©sail

 

 

 

 
 

 

 

 

(I)

 

 

Quisera eu não dormir aos prantos

desejos

 

ser consertada quando me pisassem

como uma boneca quebrada

 

Quisera eu não acordar com sangue

vestígios

 

tormentos sujos que não admito

como uma rosa dissimulada

 

 

 

 

 

 

Contenção

(II)

 

 

Sobre as meias ¾ sob a saia

de uma colegial japonesa

que volta à noite para casa

 

(um sonho de estrelas múltiplas

o grito em um beco alucinado

 

um delírio de dedos e tentáculos

o sopro esfumaçado de dez armas

 

um pesadelo de espasmos em fileira

o choro de uma virgem aos pedaços)

 

Há um altar que venera pés descalços

no genkan larga a bolsa deixa rastro

ao chegar sem pernas sem a alma

 

 

 

 

 

 

Expiação

(III)

 

 

Cresci ouvindo mamãe dizer

que "nosso corpo é nosso templo"

que mulher tem que se dar respeito

só com amor só depois do casamento

 

Eu só lembro que me ensimesmava

ouvindo meu Dimmu Borgir no talo

coberta de negro feito uma freira

de igreja gótica depredada na Noruega

 

Bem calada no calor da madrugada

evocava nua a dança a marretadas

do blasting beats do rouco gutural

e profanava meu templo puro, devagar

 

 

 

 

 

 

寂しい

sabishii

(sozinha)

 

 

sozinha busco aquele que está só

sobre meus frágeis dedos

pendendo como acento

de uma agudeza infinita

termine comigo

termine onde começo

pois desse contato

algo de fêmea algo de efêmero

brota ressoante urgente

e sobretudo violento

quero sentir na alma no âmago

sua solidão a me ferir dura e simplesmente

 

 

 

 

 

 

懐かしい

natsukashii

(nostálgica)

 

 

entre:

me dê

um fim

encontre

em mim

o seu início

me complete!

me faça inteira!

a você, já terminado

darei um novo recomeço

e retornará à origem do útero

dessa vez, não como prisioneiro

mas como homem livre e liberto!

em troca nutrirá meu corpo com seu fluido

igual à epoca em que fui nutrida com leite materno

 

 

 

 

 

 

Pérolas

 

 

Doca tinha catorze anos e trabalhava no pequeno hotel de uma rua próxima do porto. Como ainda era jovem e o ponto bem localizado, tinha muitos clientes. Atendia pescadores, viajantes, marinheiros. Nunca aqueles sujos de areia, descalços ou sem camisa. O dono do hotel, homem rude e orgulhoso, mandava embora todos que não podiam pagar o preço: dois terços para ele, um terço para a menina.

Enquanto se ajoelhava e abaixava o rosto, Doca tinha medo que batessem nela. Aconteceu só uma vez, mas ela não conseguiu esquecer. Trabalhava seis dias por semana com a sensação de que aconteceria novamente, a qualquer momento. Por isso, era rápida e silenciosa. A língua sentia um sabor salgado de água do mar e a mão tocava os pelos emaranhados como linhas de pesca. E, além dos suspiros, ouvia histórias. Muitas histórias.

Seu pai era um daqueles homens louros que saíam de um navio, faziam negócios na cidade e nunca mais voltavam. Sua mãe, humilde lavadeira, passou a viver com um estivador cheio de vícios. Doca cresceu vendo e ouvindo o padrasto fazer o que queria da mãe. Quando encontrou a calcinha manchada de sangue, fugiu para não sofrer como ela. Para não ser como ela. Correu na direção do mar, até o fim do mundo, acreditando que as ondas pudessem levá-la para longe. Essa era sua história. Um dia, desejava contá-la para um cliente especial, aquele de que mais gostasse.

Ele apareceu feito um farol na vida de Doca. Um jovem marinheiro cujo navio trazia mantimentos com frequência para a cidade. Na primeira vez — ela soube pelos risos do dono do hotel —, chegou tímido, quase constrangido, e perguntou se a menina bronzeada, com os cabelos cor de areia, trabalhava ali. Certamente vira Doca no seu dia de folga, catando conchinhas na praia.

"Adivinhou que ela era daqui por causa das roupas?", perguntou o homenzarrão, malicioso.

"Não", respondeu o marinheiro. "Por causa dos olhos".

E agora Doca estava diante daqueles olhos azuis agitados como o mar durante uma tempestade, arrastando-a para dentro deles. Lá, ela se acalmou e esqueceu a lembrança doída do tapa no rosto. Ele não tinha a pressa dos viajantes nem o cheiro dos pescadores. Entrou no quartinho exíguo onde Doca atendia os clientes e dormia com um lençol puído sem tocar em nada. Quis que ela se deitasse, preferiu ficar em pé. Um pouco antes da espuma sair, se virou para o outro lado da cama. Depois sorriu, explicando que não queria obrigá-la a lavar os cabelos.

Naquela noite, Doca voltou a sonhar, e continuou sonhando até a volta do marinheiro. O pai morrera afogado. Ele trabalhava para mandar dinheiro para a mãe e as irmãs, moradoras de uma cidade muito além do mar. Um rapaz solitário e gentil de dezessete anos. Seu cliente mais novo, seu primeiro amor. Sabia a história dele. Só faltava contar a sua.

O dono do hotel não gostava que os clientes tivessem preferência por uma das meninas. Quando o marinheiro voltou pela terceira vez, mandou subir com outra ou ir embora. Ele foi embora. Doca ficou preocupada. Sabia, cada dia mais intensamente, que não era mais criança. Em breve faria quinze anos e seria vendida ao homem que pagasse mais para destruir o resto de sua infância. Aproveitou o hotel fechado no dia seguinte e foi à praia.

A brisa soprava nela promessas impregnadas de maresia. Os pés muito pequenos afundavam na areia molhada e as ondas cobriam seus tornozelos. O choro das gaivotas enchia de tristeza aquela tarde nublada. Segurando as sapatilhas baratas de plástico, Doca se sentou em uma pedra e esperou.

Não precisou erguer os olhos ao ouvir os passos sobre a areia. O rapaz parou diante dela com a surpresa de encontrar uma sereia trazida pelo mar. Os cabelos soltos e o vestido agitado pela brisa feito um rabo de peixe. Ela se levantou. Deixou cair as sapatilhas, os lábios finos entreabertos. Em vez de cantar, beijou o marinheiro.

Não havia muitas pessoas na praia. Tiveram apenas que procurar uma pedra grande o bastante para escondê-los. Doca disse que queria calma. Era sua primeira vez. O marinheiro seria calmo. Era a primeira vez dele também. Mas isso ele não disse. Apenas fez. Com os lábios, língua e dedos, sorveu Doca como uma gota de água doce em um oceano de sal. Gemeu fundo dentro dela, abrindo sua concha com delicadeza, e colhendo o que ela lhe ofertava com reverência e gratidão. O céu ficou turvo. A espuma branca se misturou com o sangue vermelho sobre a areia. De repente, pressentiu Doca, não tinha mais volta.

Combinaram de fugir na próxima semana. O dono do hotel iria ao centro, resolver um assunto urgente. Normalmente, só deixava as meninas saírem de folga com uma quantidade ínfima de dinheiro. Doca entraria pela janela dos fundos para pegar suas economias e os poucos pertences. O marinheiro ainda tinha uma última entrega. Depois iriam embora, para a cidade onde morava a família dele. Doca ganharia uma nova mãe, irmãs. Um lar.

A semana se arrastou com um marasmo de ressaca. No dia combinado, o hotel fechado, Doca entrou escondida e pegou suas coisas. Ao invés de ir à praia, seguiu para o cais. Diante de uma loja de artigos para pesca, acompanhou o movimento sempre igual dos estivadores em seus navios. Ignorou os olhares de desejo que devassavam seu corpo coberto pelo vestido e esperou. Quando o marinheiro chegasse, finalmente contaria a sua história.

As horas se alongaram e, junto com a maré, o movimento foi baixando. As gaivotas chorariam mais naquela noite, que prometia ser dura e fria. Doca continuou esperando até a brisa soprar areia no rosto dela. Seus olhos derramaram lágrimas salgadas, grandes como pérolas.

 

 

 

 

 

 

A farda preta

 

 

Não adiantava lutar. Fui vencido, arrasado, humilhado. Dos socos no rosto ficou a cegueira vermelha do sangue. Dos chutes no estômago, o gosto azedo do vômito. Não resisti quando o carcereiro me atirou seminu na cela. Ouvir o barulho das grades sobre mim foi a certeza de que eu estava acabado. Durante dois dias delirei em agonia.

Meu único alento eram a luz doentia da lua entrando pelas rachaduras e o ruído dos ratos a me espreitarem. Rastejava para beber água suja e urinar num buraco no canto da cela. Só no terceiro dia recebi a visita de um médico.

Vergonhosamente prostrado enquanto ele cuidava das feridas, reparei na figura imponente daquele que me subjugara. Eu me considerava robusto. Mas o carcereiro tinha a estatura de uma montanha e a solidez de uma rocha. Seu olhar era cinzento e indômito, sempre voltado para frente. Vestia farda e botas pretas, destoantes dos andrajos encardidos que mal me cobriam e do jaleco intocável do médico.

De repente, pensei ter ouvido um ruído, percebido uma outra presença. Então notei a cela ao meu lado esquerdo. Havia outro prisioneiro, um homem de pequeno porte, enrolado até a cabeça num cobertor barato. Tremia de medo. O carcereiro estava voltado para ele.

Apesar da fome e do frio, dormi várias horas naquela noite. Pela manhã, a solidão me fez atirar algumas palavras para o meu infeliz companheiro. Do corpo enfraquecido pelo jejum, formando uma minúscula elevação, só ouvi murmúrios incompreensíveis. Talvez falasse outra língua. Homens de diversas organizações eram capturados. Eu não sabia o que faziam com as mulheres.

Nem desconfiava que, no início daquela madrugada, ficaria sabendo. Depois de receber um cobertor de fibra e uma sopa rala que engoli com avidez, estava prestes a adormecer quando ouvi as botas pesadas esmagando os degraus da escada de pedra. Uma tocha foi colocada no suporte de madeira na parede. O cadeado foi destrancado, as grades da outra cela abertas com estrondo. O carceireiro puxou o cobertor e agarrou o prisioneiro pelo pescoço. No escuro, os cabelos fartos como uma cortina aberta esvoaçaram sobre os ombros. Estarrecido, vi as lágrimas cortarem a face da mulher de olhar assustado por trás das grades.

Não adiantava lutar. O carcereiro a colocou de joelhos. Empurrei o cobertor e me levantei. Ele forçou aquele rosto triste para baixo com uma das mãos. Com a outra, segurou os braços finos. Atirei o peso do corpo contra as grades. Gritei com toda a força dos pulmões, mas o carcereiro simplesmente abaixou a blusa puída que cobria aquele corpo moreno. Debaixo dos meus gritos e diante dos meus olhos, ele a estuprou.

Depois do fim, a mulher ainda tremia. Jazia em posição fetal, virada para a parede de pedra. Parecia ainda mais envergonhada pela minha presença. Eu estava exausto de tanto esmurrar o metal e devastado pela cena que presenciara. Inútil como uma ferramenta quebrada.

Mas não me preparara para o pior. Na madrugada seguinte o carcereiro voltou.

Fiz tanto barulho que, ao invés de abrir a cela da frente, ele abriu a minha. Meu ódio era uma fera imensa, revolta e informe. Porém, contendo meus golpes com grande precisão, o carcereiro ergueu uma barreira que neutralizou a minha fúria. Mais uma vez fui espancado. Ele limpou a sola das botas na minha cara, me fez lamber o piso imundo e engolir a mistura de bile com sangue que eu cuspira. Finalmente, me arrastando para perto das grades, trancou a cela, passou para a outra e executou aquilo que tentei de todas as formas impedir. O choro baixinho da mulher aumentava a minha dor. Eu mordia os lábios e arranhava a pele em silenciosa aniquilação. Inútil outra vez.

Na manhã seguinte, o médico voltou. Além de água, recebi pão e sopa no almoço. À noite, pelas rachaduras, a lua brilhava mórbida, um prenúncio do horror das primeiras horas do dia. Tudo se repetiu. Nessa e em outras madrugadas.

E a tortura começou.

De um lado, eu, o homem fraco que apanhava e era humilhado até cair. Do outro, ela, a mulher cada dia menor, sistematicamente violada. Entre nós, vítima e cúmplice, a sombra soberba do carcereiro, demoníaca em sua farda preta, povoava nossos pesadelos e assombrava a realidade de nossas vidas.

De derrota em derrota, eu aprendia com os golpes. Com o vômito engasgado na garganta a cada soco no estômago. Com o sangue represado no olho a cada chute no rosto. Levei choques, tive costelas quebradas, provei a urina daquele estuprador nojento. Nem sempre eu estava consciente enquanto o carcereiro violava a pequena criatura que morria diante de mim. Eu a via ser desnudada, dobrada e partida ao meio sob o corpo do canalha, duas vezes maior que o dela; fêmea encurralada para o abate no matadouro.

Depois do fim, ela nunca se virava na minha direção. Tremia para a parede. Mesmo de dia, evitava qualquer contato comigo. Seus únicos amigos eram os ratos da prisão. Murmurava para eles palavras de afeto. Dividia migalhas do seu pão. Parecia encontrar alguma paz na canção noturna do vento e na luz matinal a banhar seu corpo ferido; eu apenas assistia a tudo, macho impotente e sem orgulho.

Até que a tortura terminou.

Na primeira madrugada sem o carcereiro, senti um alívio profundo. Na segunda, dormi mal. Na terceira, não consegui dormir. Minha tranquilidade era uma massa confusa de emoções. Na quarta madrugada gritei e esmurrei as grades e na quinta exigi saber o que havia acontecido. Estava quase enlouquecendo. A consciência entre o asco e a ânsia.

Na madrugada seguinte, acordei com as botas pesadas esmagando os degraus da escada de pedra. Uma tocha foi colocada no suporte de madeira na parede. Fingi que estava dormindo. Mal pude me conter quando o cadeado foi destrancado. O estrondo das grades sendo abertas fez meus ouvidos tinirem de excitação.

Ao meu redor, as sombras saltavam, minúsculos demônios de suor sobre os poros da minha pele, entre os dedos da minha mão. A tocha não ardiam mais que o sangue em minhas veias. O choro baixinho da mulher aumentava o meu desejo. Empurrei o cobertor e vislumbrei a cena de frente. De pé, o carcereiro a erguia contra as grades, aberta como uma borboleta, e se movia, entranhado nela. Fechei os olhos. E vi a mim mesmo. Um colecionador em uma sala ricamente mobiliada. Nesse ambiente suntuoso, cercado de belos quadros, eu fincava a agulha nela, meu inseto frágil. À custa de sua dor, atingi o êxtase. E o abismo da descoberta se fechou ao meu redor.

Na absurda manhã que se seguiu, o médico destrancou o cadeado e abriu as grades. Fui conduzido escadas acima, onde havia uma mesa servida com carne, frutas e vinho. Houve uma movimentação no andar inferior. Um prisioneiro parecia estar sendo jogado na cela, a mesma que eu ocupara há tão pouco tempo. Eu cruzava os talheres quando o médico reapareceu.

Ele me conduziu até uma tina de água morna, me deu uma toalha e se retirou rapidamente. Começei a me despir. Então notei a cadeira ao meu lado direito. Sobre ela, uma farda preta e um par de botas estavam prontos para ser vestidos.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Alice Queiroz nasceu e vive em São Paulo. Foi alfabetizada em casa pela mãe e cresceu entre gatos e livros. Com 13 anos, perdeu o pai para a leucemia. E começou a esboçar suas primeiras ideias. É bacharela em Letras pela USP e trabalhou em duas livrarias: Martins Fontes e livraria da UNESP. Enquanto não publica seu primeiro livro, escreve poesia e prosa poética aqui: tudoseinadatenho.com.