Um livro com muitas entradas. Talvez por isso o crítico e poeta português João Barrento, no seu prefácio a O método da exaustão, logo anuncie sua decisão: a de entrar "pela porta principal" — nesse caso, o título do livro. Desse, inúmeros corredores se abrem, diz ele; e vale guardar essa imagem como emblemática do tipo de livro que Manoel Ricardo de Lima construiu. Livro múltiplo, que é ao mesmo tempo pensamento e experiência rítmica e corporal. Livro para ler em voz alta, mas também, para se reler muitas vezes, na leitura calma e refletida de quem estuda. Livro entre poema, prosa e cinema, entre filosofia e literatura, entre o ensaio e a música, o ato político e a canção; dando-se em um "lugar indistinto", para usar expressão do poeta em uma entrevista, em uma "boa vizinhança", sempre fértil em novas e inesperadas imagens.
É nessa mesma entrevista, ao poeta Aníbal Cristobo, que Manoel localiza a poesia como: "um espaço político para a imaginação crítica e como um projeto inventivo de intervenção no mundo pronto e institucionalizado". Essa guerra, contra o senso comum, os clichês, é uma luta de base em seu projeto poético: luta contra as facilidades da cultura de mercado e dos modos hegemônicos de se perceber a realidade. Como diz um dos poemas: "contra o comum, a estranheza/ contra o comum, a luta, o/ limiar, o milagre". Uma guerra contra as "frases feitas" que nos rondam, apontando para novas possibilidades de existência e de poesia. Ou a busca por se desmontar o quadrado, desobedecer às formas fixas, como diz outro poema, que dialoga com o artista Eduardo Frota. Desfazer a forma em proveito da força.
Localiza-se aí uma ênfase no movimento das coisas, em detrimento do fixo, do já-dado. Poemas "em estável desequilíbrio", conforme título o prefácio de Barrento. Uma busca política e ética se encena: uma ética do desequilíbrio. Uma ética do desvio, do erro. Pisar em falso vez por outra, desviar o caminho. O que se faz urgente hoje, como diz Manoel, na entrevista citada: "Uma espécie de ética para o desequilíbrio do mundo pronto, do corpo e do texto". É preciso interromper a aparente tranquilidade das significações prontas. Inserir a hesitação e o silêncio na palavra e no mundo.
O método da exaustão persegue e intensifica um traço forte da poesia de Manoel, desde seu primeiro livro (Embrulho, 2000), que é aquele do trabalho com a suspensão de sentido, a interrupção da linearidade e o não-senso. Características que atravessarão suas obras até aqui — seja nos livros mais avizinhados à prosa, como Jogo de varetas (2012), ou ao verso, como Geografia aérea (2014) —, e que o colocam como um dos autores mais experimentais e inventivos de nossa contemporaneidade. Há um risco que esses novos poemas assumem e levam ao mais alto grau: de que o abismo tome a língua a ponto de o naufrágio ser completo. Mas é esse risco que é preciso correr, para que se roce o limite da língua e do compreensível, fazendo saltar possibilidades de sentidos realmente novos. É esse o método da exaustão.
Um dos procedimentos mais usados por Manoel nesta direção é o da citação, colagem ou intertextualidade. Essa poesia se faz de muitas conversas e vozes, impossíveis de serem totalmente mapeadas. Trata-se de um livro de encontros, expressos em vozes díspares, colhidas tanto em conversas do dia-a-dia, quanto de autores os mais diversos, Benjamin, Blanchot, Galileu, Leonardo da Vinci, Pasolini, Joaquim Cardozo ou Belchior, chegando às de colegas de geração, ou à escrita a quatro mãos — caso de poema de Carlos Augusto Lima, "Sandra Bullock passeia pelo espaço", reescrito por Manoel Ricardo e apresentado nas duas versões.
Daí não ser casual a inspiração que, vinda de lugares tão diversos, surja aqui de um campo como a matemática, a geometria. Esse "método da exaustão" é encontrado nos escritos do matemático italiano Beppo Levi sobre a geometria euclidiana. E, não por acaso, a relação se estende aqui para outro Euclides, o da Cunha, presente em epígrafes de duas sessões do livro. De uma delas, vem a expressão "direito do roubo", que nomeia uma das sessões e expressa esse gesto de devoração do outro, como diria Oswald de Andrade. O roubo e o desvio como gestos potentes dessa escrita.
Como se vê, não estamos diante de um livro trivial, o que faz de Método da exaustão um livro mais do que necessário. No presente estado de esgotamento, perguntamo-nos como caminhar apesar desse cansaço, que arrisca nos paralisar. Em resposta a ele, Manoel nos devolve a exaustão como método: exaurir as séries até que emerja uma nova saída. Lembro-me do conceito de esgotamento, trabalhado por Gilles Deleuze ao se referir à obra de Samuel Beckett. Esgotar como um gesto sem o qual não há criação: é preciso ir até o ponto do esgotamento; esgotar o possível para que o inédito venha à tona. Explorar o impossível para que dele saltem novas imagens que nos deem outros possíveis: "o impossível ainda/ existe, transparência/ e esperança política da/ água elemento infinito/ e finito".
Na contracapa: Sempre houve recomeços, e a história, afinal, é sempre mais a história de cada um de nós — de quem escreve e de quem lê, de quem olha o mundo e subitamente cai em si. Este livro tem disso consciência, e transforma-se assim, sem disso fazer uma estratégia premeditada, numa arma (velha questão: a poesia é uma arma?), num libelo acusatório more poetico, em registo de escrita muito próprio. Sem meu, sem eu, numa língua que, como a de Maria Gabriela Llansol, "perdeu definitivamente o possessivo" — pondo o objecto à mostra, simplesmente expondo o corpo de delito deste tempo que nos coube viver. [João Barrento]
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O livro: Manoel Ricardo de Lima. O método da exaustão.
Rio de Janeiro: Garupa, 2020, 196 págs., R$ 50,00
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dezembro, 2020
Annita Costa Malufe é poeta, autora de Um caderno para coisas práticas (2016), entre outros; é professora da PUC-SP, na pós-graduação em Literatura e Crítica Literária, e pesquisadora CNPq.
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