coisas de dentro
Quando eu tinha onze anos ganhei o meu primeiro sutiã.
Azul-claro e alcochoado.
Dessas coisas que as meninas gostam quando têm onze anos.
Mamãe me disse que os sutiãs serviam para proteger os seios.
Só não me disse de quê.
Na porta de casa, levantei a blusa e mostrei ao meu tio padre
como era lindo e azul-claro e alcochoado o meu primeiro sutiã.
Som e fúria, ele me disse que Deus fez as coisas de fora e as coisas
de dentro, e que as de dentro foram feitas para ficar escondidas.
Da primeira vez que eu transei, não tirei o sutiã. Nem da segunda.
Em todas as outras apaguei a luz.
A psicóloga das sessões de quarta-feira quer entender por que eu não
consigo falar digerir vomitar as coisas de dentro. Nem por que eu não gosto
de azul.
Ela não sabe da repressão da boca de um padre.
Não sabe que Deus é um sacana.
bunker
conheço cada canto desta carapaça reforçada que me serve de bunker
a cama onde as marcas dos corpos é lavada pela enxurrada sem ruído
dos olhos, o banheiro onde a pia devora o vômito das ausências permanentes
a sala onde os disfarces aprendem a agradar a plateia que quer regras e risos.
conheço essa cadela branca que me olha com fome e não consigo dizer a ela
que o que ela quer não é possível.
na divisão das coisas que ficaram comigo, neste aqui dentro sem janelas
tenho pão, e carne, e uns temperos ácidos
afetos e chaves, não.
eutanásia
não é a dor. a dor eu sei.
o aperto o peso a ânsia
a água empoçada nos olhos
eu sei. não é a dor. a dor eu vejo.
cheiro lambo chupo
com a dor eu trepo
é com o amor que eu não me ajeito
esse altar tão alto. tão ar
e eu tão abissal
peixe de profundezas. de fendas.
desprovida de luz de som de oxigênio.
é com a vida que eu não me ajeito.
não me acerto com coisa grande
demais (amor. adeus)
não, não é a dor
a dor não mente. não engana.
é o amor que desliga os aparelhos.
Entre
Entre. A porta está só encostada. Não deixei aberta porque preciso de um vestígio
de decência — foi assim que aprendi sobre o pudor
Algum afastamento mínimo entre mim e esses seus olhos de incêndio e essas suas mãos
que mapeiam e essa sua mente descarada. Um de nós há de ser entrega reticente
Entre. Limpe os pés no tapete da porta. Não quero pegadas de lama no chão
recém-encerado. E não fique aí parado na soleira, essa palavra imponente
que eu vinha guardando para dizer em alguma ocasião especial. Hoje é especial.
Você está aqui. Encerram-se as provocações do talvez.
Vamos, finalmente. Ser. Nos tornar. Explodir. Mesmo que não saibamos
bem o que todo esse tesão fará com o sentimento.
É o preço.
Pressa. De converter pelo delírio os segundos, os milímetros que nos separam
ainda em corpo e corpo. De banir a permissão do recuo.
De ser pecado. Esse contrato original firmado por todas as carnes que arquejam.
De ser consentimento.
Esse cimento de infernos.
lama sobre tela
macerado pela boca do tempo
o graveto seco das décadas
não sustenta mais ninhos.
os olhos expressionistas de Van Gogh
devoram a indigência
mais que as batatas.
funeral
limpei com sanitária os teus pedaços
nas paredes nas gavetas na vagina
escarrei na bacia de plástico azul a saliva
viciada no teu gosto de tabaco e álcool
como se cuspir verdades não fosse um jeito
de esconder mentiras
passei a bucha da pia nas vasilhas
nos pratos, nos talheres
nos bicos dos seios
em cada lugar onde você comeu
lavei um copo. bebi o teu sêmen. caminhei descalça
sobre o teu sangue acumulado nas frestas dos azulejos
prenhe da tua morte
expressionismo
Fecho a janela aos quinze andares de remorso, tempo demais
para pensar no corpo se espatifando sobre o asfalto. No parapeito,
enfileirados, preferenciais, brancos, comprimidos sem cheiro
(formigas perfiladas), dúzia de causas e efeitos colaterais:
choro vômito frêmito arrependimento — esse voltar ao vício
de sobremorrer a conta-gotas.
Na lata idosa sob o tanque, a cicuta líquida dos ratos em oferta
em modo de espera.
Um trago sem gelo, um rio de entranhas caudalosas, pasta ácida
reduzindo à metade a moeda do barqueiro.
Meia a paga, meia a travessia. E o Estige é fundo.
Enfim, o falo de metal francês da Laguiole afiada, que não hesita
e tatua nos pulsos um mapa de Paris.
Das veias acalmadas, um Sena vermelho-expressionista
jorra.
natureza morta
tenho cantos prediletos para me esconder das loucas
que me moram, para me deslembrar dos eus-demônios, máscaras
de kabuki que comem minhas carnes com pauzinhos japoneses usados
meus medos-inquilinos foram subornados por girassóis de plástico
amarelos como o riso o roupão o peito da coruja da sorte que namora
o pássaro preto o soalho a parede rachada a garrafa de licor
alcoólatra que se bebeu até a penúltima gota as fotos antigas
em que tudo é história que se conta distorcendo a gosto
não há rotas para fora, só as de colisão
e as coisas de dentro fizeram acordo com uma rotina apática
panelas sem tampa, filtro de barro, louça na pia, roupa no varal, tábua
de passar a vida a limpo
na estante, um embornal de ácida emergência : hilda, leminski, bukowski,
rimbaud, para aplacar condescendências
na cômoda, um telefone desbotado
para emprestar à solidão nos dias em que ela não me suporta
preservar
eu não te chamarei criança, porque à língua terá sido
recusado pronunciar perfeição. não serei verbo em voz
que do sibilar dos sussurros brotam sinapses nos vermes
que rastejam, em excitada sordidez, na lama que defecam.
afastarei da tua luz de lua cheia a larva-homem que te fareja
a formosura
explodirei as bússolas delatoras e pintarei de piche as janelas
do meu abraço, para te fazer eclipse.
cerco de Bashar, cerco de Alá
Não são mais olhos esses que já não conseguem esvair-se
em águas, nem soltam gritos essas gargantas onde se assenta uma revolta
dominada e um sangue imundo como os vinhos das mulheres europeias
que conheci em Damasco: enjoativos, condescendentes, com seu bouquet
adocicado.
Extirpei esses olhos com as duas facas que Alá me deu a manejar
em seu nome, em nome de Bashar.
Com a de aço cortei ontem vinte e sete homens: pais, maridos, bebês.
Com a de carne rompi ontem vinte e duas mulheres, esposas, virgens,
meninas.
E percebi que urinam e defecam, mesmo sem vida, os infiéis
enquanto eu me banho em lavanda e gozo e ofereço
ao Profeta e a Bashar
obediência e morte.
desadestradas
as fêmeas seculares que sugamos o leite
das tetas da obediência
aprendemos a cuspir
o alimento-ópio
as fêmeas seculares que recebemos a vergonha
das vaginas da negação
aprendemos a desoprimir
o gozo
as fêmeas blasfemas que optamos pela resistência
das pegadas sem freio
aprendemos a amplitude
do não
refeitura
Na pele o mapa de todos os riscos, talhe e cerzido
de cordilheiras abismos caminhos por areias movediças
Sob o céu invariável de raios — renda negra de bilro
perdas medos preces descompensadas entre aleluias e réquiens
Nas pontas dos dedos, lábios úmidos que gemem entrecortadamente o prazer
solitário que compra-explora-vende, ao preço abusador das violências,
cartel de sangue e negação. Os pés sobrepostos aos moldes das pegadas
solitárias de tantas lobas-alfa, em bordado de ponto de cruz
Olhos ávidos, as sentinelas das muralhas derrubadas por fêmeas-ancestrais
esparramam alertas : Vigiai e gozai.
O paradigma do sempre corrompido.
Dos estilhaços do talvez, em rédea livre,
reinvento-me.
março, 2020
Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O sêmen do rinoceronte branco (contos, 2020); Tudo que morde pede socorro (romance, 2019); Exercício de leitura de mulheres loucas (poesia, 2018); Todos os abismos convidam para um mergulho (romance, 2017) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na escuridão não existe cor-de-rosa (contos, 2015) — semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (contos, 2014); e Do todo que me cerca (crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena para pecar em paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.
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