Um sonho
quero ir embora
quero viajar
quero mudar para 42
o número do meu sapato
e aumentar meus passos.
Simplicidade
na minha infância solitária
fingia-me sábia como uma cigana
e brincava de prever meu futuro de heroína
então girava, girava, girava
feito pomba rainha gira
até tropeçar
nas sete saias imaginárias
que me defendia
de cair na realidade
do chão que eu esfregava
com amabilidade e delicadeza
Mulambos que herdei de Maria
Se a vida rouba sorrisos
isso explica bem a minha cara séria
com o poder de uma mulher invisível
tenho a riqueza do desapego
nunca cobicei o ouro de Oxum
convicta de que o dourado não me cai tão bem
quanto a liberdade dos fios de prata nos cabelos
Perecível
Toda mulher se retira um pouco a cada vez que se torna mãe
Mãe é uma mulher expulsa de si mesma
Toda mãe é encruzilhada
dúvida, medo, sobrecarga, pressão
O mundo íntimo de uma mãe é um pavor constante
Mãe é imperfeição, angústia, culpa, remorso
Quando as filhas se tornam mães, descobrem — ainda que tardiamente —
que toda mãe estraga em determinado grau a vida dos seus filhos e filhas
Toda mãe é alvo de ira
Mãe é ofensa
culpada e condenada
eterna
um grande erro
que não cabe dentro de nenhum perdão
As mulheres que não almejam a maternidade
se tornam cada vez mais mulheres e independentes
mas nunca libertas da mãe
que um dia elas reconhecerão
no próprio rosto diante do espelho
As mães pairam, emergem, vem à tona
Mãe é um problema biológico
Não há como escapar da carne da mãe
Mãe é a escuridão interna dos seus filhos e filhas
Toda mãe é idealizada
nenhuma é o resultado esperado
elas se transformam
viram peso
se tornam inúteis
Toda mãe é perecível
Bens guardados
Para que as palavras não tomem o lugar do significado
guardo neste armário sem portas e sem fundo
os deslimites da minha riqueza
o universo azul nos olhos do céu
o brilho de uma estrela no mar
o acaso e a chuva passageira
a flor e o cheiro da laranjeira
a miniatura de uma saudade
o palco, a arte e uma jubarte
um beijo e dois olhares
o silêncio e um quilate de besteira
o espaço e meio metro de abraço
os pequenos pés da alegria gêmea
vinte e quatro patas de afeto
três gatos e três cadelas
a felicidade da minha criança
e uma perna de esperança
no sorriso do homem o menino
a música, o canto, a poesia de Manoel
a delicadeza e o amor em liberdade
os favos de mel e a coragem de um ratel
a personagem concebida e um enigma
quem eu sou de verdade.
Le Grand Mensonge
Le Grand Mensonge
o tolo e austero rebotalho
por falta de morte é uma não coisa que dura
resumido desde o ontem
já deu mais sessenta voltas
em torno da cicatriz arredondada
na linha média do abdome
de misérias várias usa máscara de ouro
e refugia-se entre o chão e o assoalho
helminto faminto
triturou vidas e almas
agora rói os próprios ossos
e mal respira
Sete ervas de proteção
que a espada de são Jorge
me proteja da inveja
disfarçada de estima
dos olhos insignificantes
dessa primitiva e vaidosa traça
bem alimentada com migalhas
de elogios sem serventia
querendo coabitar a minha casa
Pé de pato mangalô trêis veiz
alecrim, arruda, guiné
manjericão, pimenteira
comigo ninguém pode.
Ninguém
ninguém sabe
dos abismos em nós
quando virá a tormenta
da dor no coração de um homem
das saudades que já não habitam as lembranças
ninguém sabe
da aflição da mulher de Lot
do desespero de Orfeu
da onipotência divina
do perigo de olhar para trás
ninguém sabe
quem arrancou a flor de cacto do nosso jardim
porque partimos ou onde chegamos
por qual motivo se apaga uma cidade
com quantas interrogações se indaga uma vida?
— ninguém sabe
Suicida
tonto
despencou
do vigésimo primeiro andar
fitando o abismo
o amor sangrou
estatelado na superfície
Soltura
Fiquei doida, solta
dessas que ninguém consegue atar em poste
que ninguém consegue atar
que ninguém consegue.
Partida
sem trilha sonora
sem abraços de despedida
sem beijos técnicos
sem ar novelesco
sem final feliz
sem final nenhum
algumas histórias são assim
Transbordo
vivo à margem
onde a vida vaza
sangro
Precaução
Partiu
antes do amor
desgastar
Contrato
Permaneceram unidos
pela insegurança afetiva
dezembro, 2020
Arlene Lopes é escritora, compositora letrista e produtora executiva em projetos culturais. Nasceu na cidade de Jacobina, Chapada Diamantina, Bahia, onde viveu até a adolescência e encontrou o caminho do Sul no início de 1990. Foi no Sul que surgiu a arte da escrita como forma de resgate das sensações vividas e de afirmação de identidade, tanto cultural como pessoal. Em sua trajetória poética e literária, teve muitas obras integrando movimentos coletivos em revistas virtuais, blogues, livros de antologias poéticas e coletâneas do universo literário feminino. Alguns de seus textos foram incorporados na peça teatral A mulher do padeiro uma adaptação de La femme du boulanger, do francês Marcel Pagnol. Em 2016, após 26 anos, retornou à Bahia para um novo caminho ao lado do compositor e músico gaúcho Santiago Neto. Em 2017, radicaram-se na cidade de Itacaré, na costa do cacau, litoral sul baiano, onde criaram o espaço cultural independente "A Sonora Casa Santiago de Arlene", onde desenvolvem várias ações culturais como o projeto "Quinta no Quintal" — encontros de música e poesia — e programas de Residências Artísticas com artistas de outros lugares do Brasil e do mundo que participam das atividades da casa como contrapartida. Há, neste espaço, uma escola de música com programas de inclusão e acesso à educação musical, promovendo também o incentivo à leitura e à escrita, além de oficinas de artes para crianças e adolescentes da comunidade.
Mais Arlene Lopes na Germina
> Poesia