"Desço o mel e ordenho o cacto
cresço a favor da manhã".
(Olga Savary, "Pitúna-Ara", fragmento)
Abro o relógio do tempo e as sementes da intuição se aguçam fortemente cada vez que pronuncio o nome de Olga Savary, um importante sol vivo e infinito nas malhas vibrantes que tecem a literatura brasileira. Seu itinerário de criatividade incomum é o da realização da sabedoria. Sabedoria e potência. Suas obras são a um só tempo arte e ensinamento, transmissão de saberes e cantares bordados em teares de alta sofisticação. Com a naturalidade dos mestres, Olga escreveu o Brasil e o mundo, trilhando uma rota extraordinária.
A primeira imagem se esboça em nascedouro: vejo a Olga das águas. Amazona — nascida em 1933 em Belém do Pará, embora se considerasse, com todo acerto, uma carioca por adoção. Vejo-a num espelho d'água. No nascedouro de percursos fluviais, amplia-se o retrato da artista, pintora de sílabas e escultora de verbos, transitando magnificamente entre a cultura erudita e uma certa doçura da coloquialidade. Há nela algo ligeiramente pop que a aproxima dos jovens, sempre unidos a ela pelo magnetismo de um ímã precioso.
Seus passos sonoros dançam num rio vivo e todos os outros rios vibram por ela e com ela. Ressonância. Fluência no corpo de linhas afluentes. Seu barco é de muitos oceanos. Na força da fala de Olga Savary, circulam redemoinhos prenhes de uma liberdade ancestral. Olga é mestre também da concisão. Haicaísta. Mestre.
Muito à frente de seu tempo, a autora de plurais invenções e talentos múltiplos já estreou fazendo diferença. Premiada em 1971, pelo livro Espelho Provisório (1970), com o Jabuti destinado a autor revelação, marcou seu espaço muito singular no panorama cultural brasileiro. Cantando, com erudição e sabedoria, como um vulcão que, aos poucos, desprendia o fogo do Olimpo. Olga-fogo de tantas indomadas labaredas. De incêndios de luz. As brasas de Olga ajustando chuvas de sol. O vibrar de suas brasas.
Uma autora que explode lexias, semantemas, frases, melodia, contraponto, abre páginas em frestas e mares. A música conhece a voz de Olga e se encanta nela. Volátil. Os títulos de cada um de seus livros são verdadeiras obras de arte e engenho.
E, no espaço, Olga-ar — geminiana consagrada a Mercúrio, a Eolos, a todos os ventos e fúrias com que veste sua palavra de arte e luz. Escritora, também romancista e contista, soube desdobrar muitas camadas de imagens e de significados e alquimicamente traduziu belezas estéticas tão raras como a sua: Octavio Paz, Pablo Neruda, Júlio Cortázar, Laura Esquivel, Roman Cano, Helena Castedo, F. Garcia Lorca, entre muitos outros.
Olga-terra construtora também atuou no mundo como jornalista e produtora cultural, conferencista, palestrante ativa de muitos temas literários e estéticos. De profunda brasilidade, Olga internacional representou o país em eventos literários no exterior. Irrigando o tecido literário. Deu forma e ritmo à argila que transformou em muitos segredos-concreções. Seus livros foram gerados com a latência do verbo-fogo, na força de extraordinários fios de luz de ilimitados universos e de sua brilhante inteligência.
[Relembro, neste instante a menina-poeta Beatriz que, maravilhada com a obra de Octavio Paz, mergulhou em O Arco e a Lira, traduzido no Brasil por Olga Savary. É uma tradução belíssima, com a poeticidade e lucidez da própria Olga a se unir ao extraordinário texto original de Paz.]
Olga Savary sempre foi uma voz presente em toda a ciranda de arte em que fui crescendo. Nos anos 1970 e 1980, quando comecei a pensar em escrever mais seriamente, seus livros me vinham às mãos das mais diferentes formas. Um presente de minha mãe. Um presente de um amigo. No jornal.
Os poemas de Olga voavam ao meu redor como objetos palpáveis, tácteis, em parte pela própria força de sua escrita, da realidade poética que a alimentava, e em parte por ser este modo — concreto, físico — o meu modo de me comunicar com palavras e letras. Tocando-as. As frases de Olga, principalmente as dos poemas mais breves, ficavam girando ao redor de mim, como punti luminosi de Giuseppe Ungaretti.
[Relembro, neste instante, a jovem Beatriz, com seus dois primeiros livros já publicados e vida acadêmica iniciada, a cursar concomitantemente a Faculdade Direito e a Faculdade de Música, e a correr para o Centro Cultural São Paulo exclusivamente para ouvir uma inesquecível conferência de Olga Savary em um Encontro Internacional de Haicais].
"Palavras antes de esquecê-las
lambendo todo o sal do mar
uma única pedra".
(do livro 100 Haicais, 1986)
Na grande estrada de sua obra — também crítica e ensaística — agrupar autores, mostrar livros de um autor para outro com quem percebesse afinidade e iluminar sendas e trilhas: gestos recorrentes e generosos.
E a correspondência! Guardo com admiração e carinho as cartas manuscritas que me endereçou, elogiando a minha poesia, quando nos conhecemos e trocamos livros na transição dos anos 1980 para os 1990.
Publicamos livros com o mesmo editor, o fantástico Massao Ohno, e frequentamos seu estúdio em São Paulo. Massao me presenteou algumas vezes com livros de Olga, pois já sabia que o quanto gostava de sua obra.
Em nossa correspondência, recebi muitos convites de Olga Savary para participar de antologias, coletâneas, escrever aqui e acolá. Foi durante essa comunicação vibrante, alimentada pela troca de livros e poemas que escrevi "Altaonda para Olga Savary", poema que lhe dediquei, e no qual fui inserindo num desenho de água alguns de seus títulos, a começar pelo Altaonda (que ela dedica a Carlos Drummond de Andrade), e Sumidouro, Espelho Provisório, Magma e Retrato.
[Relembro que Olga Savary ter gostado muito do poema e tê-lo agradecido enfaticamente mais de uma vez foi, para mim, um presente].
Escritora muitas vezes premiada e ativa integrante de associações e entidades literárias e culturais, entre as quais cito o Pen Club, Olga comunicou-se e correspondeu-se com autores de todos os cantos. Leu-os e deles recebeu leitura e amizade. Expansão. Ressonância.
Notório o seu dinamismo. Bem conhecidas a sua generosidade e a sua popularidade. Ideias criativas a percorriam o tempo todo. Algumas dessas ideias se converteram em interessantes projetos.
Quase a concluir este texto-homenagem impregnado de depoimentos, resgatando a bela cena que com ela vivi, em 22 de maio de 1996, no auditório principal da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Meses antes, a Secretaria Municipal de Cultura havia me convidado para realizar, ao lado de Eunice Arruda, um longo e consistente ciclo de leituras de poesia e apresentações críticas. O ciclo foi um sucesso e estendeu-se por mais de um ano. Só no primeiro semestre reuniram-se mais de 130 poetas e críticos brasileiros, em mais de 90 encontros.
A coordenação foi exercida por mim e por Eunice Arruda. Cláudio Willer, poeta, tradutor e mestre, idealizara o projeto, pois era o Assessor de Literatura da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O Secretário de Cultura era o premiado escritor e jornalista Rodolfo Konder, um combativo defensor dos direitos humanos. Olga Savary, evidentemente, foi uma de nossas convidadas. Participou como poeta e também como crítica.
A mesa de que nós duas, Eunice Arruda e eu, ambas coordenadoras, participaríamos como poetas estava marcada para o dia 22 de maio, uma quarta-feira. Tudo já estava preparado e organizado. A professora, crítica e ensaísta Anna Luiza Campanhã de Camargo Arruda Bauer falaria sobre a minha produção poética, que conhecia muito bem, pois já a estudava por anos, sendo ela a autora da dissertação de mestrado intitulada "Dos rascunhos à obra editada: um itinerário poético", sobre o meu livro Encadeamentos (Massao Ohno Editor, 1988). Sobre a poesia de Eunice Arruda falaria o crítico e ensaísta Moacyr Félix, que viria do Rio De Janeiro para participar. A mesa de quatro participantes, já estava delineada e os convites e folders haviam sido distribuídos e estavam circulando pela cidade, numa época em que a internet tinha menos de dois anos e uso mais restrito. Semanas antes do dia 22, Moacyr Félix teve um inesperado problema de saúde e os médicos lhe determinaram repouso. Eunice Arruda, naturalmente, ficou muito preocupada. Duplamente. Com Moacyr Félix e o evento. A possibilidade de restabelecimento de Félix antes de 22 de maio ainda existia, mas foi ficando cada vez mais remota. As preocupações de Eunice aumentaram e ela se abria comigo sobre o que fazer. A questão era convidar um crítico para substituir Moacyr Félix na análise da obra de Eunice. Félix havia sido escolha dela. Ele conhecia bem sua poesia. Eunice tinha muitas obras, pois principiara sua carreira em 1960. Foi nessas circunstâncias que me ocorreu o nome de Olga Savary, que bem conhecia a obra de Eunice. Pensamos: ela, que já participou duas vezes, como poeta e como crítica, será que aceitará retornar a São Paulo, novamente, para fazer esta substituição? Fizemos o contato. Olga compreendeu imediatamente a situação e nos deu uma resposta positiva. Veio alegre e doce. A noite foi bastante especial. Anna Luiza Campanhã de Camargo Arruda Bauer fez uma excelente apresentação de minha poesia, utilizando os instrumentos da Crítica Genética. Apresentou slides com fragmentos de meus manuscritos. Foi ótima. Excelente também foi a apresentação crítica de Olga Savary sobre a poesia Eunice Arruda. Uma noite harmoniosa e de densidade. Estavam presentes na plateia muitos escritores, entre os quais Fábio Lucas, Samuel Penido, André Carneiro e outros. Aberta a palavra ao público, Fábio Lucas começou a série de perguntas.
Finda a mesa, fizemos uma bela série de fotografias juntas: Anna Luiza Campanhã de Camargo Arruda Bauer, Beatriz H. Ramos Amaral, Olga Savary, Eunice Arruda. Após confraternização, nesse agradável reencontro meu com Olga, ela ficou sabendo de minha imensa "devoção" por Clarice Lispector, pois recebeu de presente um exemplar da Revista da Biblioteca Mário de Andrade, no qual estava publicado um estudo meu sobre "O Feminino em Clarice Lispector". Olga também ficou sabendo que, em dezembro de 1994, eu idealizara e coordenara uma homenagem a Clarice Lispector, pelos 50 anos de sua estreia literária. Falou-me de sua amizade com Clarice, contou-me sobre Clarice no Leme, contou-me casos, muito bom ouvir.
Quando os convidados foram para seus hotéis e eu retornei à minha casa, já era tarde. O telefone tocou. Minha mãe surpreendeu-se. Eu também. Quem poderia ser? Atendi. Era Olga Savary, do hotel, telefonando para agradecer o convite, dizer que foi um prazer, que gostou muito de falar sobre a obra de Eunice, que gostou muito de conhecer Anna Luiza Campanhã de Camargo Arruda Bauer e seus estudos sobre meus livros, e, claro, que gostaria de me falar sobre Clarice Lispector. Fiquei empolgada. Ela falava da literatura de Clarice e de sua amiga Clarice. Conversamos bastante. As horas voaram. Vinha chegando a madrugada e eu precisava da noite para me recompor e retomar, cedo, o meu trabalho diário.
A partir daquele instante, iniciou-se uma nova fase em nossa amizade. De mais frequentes contatos e de muito maior proximidade. Cresceu a nossa correspondência. Trocamos muitos livros de nossa produção. Olga também me enviava livros de autores ainda pouco conhecidos — que ela "descobrira" em cidades distantes e queria que eu conhecesse. Enviava resenhas, recortes de jornal. Divulgava generosamente autores. Enviava convites. Era uma saborosa ciranda literária.
Também me lembro quando Olga Savary veio lançar aqui em São Paulo o seu belíssimo livro Anima Animalis — voz de bichos brasileiros, uma edição da Letra Selvagem que eu logo quis resenhar. O som dos bichos maravilhosos de nossa fauna na voz poética de Olga: para mim, plenitude.
Em sua rica trajetória, marcada por muitos livros luminosos como Éden-Hades, Sumidouro, Retrato, Magma, dona de prêmios vários:
Prêmio Jabuti de Autor Revelação, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, pelo livro Espelho Provisório (1971);
Prêmio de Poesia, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo livro Sumidouro (1977);
Melhor livro de poesia do ano, escolhido pelo Jornal do Brasil, para o livro Sumidouro (1977);
Prêmio de Poesia Lupe Cotrim Garaude/UBE - União Brasileira de Escritores, pelo livro Altaonda (1981);
Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, pelo livro Magma (1983);
Prêmio Artur de Sales de Poesia, concedido pela Academia de Letras da Bahia pelo livro Berço Esplêndido (1987);
Prêmio Internacional Brasil-América Hispânica, pelo livro Berço Esplêndido (2007).
Olga, a primeira mulher e escrever no Pasquim, fazendo jornalismo, mereceu o olhar atento de seus contemporâneos e das gerações seguintes. O reconhecido vigor poético, a construção semântica singular, o mergulho na brasilidade, nas raízes de nossa cultura, a coragem e a liberdade de seus passos e muitos outros elementos singulares dão a Olga Savary um lugar luminoso e único na literatura. A melhor homenagem que lhe podemos prestar é ler e reler sua obra, manter viva a sua palavra poética e literária. A publicação de Repertório Selvagem, em 2008, pela Fundação Biblioteca Nacional, em parceria com a Universidade de Mogi das Cruzes e a MultiMais Editorial, é um marco. Sugestão de leitura que deixo para todos os que ainda não tiveram o imenso prazer de mergulhar em sua obra.
Olga Savary, uma importante luz a iluminar o Brasil, desvenda segredos e abre portais. Seu legado resplandece. Surpreende. Retrata expressivamente o melhor de nossa cultura. Música e encantamento. Evoé, Olga querida!
Riacho, trança de promessas
N'água se desatam as palavras
no espelho provisório em que se inscrevem
No mar deságua a crença de areia
num barco principia o vão dilúvio
Na luz que se designa poesia,
camadas de cores e contrastes
cristal de arestas: sumidouro
E Olga Savary numa altaonda
visita o berço d'água e suas conchas
e ancora nas esferas, pólen, magma
e nada-tudo além de qualquer nada
na lua que vocaliza cada hora
agora envolta em águas que se escapam —
linha do retrato que nos traga
[Clique aqui e leia poemas de Olga Savary]
julho, 2020
Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta, ensaísta, é mestre em Literatura e Crítica Literária e autora de catorze livros, entre os quais Planagem (poesia reunida), Peixe Papiro e Os Fios do Anagrama.
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