Azuis

 

 

Onde os azuis

Prometidos

Onde os precipícios de luz

Adivinhados

Nas linhas das mãos?

E do prazer pressentido

O que dizer?

Serão possíveis

Os azuis

Ensaiados

No toque absorto

Da longa espera?

 

 

 

 

 

 

 

Espanto

 

 

Na ausência me vens te toco

Te sinto

Nos amamos

Com o sempre mesmo espanto.

Se esse amor sempre foi

Como pude eu

Existir antes?

 

 

 

 

 

 

O Hóspede

 

 

Mora em minha casa

um poeta louco

cansado de excessos.

Nos seus desvarios

me fala de aventuras e de sonhos.

Em momentos de lucidez

descreve territórios

em que já viveu.

Mora em minha casa

um poeta velho

exausto de eternidade.

Em sua loucura

cultiva canteiros

de girassóis e miosótis

e os esmaga com fúria

nos momentos de dor.

Toda luz o cega

fazendo-o chorar.

De vez em quando

ele me toma nos braços

e dançamos noites seguidas:

ele embriagado pelos escuros

e eu fascinada pela embriaguez.

Mora em minha casa

um poeta rude

que rasga com as unhas sujas

os versos recém-nascidos.

De vez em quando

com as mãos crestadas pelo sol

ele me oferta o gosto do sal

trazido do mar do norte.

Em sua pele cortada pelos ventos do ártico

vê-se rios e fiordes.

Mora em minha casa

um poeta triste

como um menino órfão

a me exigir carícias

a cobrar afetos tantos.

Vive em mim

um poeta!

E eu o protejo.

 

 

 

 

 

 

Devolução

 

 

Devolve-me à infância

Arranca das retinas

As cicatrizes riscadas pela dor

E da minha pele

As falsas estradas

Percorridas pelo amor

Devolve-me à infância

Aos delírios e quimeras

Que o tempo me roubou

 

 

 

 

 

 

Poema Ingênuo

 

 

Amo-te com desvelo tanto

Que nem às palavras

Revelo teu encanto.

Amo-te em silêncio

Resignadamente

Com quisera

Que todo amor

Assim o fosse.

Sonho-te um querer

Terno e doce

Quase uma prece

E ao sonhar-te

Minha alma nua

Se enternece

 

 

 

 

 

 

Platitudes

 

 

Diz-me

tu que sabes

das cousas

como drenar

a ternura

que verte

incessantemente

dos poros?

Como armazenar

a esperança

que se desnuda

ante as manhãs?

Como ativar

um coração

híbrido

que naufragou?

Ah! Diz-me tu

que sabes das cousas.

 

 

 

 

 

 

Memória da sede

 

 

Tua é a memória da sede

A urgência das águas

Eu sou meus poros oceânicos

Povoados por corais e algas.

Vem, mergulha!

Refugia-te nos abismos escuros

Onde arraias repousam sonolentas

E cardumes deslizam invisíveis.

Vem, naufraga em mim.

 

 

 

 

 

 

Nudez

 

 

ela foi se despindo aos poucos. Primeiro as

lágrimas, os risos, os silêncios. Despenteou os

sonhos; alisou as rugas; desabotoou os desejos.

Caminhou lentamente sobre a pele nua e desatou

toda a dor.

 

 

 

 

 

 

Fidelidade

 

 

Tu me possuis

Como se eu te pertencesse

Como o cão

Reconhece o dono

Eu me rendo ao teu toque

Parte tua.

Como a rocha cede

à insistência da água

Eu te sigo submissa

Pelos caminhos que traças

Em minha pele.

Com que intimidade

me penetras

em busca de tua alma.

 

 

 

 

 

 

Infinitudes

 

 

Esse amor sabe-me à eternidade

Feito de infinitudes

Intimida a morte

Para que eu o teça

Diariamente

Com os fiapos de alegria.

 

Esse amor sabe-me à escuridão

Feito de abandonos

Pinta de silêncio as manhãs

Semeia nas noites

Esperas

E empresta-me libélulas

Para enganar a tristeza.

 

Esse amor sabe-me à ilusão

Feito de desencantos

Quebra-me as asas

Com golpes de orvalho

Dá-me estrelas sem pontas

E luas em pleno dia.

 

Esse amor sabe-me a alumbramento

Feito de desassombros

Desenha-me na pele

Miçangas de afeto

E borda em minha alma

Mapas estelares.

 

 

 

 

 

 

Fantasias

 

 

Guardo em mim

Uma colcha de esperas

Um querer feito de silêncios

alimentado de orvalhos

Guardo nos bolsos

Retalhos de manhãs

Que recolho

Na vã ilusão

De viver um dia

Carrego na alma

Palavras inaudíveis

Que talvez

Nunca sejam ditas

Trago nas mãos

Gestos tão ternos

Impossíveis de serem traduzidos

 

 

 

 

 

 

Impressões

 

 

 

Estou de passagem

Tu sabes

Estás de passagem

Eu sei

Deixa que eu grave

Em minhas digitais

A tua travessia

Ou

Deixa que eu grave

minhas digitais

em tua travessia.

Tanto faz.

 

 

 

 

 

 

Quimeras

 

 

Saí a roubar madrugadas

de insanos passeios

voltei

e te trouxe

poções de orvalho

registros deixados

por aves de arribação

De tanto ir

fiquei mais só

De cada partida

Guardei

sonhos mal dormidos

Lágrimas natimortas

Ainda assim

nunca me pudeste ver

Estavas sempre além

Trazias os olhos roubados

por quinquilharias

Tinhas a alma

Viajante de quimeras.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Miriam Leite da Costa Portela nasceu em Florianópolis, Santa Catarina. Formou-se em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo, em 1976. Trabalhou muitos anos em televisão e colaborou com jornais e revistas. Aos nove anos, decidiu que viveria para escrever. Aos 13, virou poeta. E assim foi, até 1998, quando, sem jamais abandonar os poemas, incorporou à sua produção histórias infantis e juvenis. Publicou dois livros de poesia pela Editora da Universidade de Santa Catarina: Continente possuído (1986) e No fundo dos olhos (1991); publicou outro, pela Massao Ohno Editora, Doces rios do medo (1989). Em 2002, lançou seu quarto livro de poesia: Nos mares de Vênus, pela Editora Terceiro Nome. Em 1998, lançou seu primeiro livro infantil: Alguém muito especial, pela Editora Moderna, atualmente, na terceira edição. Em 2001, outro livro infantil, Onde andará Alegria?, hoje na segunda edição, pela mesma editora. Um novo livro para crianças, Alice passou por aqui, foi editado também pela Terceiro Nome, em 2007. Histórias do Encantado, livro infanto-juvenil sobre mitologia e seres imaginários, foi publicado em 2007 pela Editora Moderna. Com mais de 25 livros infantis publicados, em 2019, lança Relato de corpos sutis, prosa poética, pela Editora Laranja Original e Enquanto estou viva, in extremis, pela Deconcertos Editora.