©cocoparisienne

 

 

 

 
 

 

 

 

betume

 

 

pez mineral

líquido de alta viscosidade

facilmente inflamável

composto por hidrocarbonetos

 

gregos egípcios assírios

conheciam o betume

babilônios e incas também

betumes têm enxofre e metais pesados

 

betume produz verniz

serve à pavimentação das ruas

quando oriundo do petróleo

tudo isso informa a wikipédia

 

para a química que vem depois da queda

no asfalto áspero da experiência amorfa

betume é avesso viscoso incendiário

memória oleosa dor que não se desfaz

 

 

 

 

 

 

maria

 

 

o grito dói bem mais que os hematomas

se ele batesse acabava mais rápido

o grito ecoa do grito nasce outro grito

 

a carne é fraca o sexo é bom ele tão carinhoso

amante generoso dormiam abraçados e não

deixava faltar nada em casa sobrava pão sobrava

berro palavrão porrada porra feijão sobrava cachaça

tempestade em corpo de água ardente

fel também sobrava

 

o grito dói bem mais que os hematomas

se ele batesse acabava mais rápido

o grito ecoa do grito nasce outro grito

 

um dia ela vendeu a enceradeira

companheira desnecessária

quando falta o chão

recebeu o dinheiro fez uma trouxa

pegou um ônibus velho

meteu o filho pequeno dentro

foram embora para longe muito longe

 

o grito dói bem mais que os hematomas

se ele batesse acabava mais rápido

o grito ecoa do grito nasce outro grito

 

ouviu dizer que ele agora grita

com um casaco de lã que não tem corpo

que não tem rosto que não tem voz

mas era dela e dela ele não pode

se separar jamais

 

o grito dói bem mais que os hematomas

a distância da dor é o grito

 

 

 

 

 

 

ismália

 

 

a farda ruge na calçada estreita

a moça está de bolsos vazios e tem fome

é noite de derrama e as botinas cobram seu preço

os cabelos caracóis entre tranças e garoa

recolhem-se na sombra da noite ela urra de medo

arreganha os dentes delicados

mas implacável a pica de pólvora estupra

sua voz suas entranhas os sonhos

que mal acabavam de nascer

 

os cachos mergulham no asfalto

esparramam-se no rio avermelhado

correm de seu corpo em busca da lua

que dança na poça d'água e ilumina o meio-fio

 

a noite ergue torres intransponíveis

tudo é silêncio no largo da batata

 

de olhos abertos

no colo da lua

ismália dorme

 

 

 

 

 

 

vii

[do conjunto "asas plumas macramê"]

 

 

ali na casinha do lixo

situada neste lugar da estrada

de onde se avista toda a baía

não há distinção de classe

raça religião nada

 

ali no chorume são todos iguais:

latas sacos comida estragada

papel plástico absorventes com sangue

papel higiênico com bosta a perna da boneca

espelhos quebrados bola furada a asa do avião de brinquedo

 

os restos são tratados com voracidade e dignidade

pelos ratos pelas baratas

por este urubu-rei no alto do poste

à espera de monturo

 

mas quando a matança começar verificaremos

que também a carne é igual em todos os corpos

apodrecerá depois da sangria da morte

estaremos todos mortos a longo prazo

 

(o que nos diferencia agora

você sabe

é este aceno rubro

pelo qual lutamos)

 

mas o fato é que em breve

na casinha do lixo

nossos ossos

depois de devorada a carne

virarão playground aos vermes

 

 

 

 

 

 

o levante do rei congo

 

 

o pior roubo é o da palavra

escola parca de bancos ausentes

sequestra do menino a voz

mutila do menino a vez

enfia pedras goela abaixo

 

o pior roubo é o da palavra

quebra a ponta tosca do lápis

joga chorume na página em branco

prestações correções juros altos

oferece livros em míseras parcelas

 

o pior roubo é o da palavra

corrói as sílabas que giram

nos aros da bicicleta coloca

ácido nas rimas-manoplas

rouba o ritmo dos pedais

 

"escrever não é pra você moleque

você não vai além do desabafo

contente-se com os arrotos do verbo

diploma bicicleta e poesia são pra quem pode

e você não pode você não pode você não"

sentencia o megafone carcerário do sistema

 

o menino então mastiga

a desigualdade que lhe toma

os dentes e lhe esvazia os cadernos

os pneus da monark cross

 

o menino rumina o silêncio

os sonhos no peito de tambor

que nenhum grilhão amordaça

até vomitar seu brado retumbante

 

mãos batuque liberdade

pandeiro zabumba caxixi

calimba para costurar a vez

berimbau pra resgatar a voz

deixar soar os versos

tomar as ruas as cidades o país

asa delta pra sair do beco

utopia iluminada de luz elétrica

 

rei congo sobe ao palco

do alto contempla o mundo

doa a quem doer

 

 

 

 

 

 

rodas

 

 

há uma carroça

cheia de papelão molhado

impedindo o tráfego da

augusta sentido bairro centro

 

ensopada da urina

que vem do céu a pequenina carroça

estanca as lágrimas da cidade inteira

seu corpo arqueja e é indiferente

ao mal-estar que arrota sobre a rua movimentada

 

súbito o carroceiro desce de seu posto

ajeita a carga com paciência e afaga

o pequeno jegue que puxa a carrocinha velha

sorri um sorriso sem dentes e cheio de nãos

depois volta a seu lugar no banquinho estreito

e lentamente leva o asfalto consigo

 

 

 

 

 

 

fado

 

 

o vagão está lotado mas

o rapaz segura as palavras

entre os dedos com habilidade

talvez as tenha regatado numa banca

à beira do tejo

 

encontradas as palavras

terão olhos mãos e

por que não?

terão lar conflitos familiares

suor de fim de dia

e escaparão

a essa amargura

insuportável

 

quanto a mim perdi

há tanto tempo

as palavras que importam

talvez em outra vida

talvez no fundo do rio lá fora

ou de qualquer outro

que nunca se repete

 

quanto a mim perdi as

palavras que importam

agora mesmo

ante o pôr do sol

quando o que arde por dentro

torna irrelevante o aquecimento global

 

perdi cada sílaba

nos rostos multicoloridos

nas páginas dos dicionários

nas vozes das fadistas que flutuam

sob a luz de lisboa

 

 

 

 

 

 

heresia

 

 

do alto do corcovado

o insuportável do belo

se desenha diante de mim

diante de tamanha hipocrisia

eu desisto de escrever um poema

 

o insuportável do belo

assassina minhas palavras

abre vias estraçalha veias

uma larva-seiva de linguagem

agoniza mergulhada na neblina

 

neblina verde-farta que

estancaria a fome

da baía da guanabara

da página ausente

 

 

 

 

 

 

jardin de luxemburg

 

 

estamos aqui diana de novo

frente a frente depois de invernos

e verões falsamente quentes

aqui agora neste outono

finalmente apresentamos as

armas diante das flores

 

seu corpo ágil e vigoroso

minha cabeça pensante

nossos pés descalços

nossos arcos cansados

as almas de luta as vidas

que pulsam no mito

ou nas ruas

o amor a brisa

 

nosso nome nos condena

às caçadas infinitas

você nos bosques

eu nas bibliotecas

labirintos encantados

sem portas ou janelas

trancadas em nós

mais livres que todas

 

duas estátuas cumprindo

sua sina de pedra e paz

pela estrada de pétalas

 

 

 

 

 

 

antipraia do caju

 

 

este prazer do domingo não o consigo assim

esquecida dos dias no calor azulado da tarde paulistana

este prazer não me pertence não pode pertencer a mim

ou aos que como eu meditam sobre o mundo modorrento

 

esta felicidade que você me ensina no domingo não a consigo

e a alegria que você pensa ver em mim é apenas a casca fina clara delicada

que esconde a gema amarela carregada do espanto que às vezes viceja

para alimentar a seiva dos dias outras vezes choca antes do tempo e

pútrida contamina o que está ao redor

 

talvez eu quisesse passar o resto dos meus domingos ao seu lado

como seria tênue e lácteo o leito do domingo rio afluente correnteza

mas nunca se sabe este pode ser meu último domingo

posso morrer amanhã "de susto de bala ou vício"

 

talvez eu o deixe num domingo

sem dizer nada sem acusá-lo do amor que já não houver

irei sem gritos sem dizer palavra alguma que ofenda

o que você é para mim neste sofá neste instante

de meu insuportável lirismo

meu lirismo excessivo de domingo

 

talvez este mesmo lirismo um dia arrebate você além dos versos

e então num domingo você pedirá que eu vá embora

entre os gatos e a voz do ferreira gullar eu partirei serena

não quebrarei vidraças não me embebedarei

olharei com ternura os seus olhos rasgados

fecharei devagar a maçaneta para que a suavidade das folhas da madeira da porta

(esta que um dia você abriu para eu entrar em sua vida)

retenha tudo que foi pluma e olor de flor

 

toda a nossa história secará por dentro dos seus livros

entre os seus discos de blues na voz do bob dylan que ecoa na vitrola

toda a hybris da anti-história do anti-tempo das des-horas

nossa nudez nosso jazz louco pueril ante as janelas

e o aplauso da tarde morna sob os lençóis

marcados de ritmo e pulso

 

talvez eu queira mesmo passar o resto

dos meus domingos a seu lado

talvez você não me mande embora

tampouco eu quereria ver você partir

por qualquer razão que ainda não sabemos sequer supor

não sabemos de nada de absolutamente nada

a não ser que lá fora chove

 

por isso me abrace meu bem

o amor deste entardecer

é o único com que hoje podemos arar

a sombra dos dias o vulto das coisas

o sol que ceifa no quarto tomado de aromas

o suor dos que estão vivos

os poemas que latejam

 

 

 

 

 

 

a experiência do lume

 

 

sol que a língua escreve sal

pele contra pele sobre a pele

poros pelos brisa leve

 

rútilo infinito dos corpos

gritos abismos mãos

dança-encanto ao som de um blues

olhos que se roçam pernas

madrigal em brasa

quadris ocos palavras

 

zênite

 

mergulhos entre lençóis

até que o tempo inunda o ar

com as cores da terra

com os odores do muco

da espuma

 

e então exaustas as pálpebras arrefecem

do amor que os braços enlaçaram

noite adentro:

 

felina delicadeza de sussurros

e lumes

 

 

 

 

 

 

alexandria

 

 

gostaria que morássemos aqui

um tempo

nesta biblioteca imensa

suspensos nas estantes

tanto tempo quanto fosse preciso

para que o espaço que os versos reivindicam

finalmente corresse em nossas veias

se isso seria o grande amor não sei

é possível que sim

o infinito é sempre maior do que supomos

 

se morássemos aqui

eu nem adormeceria

nunca sentiria sono não abandonaria

você no sofá lendo moby dick

e nem saltaria cedo da cama

enquanto você se refaz

unindo no sonho ahab à baleia

 

ficaríamos olhando as palavras

que são estrelas como disse

padre vieira naquele lindo sermão

noites e noites olhando as palavras as estrelas

nas madrugadas dançaríamos nus

diante da porta central

transaríamos entre os livros

copularíamos como insetos

que se amam a todo instante

calados

 

entre as páginas envelheceríamos

a salvo do mundo lá fora

borrando as letras de saliva e sêmen

 

e se essa nossa história

um dia se tornasse poema

se ultrapassasse as estantes

se derramasse chuva no asfalto

se molhasse de rimas a vida dos transeuntes

jamais saberíamos

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Diana Junkes nasceu em São Paulo, em junho de 1971. É poeta, crítica literária e professora de literatura da Universidade Federal de São Carlos, onde também coordena o Grupo de Pesquisas de Poesia e Cultura (GEPOC/CNPq). Dedica-se ao estudo da poesia brasileira contemporânea e, particularmente, à obra de Haroldo de Campos. Dentre suas publicações destaca-se o livro As razões da máquina antropofágica: poesia e sincronia em Haroldo de Campos, Editora da Unesp/2013. Como poeta, publica regularmente em revistas e blogs e é autora de clowns cronópios silêncios(2017) e sol quando agora(2018), pela Editora Urutau, e de asas plumas macramê, pela Editora Laranja Original (2019).