Cinema
"a arte do encontro do real"
André Bazin
"As geografias solenes dos limites
humanos..." Paul Éluard
" ... estamos onde não estamos"
(Pierre-Jean Jouve, Lirique)
A cinematografia de Augusto Sevá sempre nos brinda com ótimas surpresas. Seu novo filme, já internacionalmente premiado, Tais & Taiane (2019) nasce das próprias experiências e vivências, pelas estradas do Brasil, pelas estradas do mundo, do tempo, do entusiasmo e da crença na realização da arte.
Numa estética impecável, Sevá desenha um acaso e todas as suas consequências, que vão se encadeando, numa narrativa realista bem amarrada, bem construída, que desconcerta o espectador, com a densidade dos conflitos, mas também o encanta pela capacidade de transmutação que resulta do gesto de retratar aspectos sociais, psicológicos, mazelas contemporâneas, vícios, divisões artificiais e preconceitos da sociedade contemporânea.
Sem abandonar a linguagem técnica refinada, precisa, Sevá também encanta o espectador com sua perfeita e equilibrada alternância de planos. O uso do plano aberto confere grande poeticidade à narrativa. Merecem destaque os belíssimos planos abertos do início do filme, que já fisgam o espectador, inserindo-o no amplo território físico e imagético da história, trazendo a noção da vastidão de espaço e do imenso vazio nele inserido. Muito da leitura de A Poética do Espaço, de Gaston Bachelard, parece ecoar no exame dessa poética sensível de Tais & Taiane. Lembramos, com ele: "Tais e Taiane são representantes de uma díade bastante comum no Brasil de hoje. Diferenças e semelhanças se alternam a todo o tempo no inusitado e involuntário encontro e na convivência que necessitam ter — para a própria sobrevivência. Confrontam-se, estranham-se até que algo nelas se alarga. Diante de ameaças externas, conscientizam-se das semelhanças que as unem. Cresce uma admiração, logo convertida em amizade".
O filme vem conquistando merecidos prêmios em festivais internacionais de cinema, o que comprova a alta qualidade dos filmes brasileiros contemporâneos e confirma a habilidade e o engenho de Augusto Sevá, um realizador importante, que também assina o roteiro premiado — 10th Dada Saheb Phalke Film Festival 20 Best Screenplay para Augusto Sevá — desse interessante road movie brasileiro.
Entre os conhecidos méritos de Sevá, está uma rara conjunção de sensibilidade e competência técnica e artística. A profundidade de seu olhar sobre o Brasil, o Brasil do interior, das cidades, das estradas, das praias, dos sertões. Outra de suas características é a presença de jovens e adolescentes como protagonistas ou, ao menos, como personagens de destaque. Algo de estelar sempre aflora nos olhos de fogo dos jovens. Seu olhar, ao longo da carreira, também tem destacado os índios, as ilhas, as cachoeiras, os paraísos de águas, a pureza das terras do interior. Já demonstrou inquestionável perspicácia ao penetrar anseios e segredos de jovens do Brasil de dentro, em mergulhos de índole psicológica ou sociológica.
Em Tais & Taiane, Augusto Sevá apresenta duas meninas, duas mulheres a desabrochar na adolescência em meio a sustos, surpresas e desafios inesperados. Vivendo em ambientes socioculturais diferentes, as duas são levadas a uma convivência em razão de um fato de força maior ocorrido na estrada. Uma viagem interrompida. Pequenos imprevistos e fatalidades da vida as conduzem a um período no mesmo ambiente e o primeiro embate decorre do afloramento das diferenças. Taiane, marginalizada pela própria família, tenta resolver as carências com uma dureza que se impõe para sobreviver, em meio a dificuldades superlativas. Tais tem vida familiar organizada e é desafiada a descobrir um outro universo.
Os gestos e movimentos de aproximação são atos de refinamento do próprio "movimento de ser" e o tornam mais preciso. Conduzem a um mergulho que desperta. Sopro de luz na essência.
Diferenças e polarizações que se manifestam na primeira camada visível da conexão: a superfície. As atrizes Gabriela Vergani (Tais) e Yasmin Santos (Taiane) saem-se muito bem na interpretação de suas personagens, enriquecendo o filme com atuações precisas, certeiras. Por seu trabalho, ambas receberam prêmios de "Melhor Atriz" no 7º Indian Film Festival 19.
A excelente música original é de André Corciolli, respeitado pela competência e versatilidade. A ótima direção de fotografia é de André Portiolli. Fernando Andrade é o produtor executivo. E além das duas atrizes protagonistas, o elenco também tem Jairo Mattos e André Bankoff.
Com este novo filme, Tais & Taiane, já várias vezes premiado em festivais internacionais de cinema — o diretor Augusto Sevá nos dá mais uma grande e eloquente prova das singularidades estéticas, do dinamismo e da criatividade de sua cinematografia, sempre relevante para o Brasil. Penetra delicadamente com sua câmara nos vãos e nas frestas das cidades, nas árvores.
Na essência das águas, ouve vozes quase inaudíveis. E visita a vibração da vida na sensível e complexa construção das horas, no ritmo do tempo e na amplitude da luz.
Referências
AMARAL, Beatriz H. Ramos. Estórias de Trancoso: Fios de Luz na Tela do Tempo. Germina — Revista de Literatura & Arte, mar. 2009.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BAZIN, André. O que é Cinema. Rio de Janeiro: Editora Ubu, 2018.
SEVÁ, Augusto. Entrevista para o 10th Dada Saheb Film Festival, Índia, 2020.
julho, 2020
Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama.
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