentram os recursos. Foi uma dura jornada onde aprendi e sofri muito (não de forma prazerosa exatamente), e fui pupila de tipos distintos, mais antipáticos e mais exploradores. Coisas da selva de pedra. Conheci alguns neurologistas eruditos e éticos, mas em geral a maioria deles estava mais obcecada em escrever artigos, em receber convites para renomados congressos e coisas do gênero. Fora disto, gabavam-se de gostar de música clássica e de ler Oliver Sacks.

Acho uma pena que a vida do incomum neurologista judeu inglês Sir Oliver Sacks, muito mais interessante que os seus relatos de pacientes, só tenha vindo à tona tardiamente. Um homossexual outsider que viajou para Amsterdã para ter sua primeira relação sexual nos anos 50, o que era ilegal na Inglaterra da época. Sacks foi rejeitado pela mãe patologista por ser gay, era biker e fisiculturista, foi embora trabalhar na América, tornou-se médico dos Hell's Angels, tomou LSD com os poetas beatniks da Califórnia, e teve outras aventuras curiosíssimas. Eu me pergunto que fazia ele entre neurologistas? Desconfio que a neurologia para ele era uma espécie de disfarce, assim como eu me disfarçava com meus sapatos bicolores, terninhos escuros, saias justas e óculos pretos de acrílico estilo mods. Eu gastava meu magro salário na loja Baratos Afins, na galeria do rock, em livros de poesia, e às vezes dava uns giros pelo underground paulistano, discretamente.

Um dia eu cansei. Era muito duro ser neurologista em São Paulo. Eu gostava dos pacientes, mas minha personalidade não tinha perfil para lidar com todas aquelas enfermidades em meio a uma labuta tão competitiva. Trabalhei duramente, levei calotes, e nunca tive vocação para lotar consultórios. Talvez eu tivesse síndrome de Asperger e não conseguisse me adaptar. Na verdade, tudo era muito diferente daquele glamour que evocava L'Hôpital de Salpetrière de outrora na minha imaginação, e devanear não ajudava. Sem contar que neurologistas geralmente não confiam uns nos outros, sua metódica semiologia é e sempre será melhor que a sua, e descobri que é assim no mundo todo, depois de ter uma úlcera sangrando de autoacusação. Uma vez ouvi um comentário alentador de uma rara ovelha negra da tribo, um neurologista inglês que tocava guitarra numa banda: 'we are all anal retentive, even more laid back types like me'.

E assim fui embora, abandonei a especialidade, descolori os cabelos, passei a usar roupas de brechó, fragmentei-me em estranhas ocupações e plantões em hospitais psiquiátricos, e tornei-me escritora de ficção científica. Uma vez me convidaram para palestrar sobre meus escritos num congresso na Bavária. Tive uma recaída e comprei um tailleur cinza quadriculado e calcei meus sapatos bicolores. Apresentaram-me a um jovem médico austríaco. Ele um usava terno exatamente do mesmo tecido que o meu, só que com um colete por dentro. Cumprimentamo-nos, como neurônios-espelhos numa valsa vienense. Nunca se deixa de ser exatamente quem se é. Ainda pretendo, secretamente, decorar minha sala um dia com estranhos objetos dentro de frascos de vidro com formol, preciosidades, instrumentos médicos, e peças de frenologia em porcelana.

 

 

setembro, 2019

 

 

Virna Teixeira nasceu em Fortaleza. É poeta, tradutora, tem vários livros de poesia e tradução publicados, e prepara seu primeiro livro de contos. Graduou-se em medicina, é neurologista de formação, e hoje vive em Londres, onde trabalha em hospitais psiquiátricos do NHS. Seu último livro de poemas, Suite 136, é baseado nesta experiência profissional. Virna dirige uma editora independente, Carnaval Press, e é editora da revista online Theodora.

 

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