O cinema é uma tecnologia análoga à fotografia, pois requer conhecimentos técnicos sobre luz e sombra, movimento, tempo e espaço. No poema "Kodak", Herberto Helder aproxima a imagem poética à fotografia: "E vejo/ a fotografia, espuma desabrochada/ eriçadamente/ no ar moldado. A luz/ é inteligente. Estou à beira de uma graça/ furiosa". Os versos de Helder remetem-me, muitas vezes, ao cinema de Tarkovski, para mim, o "Senhor das Imagens". Sobre a relação entre cinema e poesia, de forma geral, Clarissa Nanchery afirma, em artigo, que apesar de a expressão "cinema de poesia" ter adquirido força a partir de uma conferência feita por Pasolini, em 1966, no "Festival de Pesaro", a associação entre as duas linguagens já havia sido feita antes, por Luis Buñuel. Na verdade, não só Herberto Helder, como diversos poetas e teóricos de poesia refletem a ligação entre a imagem poética e o cinema, de modo que discorrer sobre o tema resultaria em um ensaio à parte a esta introdução. O que cabe aqui: dizer que para os surrealistas franceses da primeira geração (a de Breton), na poesia, as imagens refletem os sonhos oníricos. E o que são os cineastas e profissionais da sétima arte senão poetas com máquinas de filmar nos ombros, senão poetas com uma "máquina de emaranhar paisagens"? Nesta entrevista, falo com o Francesco Civita, produtor de filmes e poeta. [Priscila Merizzio]
Priscila Merizzio – Cesco, vamos começar pela poesia: na seleção de poemas que você me enviou, alguns deles aproximam-se de um ritmo de letra de música, com jogos de palavras, rimas. Você escreve, também, letras de músicas? Se sim, qual sua relação com a música e a composição de letras?
Francesco Civita - Não escrevo letras de música. A música, porém, é uma das mais importantes fontes de inspiração e de emoção. Encontra na alma ressonância pessoalíssima. Ampara, cutuca e exponencializa a poesia.
PM - Quais são suas referências poéticas?
FC - Começaram justamente com a música. Escutando Vinicius, Caetano, Chico e Raul. A primeira vez que ouvi Vinicius recitando seus poemas, fui tomado. A poesia Romântica Inglesa me pegou de jeito aos 19 anos: Wordsworth (nome apropriado), Coleridge, Byron, Shelley, Keats. Amo John Clare, um poeta menos conhecido. Tive grande influencia de Cesar Vallejo, Miguel Hernández, Carlos Drummond, Robert Bly, Rumi, Kabir, Edna St. Vincent Millay, e.e. cummings e Gullar. Henry Miller, Anais Nin, Paul Auster, Rubem Braga, pois há tanta poesia em prosa. Amo T.S. Eliot. Ah, claro, Leminski, Manuel de Barros, Pessoa e o inigualável Leonard Cohen.
PM - Há quanto tempo você escreve?
FC - Aos 17 anos virou existencial.
PM - Pretende publicar um livro de poesia?
FC - Publiquei um em 2009 (sem título) que é um livro arte com colagens (cut up de jornal) e aquarela. Adoro compor poemas usando palavras e frases de jornal. Estranho que o único livro que publiquei, formou-se com palavras alheias. Quem sabe, publico outro. Tenho escrito menos. A arte me ocupa, atualmente, de outra maneira. No meu oficio. Pintando e desenhando um pouco. Mas, a poesia tá sempre lá.
PM - Ainda sobre a seleção de poemas: é notável a presença de elementos cotidianos, como dos fios de cabelo liso no ralo do chuveiro e, também, discretas elegias à memória da mãe, em que o eu lírico coloca-se, ora criança sendo ninada, ora adulto recordando-se do passado. Também se nota que eu lírico reflete sobre a paternidade e, invariavelmente, a figura dos filhos. Os poemas que você escreve são confessionais (como os de Sylvia Plath, por exemplo) ou há elementos ficcionais na construção do texto?
FC - Sempre tem a tentativa de explorar o outro. A ficção é sempre confessional de alguma forma. Tenho dificuldade de afastar o "eu" da poesia.
PM - O que você pretende expressar na poesia?
FC - Pergunta difícil. Mal tenho leitores, portanto a poesia é para mim um processo terapêutico. É mais sobre o escrever em si.
PM - Sua visão de mundo, apresentada no livro através do eu-lírico, o aproxima de um existencialismo sem esperança ou você crê que o mar e o céu azul ainda podem inebriar as almas errantes?
FC - Adoro acreditar nisso. Creio que, especialmente no mundo atual, o "existencialismo sem esperança" permeia as pessoas. Falamos que os jovens andam sem expectativas. Acho que a própria desesperança dos mais velhos é que está ali refletida. Eye of the beholder. Uma coisa narcisista do mundo moderno. O tempo passa, mas o cinismo humano é essencialmente o mesmo. Vejo a atualidade num poema do Wordworth de 1802:
"The world is too much with us; late and soon,
Getting and spending, we lay waste our powers;—
Little we see in Nature that is ours"
PM - Baseando-se em suas colagens e pinturas, percebe-se de forma pungente a presença da narrativa das mídias contemporâneas (alusões às fake news), bem como o ambiente urbano (prédios, cidades). Quais impressões você quis suscitar nessas composições?
FC - A mesma essência do cut up que mencionei. Gosto de distorcer as palavras do News para perceber a nossa incapacidade de enxergar o ridículo no nosso comportamento como sociedade. Se paro para pensar, me encontro ridículo também. Gosto desse humor, do aspecto lúdico e poético da ironia. Misturo isso com o desenho primitivo, recortes, carimbos, adesivos, etc. Normalmente, gosto mais do processo do que do resultado. Mas se embeleza a parede de alguém, fico feliz.
PM - Você tem formação artística ou pratica a arte de forma intuitiva?
FC - Pinto desde os 18 anos sem consistência alguma. É mais intuição que formação. Todas as pessoas têm capacidade artística. Quanto mais se pratica, mais chances de ser preciso na aproximação entre desejo e realidade.
PM - Na série Coisa Mais Linda, a relação da protagonista com o músico Chico foi uma feliz coincidência, ou você teve oportunidade de sugerir detalhes no roteiro?
FC - Todo produtor deve interagir com a narrativa. Afinal, o propósito é contar uma história. Filmar é uma arte coletiva. Se todos da equipe estiverem pensando no roteiro, em algum momento, o ganho é imenso. Tenho orgulho das diversas faces de Coisa Mais Linda. A contribuição de cada um que trabalhou na série está ali eternizada.
PM - Independentemente de gênero, de posição social, com qual personagem da série você mais se identifica?
FC - A Lígia (Fernanda Vasconcellos) é a personagem que mais me emociona.
PM - Para além da produção executiva, você acompanhou as filmagens, a elaboração de cenas, a direção artística?
FC – Foi um processo longo: três anos entre o primeiro rabisco sobre a série e a entrega dela para a Netflix. São vários aspectos até chegar ao produto final. Quanto mais próximo você fica dessa construção, mais recompensador é. O segredo está na contratação da equipe. Ter pessoas em quem você confia e, ainda mais, admira, é essencial. Dessa forma, um produtor mais acompanha do que corrige (risos).
PM - Quais são suas expectativas para a segunda temporada?
FC - O desejo de que o público goste tanto quanto gostou da primeira, e que haja uma terceira.
PM - Quando se trata da produção de séries, é importante avaliar o retorno positivo e negativo, de modo a considerá-los na criação dos episódios?
FC - Claro. A segunda temporada tem outros desafios. O universo da série (direção de arte, figurino, personalidade dos personagens, fotografia, etc.) já está produzido e, portanto, facilita essa parte do processo criativo. O desafio passa a ser como surpreender o público com outros elementos: a evolução do tempo, dos conflitos, os ajustes e o novo frescor da estética já instituída.
PM - Você tem grandes responsabilidades empresariais, comerciais e, por outro lado, tem, também, a faceta sensível do artista, do poeta inquieto, que questiona os motivos de existirmos no mundo: como consegue equilibrar essas duas personas?
FC - Mal consigo (risos). Sonho (falsamente) com a quimera de ser um artista eremita. Inebriado no romantismo e natureza. A verdade é que sinto muito prazer em conciliar o trabalho com a arte. Nem sempre é possível, mas sendo produtor e empresário, tenho essa oportunidade. Para perpetuar a arte, é essencial que ela se repita, que haja continuidade. Ai entra a necessidade de ter uma boa gestão. Isso me motiva conciliar as duas personas.
PM - Por fim, há algo mais que gostaria de considerar, a respeito da sua relação com a arte ou até mesmo da série? Sinta-se à vontade para escrever o que julgar necessário.
FC - Gostaria apenas de agradecer à Germina por ser tão única. E deixar esse verso do Leonard Cohen:
"Ring the bells that still can ring
Forget your perfect offering
There is a crack in everything
That's how the light gets in"
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setembro, 2019
Francesco Civita é sócio e produtor da Prodigo Films, conhecida por produzir Coisa mais linda, série de ficção desenvolvida para Netflix, com a primeira temporada exibida em março de 2019 — o sucesso foi tanto que a plataforma de streaming renovou contrato para a produção da segunda temporada da série, com previsão de estreia para 2020. A Prodigo Films também produziu (fdp), série premiada com o APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) da HBO e os longas-metragens O roubo da taça, vencedor em 2016 do Prêmio de Melhor Filme e Público e vencedor no SXSW — South by Southwest, evento que abarca múltiplos festivais de cinema, música e tecnologia, em Austin, no Texas, Estados Unidos — e Matraga, vencedor de cinco prêmios no Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro. "Cesco" é poeta e pai de três.
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Priscila Merizzio é curitibana. Publicou Minimoabismo (Patuá, 2014, semifinalista do Prêmio Oceanos 2015) e Ardiduras (7Letras, 2016). Mestre em Estudos de Linguagens pela UTFPR, com o tema de pesquisa Matizes surrealistas no poema "O Amor em Visita", de Herberto Helder (2019), é sócia-fundadora do projeto literário Pulmões Versos. Seu próximo livro de poesia, O amor embebedou as feras, será publicado pela editora Kotter.
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