[No curta-metragem Two or three things I know about Edward Hopper 
(Duas ou três coisas que sei sobre Edward Hopper), 
de Wim Wenders, com várias microficções baseadas nas pinturas]

 
 
 
 
 
 
 
 

Pessoas sozinhas, que parecem ter por hábito e questão de dignidade a solidão, em mesas de cantos de bares, lanchonetes, restaurantes, às vezes nos chamam a atenção. É preciso olhá-las quando não estão nos olhando, para não violar o pacto silencioso (e civilizado) entre almas que não se conhecem. 

Às vezes, porém, um olhar delas, meio errático, pousa em nós, e quase se pode ouvir um pequeno suspiro. Porque não há solidão que, fosse o mundo outro, a gente não trocaria por uma boa companhia. E é impossível esconder todo o tempo a ansiedade que sentimos por uma vida compartilhada de verdade, no que temos de mais delicado, precioso e vulnerável.

Do lado de cá, de quem olha, provavelmente o olhar é o mesmo. E talvez o suspiro também não tenha vindo apenas de lá.

Suspira-se por uma vida inteira, uma vida em que um olhar apaixonado, de ser humano para ser humano, pudesse valer alguma coisa. Perderíamos o hábito do frio, que nos mantém encolhidos, defensivos, percorrendo extensas ruas que levam a algumas portas que, mal abertas, já parecem um retorno à condenação de todas as horas perdidas em tédio e nessas coisas pífias, forçadas, que fazemos quando sozinhos. Nenhum gesto de sobrevivência parece ao solitário algo mais que uma obrigação de ser, de existir, ser e existir contra todas as evidências que o indicam morto, enquanto pensa que, se houvesse alguém ao seu lado, cada uma das suas tarefas ganharia um sentido, teria um calor e uma beleza que o outro olhar estimularia, compreenderia.

Olhar só para as imediações do corpo, olhar para as mãos. Mãos que lavam louça empilhada, que passam guardanapos nas superfícies cobertas de pó ou de farelos de pão, mãos que empurram com a vassoura folhas secas para o cesto de lixo, mãos que se resignam a um utilitarismo apagado. Poderiam ser mãos de afagar, mãos de encontro, mãos feitas para outras mãos que nunca esperaram outras senão elas. Mas é ir para a janela e, tal uma criatura de Edward Hopper, olhar para o vazio sem esperança de que nas ruas, onde a passagem de um cão vadio em meio à neblina é o único fugaz sinal de vida, surja, enfim, a concretização da promessa humana pela qual se trava há tantos anos a luta infrutífera de viver. Qualquer fagulha do que se chama esperança é rapidamente apagada por alguma brisa gelada vinda do vazio e novamente se fecha a janela. Ao longo dessa minúscula vida janelas foram abertas e fechadas infindavelmente.

Ninguéns da Silva e Eleanor Rigbies deslizam, sem que ninguém repare de onde vieram e para onde vão, por cantos onde viver é menos ser do que se esconder. Às vezes, ao receber um "bom dia", esses esquivos podem estar se enchendo de uma alegria esperançosa de cujas dimensões e profundezas nem mesmo podemos suspeitar. Mas é só um instante, esse mesmo instante em que o olhar num restaurante, sem rumo, pousou em certo outro olhar e, em meio às sombras movimentadas de humanos menos interessantes que coisas — talheres dispostos, guardanapos, copos, saleiros e paliteiros — alguma palavra essencial foi silenciosamente dita. Mas sabe-se que seria completamente inútil procurar fazê-la ouvida.

 

 

dezembro, 2020