O Sr. Hostil acordou com ótimo humor, botou a cara para fora da janela e distribuiu bons-dias para todos. Fazia tempo que não se sentia tão bem consigo e com os outros. Com o mundo também, diga-se de passagem.
Eis aí uma expressão de que ele fazia uso constantemente. O Brasil, senhores, está uma merda. Eles acabaram com o Brasil. Faliram, superfaturaram, roubaram. Mentiram, diga-se de passagem...
Na ida, de casa até a padaria, foram dezenas de cumprimentos, risinhos, olhares cúmplices. E alguns digas de passagem imaginários...
Os pães eram mais que uma mistura de trigo, fermento, água e força de trabalho. Eram os maravilhosos pães nossos de cada dia. Os cereais estavam devidamente separados, trigo de um lado, joio do outro. Separados, sim, mas convivendo em harmonia.
De tão jovial, resolveu tomar o desjejum ali mesmo, decisão solene que deixou João da Padaria desconfiado, mas satisfeito. Pão amanteigado na chapa, pingado pelando e uns dedos de boa prosa. Quem resiste?
Uai, Sr. Hostil, de repente, resolveu tomar café no meu humilde estabelecimento?
Que milagre é esse? Me conta, estou curioso, a satisfação é minha!
Pois é, diga-se de passagem... acordei bem disposto, feliz da vida, cheio de boas intenções nesta manhã. Mas quem faz as perguntas aqui sou eu!
O comerciante fincou o pé, deu uma segurada na saliva, com marcação tão visível, que quase engasga. E esperou o cliente saborear o último pedaço de pão francês.
Como vão as coisas do lado de dentro do balcão? Me conta, sou todos ouvidos. E essa crise, homem de Deus? Aonde vamos chegar com tudo isso? Decerto ao fundo do poço...
Decerto e digamos apareciam também com frequência nas conversas do Sr. Hostil. Conversa é maneira de dizer, que aquilo estava mais para discurso cheio de segundas e terceiras intenções...
Dizer o quê? Tudo tão complicado e pelo olho da cara. Muito difícil tocar negócio no Brasil, empreender, gerar empregos e pagar impostos.
Decerto, meu amigo, muito complicado. Mas falta, principalmente, compromisso da parte da classe política. Esses senhores não dão a mínima para a parcela que sobrevive com o mínimo do mínimo e, por isso, vai morrendo à míngua. Não é verdade?
Nem me diga. O trigo acaba de sofrer novo aumento. Infelizmente, o trigo é importado da Argentina, do Chile... Tudo atrelado ao dólar. Já viu, né?
Essa é mesmo, digamos, uma velha ladainha. Por que, de uma vez por todas, o governo não incentiva o cultivo do trigo aqui mesmo? Por que essa obsessão pela soja, pelo frango e pelo algodão?
(risos) Pois não é? Agronegócio, Sr. Hostil! Tudo agora é agronegócio. Viu aquele comercial na Globo? Agro é pop. Está na...
(interferindo). Sim, diga-se de passagem, trigo também é agro. O petróleo também. Mas o preço da gasolina anda nas alturas.
Com a Petrobras produzindo milhões de barris/dia, como pão quente saindo, aos magotes, da boca do forno elétrico...
Meu bom João, nem me fale em energia elétrica. Uma indecência de causar apagão num país de grande potencial hidrelétrico...
Alto lá. Eu é que deveria dizer nem me fale em energia elétrica. Sou dono de padaria, confeitaria, 120 volts...
Por isso precisamos fazer alguma coisa, irmão, qualquer coisa. Brasileiros de bem que somos, não dá mais para ficar esperando o pior acontecer. E vai acontecer. Questão de tempo. Eles estão destruindo o país, as instituições, a família, os bons costumes.
O Sr. disse aí uma coisa com a qual sou obrigado a concordar: precisamos fazer alguma coisa. Urgentemente.
O que me tranquiliza, amigo João, é saber que você é um dos nossos. Como tal, não tolera essa bagunça, essa sem-vergonhice, essa falta de caráter.
Nem eu nem ninguém. Ou existe alguém capaz de apoiar essa corrupção que tomou conta da administração pública e está levando o país para o fundo do poço? Acredito que não.
Ledo e Ivo engano seu... (raramente ele dizia essa expressão, até porque detestava poetas). Sempre tem uns malucos da igualha deles prontos para apoiar essa imoralidade. Filhos duma égua! Perdão, amigo. Filhos duma mãe! Mandinga, perdida e pagã!
Pois é, a fila cresceu, veja só, e a obrigação me chama. Fique à vontade. Volte sempre.
Nesse momento ocorreu uma imagem feliz na cabeça do Sr. Hostil: a fila de clientes da padaria crescendo... Senhores, senhoras, crianças, todos na fila para comprar pão, leite e outras delícias.
Agora outra imagem se formava na cabecinha do ilustre cliente de João da Padaria: o joio condenado ao exílio, para todo o sempre, de preferência em Cuba. Ou, quem sabe, na Venezuela. Isso mesmo. Bem feito. Filho da puta.
Pagou a conta e se dirigiu à saída, gente, carros, vaivém, enfim, uma beleza de dia. Tudo e todos com gostinho de pão com manteiga e café com leite estampado na cara. Sem joio, pelo amor de Deus. Que joio é uma desgraça. Xô, praga!
Continuava seguindo em direção a casa, confortável e triste, onde morava sozinho havia anos. Sozinho, não, com Nossa Senhora. Com Coiso, também, o bichano.
E se Deus lhe enviasse a tão esperada Sra. Hóstia? Seria muito bom, aliás, seria excelente. Bela, recatada e do lar doce lar. Por que não? Seria pedir demais?
Com quem poderia formar, digamos, uma bela hostilidade. Querer não era pecado e os frutos dessa bênção seriam coisinhas lindas do papai e da mamãe.
março, 2020
Almir Zarfeg — também conhecido como A. Zarfeg ou simplesmente AZ — é um poeta e jornalista radicado em Teixeira de Freitas/BA. Iniciou-se na literatura em 1991, com o livro de poemas Água Preta, atualmente, na 4ª edição. Depois publicou mais livros de poemas, crônicas, contos, novela, infanto-juvenil e reportagem. Em 2017, foi homenageado pela União Baiana de Escritores (UBESC) com o título de "Personalidade de Importância Cultural". Em 2018, recebeu o "Primeiro Prêmio Absoluto" pela obra poética inédita A Nuvem, concedido pela Accademia Internazionale Il Convivio. A convite da Lura Editorial, organizou o livro de poemas Nós — poesias para tardes ensolaradas, lançado durante a XIX Bienal Internacional do Livro do Rio, em 2019.
Mais Almir Zarfeg na Germina
> Contos/Poesia
> Duetos
> Poemas anexados