Em troca de mensagens, recebi quatro poemas de Silvana Guimarães. Com poucas horas de sono, atravessado pelo florete do cansaço, prometi lê-los à noite. Chegada a selva oscura, o florete estava prestes a me tirar a vida e nada dizia que eu conseguiria lê-los à luz espinhenta do celular, no qual costumeiramente leio qualquer coisa. Feito gaúchos da fronteira, que dizem soy hombre cumplidor, embora não houvesse ninguém para ver ou cobrar, imprimi os poemas e fui deitar com eles e uma lapiseira, disposto a captar o espírito do tempo sob a pandemia.
Em "tea for two", duas mulheres tomam chá, numa concretude de linguagem que dá quase para pegar com as mãos: "a vizinha do lado guardou as panelas/ e os velhos de baixo pararam de tossir". Ampulheta do poema, antes de descritivos tais versos indicam horas tardas. A seguir, com o sinal diacrítico no início, o verso: "a brisa provoca um acalanto nas folhas" acaricia a pele e os ouvidos, nos quais cochila enrodilhado bebê.
Tenho para mim que não faço crítica literária em se tratando de poesia, observo poemas se mexendo como quem observa com toda atenção um animal selvagem flagrado na natureza: "no meio de nós um vaso de hibiscos azuis/ traz o mar de outubro para dentro de casa". Quero, ou gostaria, que o leitor ou a leitora sentisse vontade de ler os poemas, o livro, o objeto que estou comentando.
O encontro das duas mulheres, eivado da mesma concretude, revive algo na solidão da pandemia: "o modo como ela joga os cabelos para trás/ relembra-me os gestos que refaço toda manhã", e recém estamos na metade do poema. A trilha até o final é melhor não antecipar.
Acordei cedo demais após ter, grávido dos poemas de Silvana, pego no sono muito cedo. Escuro ainda, apalpo as folhas na barriga, rosados marsupiais de olhos cerrados, como os vira sobre a mãe gambá certa vez.
Em "aos que vão viver", cresce a importância do título: quem não pensou que a vida, a própria ou a de próximos, pode repentinamente acabar ante "a coreografia das roupas no varal", em função do vírus? Devido a "um punhal aceso", como aquele cuchillo do espanhol Miguel Hernández, em El rayo que no cesa. Lembrança apenas, esclareço, sem necessária evocação de intertextualidade.
Já "entulhos" desvenda com Freud as razões: "para vasculhar a pele em busca/ do que espremer do que torturar". Os verbos no infinitivo se repetem, declaradamente impessoais, até que a voz poética irrompe com nitidez, "enquanto desaba à procura da poesia/ esquecida em um lírio atrás das estrelas".
Amanheceu, a ponta do dedo indicador dói de digitar a tela quebrada do celular, que não tive ocasião de trocar devido à pandemia. Sempre ela, a que assaltou nossas vidas, e um gaiato na presidência finge desconhecer, aumentando o sofrimento e as mortes.
O último poema, "por um fio", ao menos para este leitor, é o mais contundente, escrito sob "a luz do sol alheia às nossas tragédias". Nele, "a vida rosna atrás de sobrevida" e um dedo "percorre a lista de quem não verá a primavera". O final é tão verídico, irônico e poético que não vou estragar a surpresa de ninguém.
Como eu disse, não faço crítica literária. Em tempos sombrios e odientos, faço propaganda da boa poesia.
Os poemas:
tea for two
açúcar ou adoçante ela me pergunta
depois de encher minha xícara de chá
: em volta da mesa trocamos delicadas
porções de afeto toques & certo pudor
há tempos silenciou o barulho das ruas
a vizinha do lado guardou as panelas
e os velhos de baixo pararam de tossir
: a brisa provoca um acalanto nas folhas
no meio de nós um vaso de hibiscos azuis
traz o mar de outubro para dentro de casa
: o modo como ela joga os cabelos para trás
relembra-me os gestos que refaço toda manhã
mais chá ela insiste e quer saber também
como foi o meu dia paisagens do livro que li
: a solidão é esse bolo que repartimos em
pedaços para alimentar a fome do mundo
entre linhas nacos e goles ocultos em cada ato
ela cerra os olhos e me beija ofegante na boca
malgrado um vírus que se amolda na penumbra
: une saison no inferno em tempo real pela tevê
pode ser que somente a morte nos separe e eu
continue vivendo sem morrer pela metade
: só tomo chá assim, às cinco da tarde
sozinha distante descalça em frente ao espelho
aos que vão viver
pássaros peixes & angústias
explodem nas esquinas
corpos cegos sorrateiam o
desejo brutal nas noites caladas
um punhal aceso entrecorta os cantos mais sombrios
fome & vento sede & fogo em um ajuste de contras
as cartas na mesa
a coreografia das roupas no varal
o sol entre os dedos
não amainam o dó estrídulo no peito
da vida as lâmpadas são a invenção mais imoral
e as pessoas são mistérios: todos indecifráveis
entulhos
acordar andar respirar procurar a poesia
esquecida em um lírio atrás das estrelas
apreender o otimismo de platão
aristóteles leibniz hegel & lou reed
desvendar com freud as razões
: para vasculhar a pele em busca
do que espremer do que torturar
embarcar em canoas furadas
ou comer gato por cachorro
& se esfolar em becos sem luz:
enquanto desaba à procura da poesia
esquecida em um lírio atrás das estrelas
por um fio
o mercadinho do bairro abriu suas portas:
olhos perplexos apalpam cebolas & abacaxis
a luz do sol alheia às nossas tragédias
despenca sobre alpendres morros escombros
devagar a vida rosna atrás da sobrevida:
merecemos seguir como os rios & os abismos
um dedo atiça a dor de uma velha ferida quando
percorre a lista de quem não verá a primavera
o coração apertado um poço de nãos & aspereza:
a memória um buquê de papoulas & avencas
[no fundo da pia onde limpo a louça seu rosto me olha
na agenda de telefones seu nome desafia o silêncio]
entre perdas & enganos a nossa maior façanha:
amestrados aprendemos a lavar as nossas mãos
dezembro, 2020
Sidnei Schneider é poeta, ficcionista e tradutor. Publicou De rua e sangas (2018), Andorinhas e outros enganos (2012), entre outros.
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