©tante tati
 

 

 

 
 

 

 

 

O NADA

 

 

Um pincel passeia pela tela

lento afetuoso a violino,

e no céu num'alva nuvem rindo,

a cor da razão de todas elas.

 

Algoz de si, rumo ao concebível,

esforça-se e com o esforço o espanto:

Tentar pintar e na tela, o inflexível,

o incólume, o inefável branco.

 

Há no nada uma tendência ao nada,

como na urgência se hospeda a inércia,

e nas minhas obsessões, fadas.

 

Sinto-me numa luta fadada

ao destino de todas as crenças:

— a inexistência, o branco e mais nada.

 

 

[Do livro Menina da lua, uma presença, uma procura. Tradição Planalto, Coleção Poemix, 2009]

 

 

 

 

 

 

FLOR DOS DESEJOS

 

 

Eu não conheço a flor da acácia,

mas também não conhecia moonshine,

não conhecia o vinho da missa,

nem sabia o sabor da cachaça.

 

Eu não conheço a flor da acácia,

mas também não conhecia pitaya

nem sapoti nem lichia,

muito menos a chirimoya.

 

Eu não conheço a flor da acácia,

mas também não conhecia os escritores russos

nem os poetas italianos modernos

nem os antigos etruscos

e eu sequer dominava a flor do Lácio.

 

Eu não conheço a flor da acácia

nem conheço todos os risos

nem todos os ais,

mas sempre chega o dia em que o desejo se sacia,

mesmo que seja tarde demais.

 

 

 

 

 

 

NOVELAS

 

 

Nas novelas da telinha,

a arte fica só na embalagem,

o resto é um aboiar sem fustigar.

O resto é doma gentil.

 

 

 

 

 

 

 

JÓ SEM FINAL FELIZ

 

 

O brasileiro parece com o Jó do antigo testamento.

É saqueado,

surrupiado

e torturado,

enquanto as autoridades disputam a sua fé.

O caso do homem da terra de Uz termina feliz,

mas é só uma história.

 

 

 

 

 

 

CANTIGA PARA UM ALMOÇO SOLITÁRIO

 

 

O cordeiro ao vinho lembrou-me você,

porque os cordeiros me lembram você.

 

Cale, meu coração, não conte!

 

O espumante lembrou-me você,

porque borbulhas no céu da boca lembram você.

 

Cale, meu coração, não cante!

 

 

 

 

 

 

TRAUMAS

 

 

Ao ver um lago manso,

atiro uma pedra e observo.

 

A pedra some, deixando a ferida

e as ondas da dor.

 

Depois, a água se acalma,

mas a pedra ainda estará lá.

 

Então me lembro de você em mim,

nefrolitíase pronta pra doer.

 

 

 

 

 

 

MELHOR QUE NÃO HAJA REENCARNAÇÃO

 

 

Noite de pesadelos.

Amanhece.

Melhor com eles.

 

 

 

 

 

 

CICATRIZES

 

 

                   Para uma mulher que denunciou o marido agressor

 

 

Eu senti medo,

medo demais.

Os meus seios flácidos tinham medo,

as minhas mãos pálidas tremiam de medo,

minha pele tinha medo,

meu sexo tinha medo,

meu útero esterilizado tinha medo,

minhas queloides tinham medo,

minha memória não tinha lembranças, tinha medo.

Tudo o que restava era o medo.

Mas ter medo era bom,

porque era só meu o medo,

e era novo ter algo só meu.

 

 

 

 

 

 

ACERCA DA INTOLERÂNCIA

 

 

Toda cerca é uma descrença,

não importa se uma cerca branquinha,

ou de pedras com concertina.

 

Venda nos olhos,

máscara cirúrgica,

colete a prova de balas.

 

Toda cerca protege uma intolerância,

toda intolerância é uma cerca,

toda cerca impede abraços.

 

Há cercas feitas de espinhos,

há cercas feitas de idiomas,

há cercas feitas de guardas armados,

fossas com jacarés,

e valas com arames farpados;

 

há as pequenas cercas,

a casca do abacaxi,

a concha,

a camisinha;

 

e as cercas enormes,

o espaço entre a Terra e Marte,

o tempo entre o início e o fim do universo.

 

E a mais triste de todas as cercas,

a que separa as panelas berrando nas varandas

gourmets,

e os pratos vazios nas periferias.

 

 

[Em Estou convencido de que vou para o inferno. Tradição Planalto, 2017]

 

 

 

 

 

 

POLINÍFERO

 

 

Na outra vida tivemos um forte elo.

Eu fui um desses bichos poliníferos

um mangangá

um morcego

ou um beija-flor.

 

Você era um belo ipê amarelo.

 

 

 

 

 

 

ILUMINADO

 

 

A ideia que tenho do mundo espiritual

é a do vitral de uma igrejinha antiga

a iluminar o assento do confessionário.

 

Os olhos do vigário brilham no escuro

a escutar o desfile de humanidades

do ser iluminado à sua frente.

 

 

 

 

 

 

SERVIDÃO

 

 

Gratidão não é o seu forte.

Eu servi a sua comida

lavei a sua bunda

passei as suas camisas

arrumei a sua cama imunda

 

busquei a cocaína

o ópio e a maconha

escondi o seu vômito

aguentei o seu topete

a preguiça indômita

e até a sua mão nojenta.

 

Você herdou o paraíso.

O meu fica onde você não está.

 

 

[Do livro Elegia de descuidos. Impressões de Minas, 2019]

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Laércio José Pereira (Contagem/MG). Fotógrafo, publicou os livros de poesia Menina da lua, uma presença, uma procura (Tradição Planalto, 2009); Estou convencido de que vou para o inferno (Tradição Planalto, 2017) e Elegia de descuidos (Impressões de Minas, 2019). Em 2018, pela Virtual Books, publicou Uma árvore ao pé da serra, com uma seleção de cartas da sua família.