©jerzy górecki
 

 

 

 
 

 

 

 

MEDIDA PROVISÓRIA



Os gastos serão controlados

Os gostos serão controlados

Os gestos serão controlados



controlados



controlados



serão



seremos



somos







MENINAS DE MAIO



Na praça central, 

À véspera do dia santo,

As meninas de maio se despem 

de seus longos cabelos ao vento


Filhos desaparecidos são emaranhados laços de pontas disformes, 

Rascunhos de cartas atiradas ao mar

sombras siamesas em quarentenas vivas

— velhas avós mudas que resguardam gritos em gavetas


Dos bordados finos,

Cordões umbilicais guardados que tracejam o choro dos arcanjos

O grito da besta-fera que tudo desfia, tudo 

jogos da lua, chão quadriculado de precipícios 

penhascos de sangue movediços qual setas de contramão

fardas estendidas no varal ao sol para secar as lágrimas.







A LOUCA D'ESPANHA



Como louca d'Espanha blasfemavas 

Aos deuses, aos sóis, deusa-anã

Na treva desafiavas noites e amavas

Onde estão meus olhos, estrela da manhã?


Indagavas portos, ancoravas frias embarcações 

E saltavas em graça num primeiro aceno

De suspiros e mistérios e fartas canções 

Onde estão meus filhos, estrela de aveno?


E longe a carne da máscara tão nua, 

Encenavas um canto, uma prece, um rastro 

Ou apelo para os olhos, para a Lua


Ao mar emprestavas o medo escuso 

Um torpe verso, uma lei de enclaustro

Onde estão meus laços, estrela do escuro?







TELA



A mesma mera

Ilusão

Janela aberta no

escuro

Silhueta de um

Corpo nu no espelho

Move-se à penumbra

Atávico semblante

Dinâmico — ato pensado

Olhar — exposto

Desejo


A morte & a

Disciplina.







SHAMISEN (AS 3 CORDAS DO ABISMO)



três cordas do instrumento

estiradas ao vento


um corpo de sol 

chaminés de andaluzia 

meias estendidas

na primavera


bocejos, lírios e alfazemas

o canto avesso

das falsas borboletas


três horas de um dia cinza 

motor de cigarras

na elegia para o outono 


a senha do relógio d'água



adestrados sapos 

no azul das pedras

elipses nos olhos dos peixes



cordilheiras de morte

na lâmina caída 

o sangue é o rio



memórias amputadas 

adormecidas nas asas quebradas 

do inseto raro em extinção.







ÍCARO



A Ícaro seu voo

rente ao sol    asas de cera

a queda brusca e inevitável

ruflada sombra ao precipício


A Ícaro a palavra

no tempo de vela derretida

as penas descoladas

a alada simetria da chama

resiste ao vento


A Ícaro o canto do pássaro

o vértice do outro limite

o solo de nuvem

o solo de nuvem

do instante

de todo instante







O ARCO DO DESEQUILÍBRIO 

(para o voo sem asa)



1



para Philippe Petit



frios arames estendidos de um ao outro lado

a fina tensão do vazio


no umbigo

um visceral segundo do lapso frágil

estéril tropeço no azul


as farpas são asas a queda um único verso


sem rede de proteção.




2



Quantos ossos se secam na varanda 

entre baús manchados de tinta fresca 

no parapeito do esquecimento

teu grito era o espasmo no chão

— câncer na medula dos dias desesperados? 

espatifada sombra horizontal


Insepultos fantasmas da marquise nos acenam equilibristas 

Nos fios de eletri-

cidade

Com saltos largos

— cabides de alta tensão

Três passos no farpado arame 

contorcionista novelo

de um sangue sem pontas



E atravessam os edifícios espelhados 

Camuflam-se nas nuvens pé ante pé


flu

tu

am


levemente se espetam no azul


qual borboletas num livro raro


de colecionador




3



para Lillian Leitzel



A corda que se estende 

Farpada aos tropeços 

De um lado ao outro 

Tenciona a queda



v

e

r

t

i

g

n

o

s

a



acorrentado no chão de cimento a travessia 

das órbitas frias — cinzas num penhasco

o motor do tédio parado qual ponteiros dis

ol

vi

do

s


pelos escombros do

s

ol




4



para Maria Spelterini



Poucas sobras. Sombras.


Nenhuma rima des 


a j e i t a d a


  d e i t a d a    ou não 

  a li nha d a        crua


inad 

vertida


mente 

pousada

no chão.




5


para Karl Wallenda



Na opressão das memórias extintas 

atravessa num arco

Dois prédios de escombros 

Na leveza do desequilíbrio 

Um salto para o infinito


ácidos de cal e fuligem


um precipício do solo 

sol

sol

a pino


a tarde emaranhada de finas teias 

tênues dorme


a morte boceja seu átrio

na somatória de tudo — zero. 




6



para Charles Blondin



Sobrevoam aviões 

em parafuso


Com asas de organdi parafusadas 

da cabeça às costas

atravessa em seu arame o azul


Um outro personagem dos quadrinhos 

é redesenhado em cores

mais vivas


Uma sopa, um pacote de biscoito 

O retrato laranja

do homem de negócios — 

estampas vermelhas de camiseta


O sol estático

no fio tenso de arame farpado 

Como deus alado — os cabelos soltos 


As horas param —


Organdis no asfalto.




7



céu

azul

aberto

o pássaro

metálico

paira

logo

a

tra

ves

sa

o azul

recorta

o tempo

e o céu

d e s

m a

i

a




8



num arame estendido azul

uma tarde por um lance




9



a carne para os lobos

a queda para a audiência

capins rasgam as frestas do concreto




10



para Alvin "Shipwreck" Kelly



Debruça no voo imaginário 

do grito em raso prenúncio —


olha cego para a nuvem —

a morte conceitual ainda não exumada


No desequilíbrio do azul de uma tarde 

A sombra

O reflexo do tempo parado 

Nos relógios cromados


O respiro fundo, as mãos esticadas 

Um pêndulo

Uma cruz


O azul da tarde é a lona do espetáculo 


O público aguarda a queda em silêncio. 




11



O gosto da queda traz o vento 

que estapeia a face

As páginas de um livro de poemas 

que não foi escrito

se debatem na tarde

Entre os passos do equilibrista 

Em queda vertiginosa

para o azul

Secas folhas de bordo

se desprendem dos galhos 

e revestem o chão do outono. 




12



De toda a ausência

Do nada ao lugar nenhum

Da voz que arrancada

É apenas corda estremecida

De um a outro ponto do abismo



v

e

r

t

i

c

a

l


o sussurro crispado das pedras

que moldam o chão — o berço do vazio 

da memória fria do pássaro em sincronia

com a queda.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Leandro Rodrigues (Osasco/SP, 1976). É professor de Literatura e considera-se um antipoeta ermitão, avesso no desavesso, corintiano de roer unhas. Pai de João Gabriel, casado com Lúcia e astrônomo de sextas e sábados. Já lançou os livros Aprendizagem Cinza (Patuá, 2016), Faz Sol Mas Eu Grito (Patuá, 2018) e Todas As Quedas São Livres (Penalux, 2020). Também já participou de diversas antologias, entre elas, Hiperconexões 3 (2017), O Casulo (2017), Sarau da Paulista (2019), MedioCridade (2019), 15ª Antologia Prêmio Sesc Carlos Drummond de Andrade (2019), 70x Caio (70 poetas homenageiam Caio Fernando Abreu, 2019) etc. Possui alguns poemas traduzidos e publicados na Espanha, Argentina, México, França, Itália e nos Estados Unidos (revista Dusie Nº 21 da UCLA (Universidade da Califórnia). Mas não acredita em nada disso. Continua aguardando na varanda os dois discos voadores vistos na infância, para lhe proporcionarem um passeio que ainda não fez.