©ursula schneider 
 
 
 
 
 
 
 
 

O que nos deixarão os tempos de hoje?

Pois, embora às vezes pareça tão difícil de conceber, vivemos tempos que não serão esquecidos.

Talvez pareça tão difícil, assim, encará-los, porque, muitas vezes, ou em muitos momentos, tudo o que queremos é esquecê-los.

Mas isso não é possível — sobretudo, quando esses tempos ainda não são um departamento do passado.

Não sei se o poeta Sidnei Schneider gostará dessa espécie de abordagem ao seu poema "Noturno da Pandemia". Mas é a que me veio à cabeça ao ver sua referência ao que agora já é, realmente, passado: "(Lembro dos anos de dureza/ com os três filhos pequenos,/ da batata que juntei do chão// enquanto buscava emprego,/ machucada, fez-se alimento,/ símbolo secreto, pulsar-vivo,// nunca o disse para ninguém,/ apenas hoje, depois de tanto,/ ao céu solidário dos vizinhos)".

O passado — a História (com "H", letra maiúscula) — é o que temos para situar o presente, e, portanto, também nossa projeção no futuro. Não é pouco. Nossos antepassados, quando desceram das árvores, ainda não tinham História. Mas nós a construímos.

Um dia estes tempos de pandemia também estarão no passado. Um dia estes tempos com um anormal, um elemento antissocial, na Presidência, estes tempos serão, no máximo, uma lembrança incômoda, ou, no dia em que conseguirmos lembrá-los com toda a desinibição, nem incômoda. Apenas perceberemos que o final de uma época pode ser doloroso, pode ser, até, mais ou menos longo em seu ocaso, mas nem por isso deixa de ser, também, o anúncio de uma outra época, de uma época que não começou ainda, mas começará.

Então, o que ficará desse passado?

Muita coisa, inclusive os melhores poemas que naquela época — e sobre aquela época — foram escritos, laboriosamente construídos ou esculpidos.

Aqui, os leitores, por antecipação, têm um deles.



Noturno da Pandemia

Sidnei Schneider



Hordas de nômades de rua

andam na crista da avenida,

grupados igual nunca antes,


sacos pretos nas costas ou

em carrinhos de empurrar,

coleta do dia, depois acaba:


um rapaz se abaixa e ergue,

feliz, do asfalto sua máscara

decorada, os outros já têm.


Na janela da lancheria, peço

uma garrafa de mineral, e o

dono diz pra tomar cuidado,


digo que não me ocupam, já

lidei com ladrõezinhos de rua

e não é isso que parecem ser,


demonstra o enorme pavor,

sem arma não entrego nada,

achegam-se, despassam reto.


Na quadra do minimercado,

uma guria, sentada na porta

do iglu aberto na calçada, diz


— Água?, como se no deserto.

É uma noite quente no início

do inverno, paro a bicicleta e


estendo a garrafa em silêncio,

ela sorri e agradece, não deve

ter trinta anos e não tem nada


de típica moradora da noite.

(Revejo o desconhecido inca

que me deu manta de alpaca


a trinta graus abaixo de zero,

perto do vale de Sicuani, para

ativar a circulação do sangue,


que me punha mui níveo nas

extremidades: sem qualquer

palavra, rosto seco, solidário).


O casal embaixo da marquise

da extinta sorveteria prepara

camas para as três pequenas:


cobertas velhas no papelão

e jornais, devem ter ganho

da vizinhança. Astronautas,


cientistas, poetas dormem

naqueles gens, até quando?

Viemos das cavernas, elas


ainda vivem na pré-história,

parte do povo conseguimos

botar em aptos, casas boas,


faltam muitos, e o que falta,

senão revigorar a soberania,

para erigir um país de todos?


(Lembro dos anos de dureza

com os três filhos pequenos,

da batata que juntei do chão


enquanto buscava emprego,

machucada, fez-se alimento,

símbolo secreto, pulsar-vivo,


nunca o disse para ninguém,

apenas hoje, depois de tanto,

ao céu solidário dos vizinhos).


No dobrar a esquina, outro

iglu, também não de alguém

que antes morasse nas ruas,


deve ter sido obrigado a sair

de casa, da pensão, do lugar

errante que lhe vendia cama,


a unhar um cavaquinho sem

cordas, triste na madrugada.

Como em cidade do interior,


quase todos cumprimentam

e, ciente, já tomo a iniciativa.

Passo pelo bar mais popular


do bairro e um bebum feito

trem em curva sacoleja para

fora da grade recém-erguida:


só matando o vírus no álcool,

magrão, a naftalina do Bozo

não presta, vamo de impiche?


Retrato do povo mal tratado,

o velho bairro anda assim, no

Brasil que o titular só desfaz.



[junho, 2020]



dezembro, 2020



Carlos Lopes é jornalista, médico psiquiatra, crítico literário, editor do jornal Hora do Povo.