©caroline hummels
 
 
 
 
 
 
 

coisas de dentro

 

 

Quando eu tinha onze anos ganhei o meu primeiro sutiã.

Azul-claro e alcochoado.

Dessas coisas que as meninas gostam quando têm onze anos.

Mamãe me disse que os sutiãs serviam para proteger os seios.

Só não me disse de quê.

Na porta de casa, levantei a blusa e mostrei ao meu tio padre

como era lindo e azul-claro e alcochoado o meu primeiro sutiã.

Som e fúria, ele me disse que Deus fez as coisas de fora e as coisas

de dentro, e que as de dentro foram feitas para ficar escondidas.

 

Da primeira vez que eu transei, não tirei o sutiã. Nem da segunda.

Em todas as outras apaguei a luz.

A psicóloga das sessões de quarta-feira quer entender por que eu não

consigo falar digerir vomitar as coisas de dentro. Nem por que eu não gosto

de azul.

Ela não sabe da repressão da boca de um padre.

Não sabe que Deus é um sacana.

 

 

 

 

 

 

bunker

 

 

conheço cada canto desta carapaça reforçada que me serve de bunker

a cama onde as marcas dos corpos é lavada pela enxurrada sem ruído

dos olhos, o banheiro onde a pia devora o vômito das ausências permanentes

a sala onde os disfarces aprendem a agradar a plateia que quer regras e risos.

 

conheço essa cadela branca que me olha com fome e não consigo dizer a ela

que o que ela quer não é possível.

na divisão das coisas que ficaram comigo, neste aqui dentro sem janelas

tenho pão, e carne, e uns temperos ácidos

 

afetos e chaves, não.

 

 

 

 

 

 

eutanásia

 

 

não é a dor. a dor eu sei.

o aperto o peso a ânsia

a água empoçada nos olhos

eu sei. não é a dor. a dor eu vejo.

cheiro lambo chupo

com a dor eu trepo

é com o amor que eu não me ajeito

esse altar tão alto. tão ar

e eu tão abissal

peixe de profundezas. de fendas.

desprovida de luz de som de oxigênio.

é com a vida que eu não me ajeito.

não me acerto com coisa grande

demais (amor. adeus)

não, não é a dor

a dor não mente. não engana.

é o amor que desliga os aparelhos.

 

 

 

 

 

 

Entre

 

 

Entre. A porta está só encostada. Não deixei aberta porque preciso de um vestígio

de decência — foi assim que aprendi sobre o pudor

 

Algum afastamento mínimo entre mim e esses seus olhos de incêndio e essas suas mãos

que mapeiam e essa sua mente descarada. Um de nós há de ser entrega reticente

 

Entre. Limpe os pés no tapete da porta. Não quero pegadas de lama no chão

recém-encerado. E não fique aí parado na soleira, essa palavra imponente

 

que eu vinha guardando para dizer em alguma ocasião especial. Hoje é especial.

Você está aqui. Encerram-se as provocações do talvez.

 

Vamos, finalmente. Ser. Nos tornar. Explodir. Mesmo que não saibamos

bem o que todo esse tesão fará com o sentimento.

 

É o preço.

 

Pressa. De converter pelo delírio os segundos, os milímetros que nos separam

ainda em corpo e corpo. De banir a permissão do recuo.

 

De ser pecado. Esse contrato original firmado por todas as carnes que arquejam.

De ser consentimento.

 

Esse cimento de infernos.

 

 

 

 

 

 

lama sobre tela

 

 

macerado pela boca do tempo

o graveto seco das décadas

não sustenta mais ninhos.

 

os olhos expressionistas de Van Gogh

devoram a indigência

mais que as batatas.

 

 

 

 

 

 

funeral

 

 

limpei com sanitária os teus pedaços

nas paredes nas gavetas na vagina

 

escarrei na bacia de plástico azul a saliva

viciada no teu gosto de tabaco e álcool

 

como se cuspir verdades não fosse um jeito

de esconder mentiras

 

passei a bucha da pia nas vasilhas

nos pratos, nos talheres

 

nos bicos dos seios

em cada lugar onde você comeu

 

lavei um copo. bebi o teu sêmen. caminhei descalça

sobre o teu sangue acumulado nas frestas dos azulejos

 

prenhe da tua morte

 

 

 

 

 

 

expressionismo

 

 

Fecho a janela aos quinze andares de remorso, tempo demais

para pensar no corpo se espatifando sobre o asfalto. No parapeito,

 

enfileirados, preferenciais, brancos, comprimidos sem cheiro

(formigas perfiladas), dúzia de causas e efeitos colaterais:

 

choro vômito frêmito arrependimento — esse voltar ao vício

de sobremorrer a conta-gotas.

 

Na lata idosa sob o tanque, a cicuta líquida dos ratos em oferta

em modo de espera.

 

Um trago sem gelo, um rio de entranhas caudalosas, pasta ácida

reduzindo à metade a moeda do barqueiro.

Meia a paga, meia a travessia. E o Estige é fundo.

 

Enfim, o falo de metal francês da Laguiole afiada, que não hesita

e tatua nos pulsos um mapa de Paris.

 

Das veias acalmadas, um Sena vermelho-expressionista

jorra.

 

 

 

 

 

 

natureza morta

 

 

tenho cantos prediletos para me esconder das loucas

que me moram, para me deslembrar dos eus-demônios, máscaras

de kabuki que comem minhas carnes com pauzinhos japoneses usados

meus medos-inquilinos foram subornados por girassóis de plástico

amarelos como o riso o roupão o peito da coruja da sorte que namora

o pássaro preto o soalho a parede rachada a garrafa de licor

alcoólatra que se bebeu até a penúltima gota as fotos antigas

em que tudo é história que se conta distorcendo a gosto

não há rotas para fora, só as de colisão

e as coisas de dentro fizeram acordo com uma rotina apática

panelas sem tampa, filtro de barro, louça na pia, roupa no varal, tábua

de passar a vida a limpo

na estante, um embornal de ácida emergência : hilda, leminski, bukowski,

rimbaud, para aplacar condescendências

 

na cômoda, um telefone desbotado

para emprestar à solidão nos dias em que ela não me suporta

 

 

 

 

 

 

preservar

 

 

eu não te chamarei criança, porque à língua terá sido

recusado pronunciar perfeição. não serei verbo em voz

que do sibilar dos sussurros brotam sinapses nos vermes

que rastejam, em excitada sordidez, na lama que defecam.

afastarei da tua luz de lua cheia a larva-homem que te fareja

a formosura

explodirei as bússolas delatoras e pintarei de piche as janelas

do meu abraço, para te fazer eclipse.

 

 

 

 

 

 

cerco de Bashar, cerco de Alá

 

 

Não são mais olhos esses que já não conseguem esvair-se

em águas, nem soltam gritos essas gargantas onde se assenta uma revolta

dominada e um sangue imundo como os vinhos das mulheres europeias

que conheci em Damasco: enjoativos, condescendentes, com seu bouquet

adocicado.

Extirpei esses olhos com as duas facas que Alá me deu a manejar

em seu nome, em nome de Bashar.

Com a de aço cortei ontem vinte e sete homens: pais, maridos, bebês.

Com a de carne rompi ontem vinte e duas mulheres, esposas, virgens,

meninas.

E percebi que urinam e defecam, mesmo sem vida, os infiéis

enquanto eu me banho em lavanda e gozo e ofereço

ao Profeta e a Bashar

obediência e morte.

 

 

 

 

 

 

desadestradas

 

 

as fêmeas seculares que sugamos o leite

das tetas da obediência

aprendemos a cuspir

o alimento-ópio

 

as fêmeas seculares que recebemos a vergonha

das vaginas da negação

aprendemos a desoprimir

o gozo

 

as fêmeas blasfemas que optamos pela resistência

das pegadas sem freio

aprendemos a amplitude

do não

 

 

 

 

 

 

refeitura

 

 

Na pele o mapa de todos os riscos, talhe e cerzido

de cordilheiras abismos caminhos por areias movediças

 

Sob o céu invariável de raios — renda negra de bilro

perdas medos preces descompensadas entre aleluias e réquiens

 

Nas pontas dos dedos, lábios úmidos que gemem entrecortadamente o prazer

solitário que compra-explora-vende, ao preço abusador das violências,

 

cartel de sangue e negação. Os pés sobrepostos aos moldes das pegadas

solitárias de tantas lobas-alfa, em bordado de ponto de cruz

 

Olhos ávidos, as sentinelas das muralhas derrubadas por fêmeas-ancestrais

esparramam alertas : Vigiai e gozai.

 

O paradigma do sempre corrompido.

Dos estilhaços do talvez, em rédea livre,

 

reinvento-me.

 

 

 

março, 2020

 

 

Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (contos, 2020); Tudo que morde pede socorro (romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (romance, 2017) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (contos, 2015) — semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (contos, 2014); e Do todo que me cerca (crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.

 

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