paisagem matinal
o pardal beija o meio-fio
e meu sorriso é opaco
as grades não nos protegem da dor
dividem a cidade
em quadrados
mal distribuídos
os velhos arabescos construídos
em ferro fundido
e superpostos em raras janelas e pórticos
não mais enfeitam
vigiam
e espiam
a rua que não dorme
o tom roto da parede
a cor do paralelepípedo
e o passeio entapetado pelas
pétalas do flamboyant
: festa para o ciscar dos cães
um pé de jasmim persiste
imprensado
entre o poste
e a banca de revista
eu paro
e me aquieto
neste batente esquecido
cercada por oitis
que deitam seu amarelo na calçada
e por cheiros teimosos de ontem
o sinal abre
o carro parte
a moto range
a bicicleta aponta
o cachorro late
o pardal voa
participo nessa hora
de um jogo de montar
o traçado das edificações
define o dialeto do medo
e a resistência das flores
assombra a melancolia
passeio pelas ruas do espinheiro
quero
pelos olhos da cidade
apreciar papoulas
abertas de par em par
para deleite dos cãezinhos
e colares de pérola de maiorca
(a pressa atropela a solidão do homem
que vende pipoca na esquina
o vento do carro
levanta a saia da moça lilás
para felicidade dos operários
já libertos do andaime
e da rigidez das horas)
quero
pelos olhos da cidade
sentir cheiro de pão e de fuligem
de brisa e de cimento
e testemunhar o preciso instante
em que o beija-flor afaga
a papoula aberta de par em par
constatações
che ainda habita em mim
e a saudade fala espanhol
divido a mesa com poetas
e o prato natural
fere a retina da guararapes
esta voz de microfone
zoa na tua boca
e o ouvido traz notícias do iraque
no coração há morte
quero saber do miró
do extermínio dos meninos
e de como andará o lixão da muribeca
na cidade há morte
o desenho é de homem
e de mulher
o rapaz desce a ponte
grávido de uma moça só
o recife é desorelhado
e olha a multidão sem ouvido
quando paro a poesia desce
em garfadas para o porão
boia um prato de lentilhas no capibaribe
nesta hora há morte
e ferrolhos na rua do sol
céu de confeiteiro
uma fatia de céu
é dada
nesta noite de maio
quinhão que cabe ao homem
que da janela espera
a urbe apita
e o calor
se faz bruma e precipício
uma fatia de céu
é dada
aos amantes da varanda
quinhão que cabe ao amor
em tempos de luas magras
rainha dos degredados
salve-me rainha
pois a vida não é doce
nem misericordiosa
hoje só tem panela
e um pouco de maçunim
o marido se foi para as bandas
do beberibe e vende caranguejo
na feira de peixinhos
salve-me rainha
antes que os de eva morram
sem direito a maçãs ou coisa assim
o gás acabou
os jambeiros do cemitério de santo amaro
desde ontem não safrejam
e minha filha menstruada
não pode frequentar o ponto hoje à noite
salve-me rainha
e desterre
esta vontade de incendiar a vida
e a dor que assola as mãos
empatia
o bem-te-vi que canta na minha janela
sabe do concreto
muros
armadilhas
e arames
o bem-te-vi que canta na minha janela
tem a absoluta certeza
do espaço nada
dessa cidade que me afoga
em margens de incertezas
o bem-te-vi que canta
na minúscula janela do banheiro
sabe que eu
sentada neste espaço 1x2
tenho uma ausência de ninho
tão grande quanto a dele
passos
a rigidez das tuas botas
espanta embuás
lagartas
formigas
e marca o chão
longe da flor
a rigidez das tuas botas
conta passos
e me permite ver
a nudez deste parque
encravado
no centro de uma cidadela
que se esvai
o oriente da cidade
entre pombos e putas construí poemas
a cidade era lúcida
a radiola de fichas juntava nossas coxas
e os retalhos eram enfeites de salão
entre pombos e putas construí poemas
a cidade era música
cama de loucos e as mulheres livres
para o copo para o corpo para as ruas
entre pombos e putas construí poemas
a cidade era à prova de balas
a ponte era à prova de sonhos
a dor visitava o capibaribe
entre putas e pombos construí poemas
tradução
a vida
que de mim decifra-se
é pálida
como barro de parede do sertão
duro é o meu nome
prefixo da morte
a vida
que de mim decifra-se
é pedra
como gesso das jazidas do sertão
duro é o sobrenome
que me acompanha
desde o nascimento
a vida
que de mim decifra-se
é árida
para disfarçar a ausência do nada
que teima em dourar meus olhos
a vida
que de mim decifra-se
é volátil
como a palavra posta na tarde
como a letra escrita no fogo
como a voz dita ao vento
a vida
que em mim decifra-se
é viés de lua cheia vista entre nuvens
é corte de relâmpago em tarde posta
é trovão atrás da porta em tempestade
a vida que em mim decifra-se é sertão
em romaria
os meninos da minha cidade
este meu povo preto
quase preto
um ou outro branco
que vaga nas ruas da minha cidade
com chapéu e trabalho nas mãos
quando passa por mim
baixa os olhos
como para não mais ver o atlântico
só as crianças ainda olham
às vezes tenso às vezes bravo
às vezes doce às vezes safo
quase sempre baço
como olhos de despedida
mas olham insistentemente olham
um olhar que fere a boca
estanca a íris
paralisa a doçura
e desorganiza o dia
às vezes choram às vezes gritam
às vezes matam
mas olham
desesperadamente olham
e contam as histórias dos becos
e praças da minha cidade
os flamboyants do capibaribe
fia o rio o flamboyant
água a fora a flor ponteia
flora a face da aurora
franze a testa o transeunte
afia a plaina o carpinteiro
freme o corpo a moça farta
fia o rio o flamboyant
sombra a água a flor faceira
ferve a luz vinda das ruas
o sol posto atrai fantasmas
o espelho-d’água bebe as casas
flanam o rio e o flamboyant
mapas
quando o tempo do branco chegar
não terei gaiolas
gatos siameses
ou cachorro poodle
com coleira de marfim
com certeza
direi poemas indecentes
falarei de revoluções inacabadas
e de lugares que mapeei com minha alma
[Poemas do livro Gris, 2018]
dezembro, 2020
Cida Pedrosa nasceu em Bodocó, Sertão do Araripe Pernambucano, em 1963. Foi uma das coordenadoras do Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco na década de 80 e daí vem seu gosto e experiência com a récita. Publicou dez livros de poemas, sendo os mais recentes Estesia (2020); Solo para Vialejo (2019, vencedor do Prêmio Jabuti 2020, Livro do Ano e Livro de Poesia); Gris (2018); Claranã (2015); Miúdos (2011) e As filhas de Lilith (2009). Tem participação em antologias de poemas e contos no Brasil e no exterior. Alguns de seus livros foram selecionados pelos prêmios Portugal Telecom e Prêmio Oceanos de Literatura. Atualmente vem se dedicando a falar sobre literatura no canal Fresta [youtube.com/cidapedrosa]. Mais em instagram.com/cidapedrosa65 e facebook.com/cidapedrosa2012.
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