Poesia
PADARIA POÉTICA
enquanto ela faz pão
faço poemas
o pão alimenta o corpo
o poema
a ilusão
de que possa gerar alguma merda
A GRALHA
talvez a vida não valha
uma palha
talvez seja apenas migalhas
que o vento espalha
talvez a lâmina da navalha
que o fio do tempo retalha
talvez uma fornalha
cujo calor ou queima ou falha
talvez uma corja de canalhas
a esperar a morte que lhes valha
talvez seja a calha
por que a chuva, suja, não se espalha
talvez a flor que se orvalha
a lama que logo a enxovalha
talvez o barco que encalha
a mancha que estraga a toalha
talvez o leite que coalha
o cão imundo que se chacoalha
talvez o ferro frio que se malha
o frio metálico que atravessa a malha
talvez a coisa que atrapalha
tudo pelo que tanto se trabalha
talvez o medo que se amealha
a morte e o que ela amortalha
talvez seja a gralha
que na floresta escura gargalha
REDIMENSIONANDO A POESIA
não escreverei mais poemas
agora os imprimirei
(eu
da poesia transmoderna o novo rei)
em impressoras 3D
desenharei projetos
e os mandarei aos meus leitores
primeiramente aos cegos
(que os "lerão" com todo tato)
depois aos transmodernos
os leitores tradicionais me perdoem
ou me esqueçam
(não sendo muitos
perco pouco
e poucos perdem)
mas temo que não dê certo
decerto posso imprimir um deserto
em miniatura
habitado por qualquer criatura
de minitouros a minotauros
posso imprimir mesmo a noite
com qualquer matéria
quase etérea
menos densa do que o ar
e mais negra que o nanquim
posso imprimir um jardim
só de jasmins
e seus perfumes
com essências naturais
mas que material pode imprimir
o imaterial?
o amor
maior que o mundo
e multidimensional
a dor
maior que o amor ou o desejo
universal
de uma felicidade ideal
como imprimir um ideal
uma ideia
uma idealização?
como imprimir a paz?
como imprimir um país?
como projetar
a fria dor de uma saudade
as cores moventes de um fim de tarde
o puro mover do vento
ou a transbordante gosma escura
do tempo?
como imprimir a luz?
como imprimir a soma
dos dias que se reduz
a cada dia que se acresce
à vida
e ao que mais reste?
um pássaro
plana
como uma nuvem
e sua sombra
pousa
como uma nuvem
caída
como imprimir uma sombra?
que matéria dará forma
à forma que se transforma
de uma nuvem
ou à nuvem de formas
de uma metáfora?
não serei
da poesia ultransmoderna
o novo rei
sequer amigo do rei
pois não existem mais passagens
para pasárgada
lá a poesia tem todas as dimensões
do mundo
e o mundo
as dimensões todas da poesia
em pasárgada tem tudo
incluindo alcaloide à vontade
e prostitutas bonitas
para se namorar
em pasárgada só não há
pasárgada
divagações sociológicas
(pequena prosa em prosa
ou: isto não é um poema)
a classe-média não quer ser uma classe de merda. quer ser ao menos merdianamente hipermoderna. por isso passa horas diárias em frente a uma série de tv, para depois comer uma comida descongelada qualquer sem sal, para amainar a pressão, ao som de um som que evoca praias indonésias, para amaciar o estresse, e sem gordura, para encolher o colesterol, comentando os respectivos signos zodiacais. para então voltar à tv e assistir ao novo filme de velhos heróis de antigas revistas em quadrinhos que todos estão vendo. que todos estão vendo. então é preciso parar o filme para comentar os fantásticos efeitos especiais, e comer outra coisa especial qualquer, morangos orgânicos fora da estação com açúcar mascavo tailandês, para não salgar o colesterol, ou pipoca orgânica com poucos grãos de sal rosa do himalaia, para adoçar a pressão, ou café do congo descafeinado, sei lá por quê. mas sei porque não comem nada com glúten: porque não sabem por que não comer nada com glúten. mas sabem consumir tudo o que prometa ou não comprometa sua juventude ampliada. são adolescentes seriamente militantes. por isso afirmam, durante o preparo do repasto que alimenta suas respostas, dadas à sua responsabilidade radical por si mesmos, que a fotografia do filme é do caralho, e a música, da vagina, em nome e em nomes das igualdades dos gêneros. e que depois do filme e de uma visita a um site de brinquedos sexuais, que colecionam como profundos conhecedores, para espantar o tédio do sexo, que serve para afastar o tédio da vida, inconcebível por pessoas seriamente metidas e comprometidas com a teoria e a prática da felicidade prometida, folheiam um livro escrito por uma ex-pedagoga americana, demonstrando a superioridade sensitiva feminina através da desconstrução das narrativas míticas a serem encontradas em breve em atlântida, a ser idem em breve. ou comentam um caso de metempsicose, sem saber que comentam um caso de metempsicose. e batem na madeira reciclada. depois postam no face, no instagram, no grupo de whatsapp e num site de namoro a foto fofa de uma bela salada de um tipo novo de alface. e depois de escovarem os dentes e cagarem (cagada cuja foto logo postarão no face, no insta, no twitter, no grupo de whatsapp e num site de namoro, para anunciar sua saúde interior, pois a exterior é anunciada todo dia no face, no insta, no twitter, no grupo de whatsapp e num site de namoro), vão dormir entre lençóis de linho e uma paz de seda. são cultores de gestos e opiniões livres, progressivamente progressistas, espontaneamente politicamente mais que corretíssimos. são democratíssimos. são filhos felizes da democracia de mercado, ainda que, ao contrário da metempsicose, a nomeiem, mesmo que, como em relação à metempsicose, não saibam o que seja. adoram exposições de instalações virtuais, as exposições e as instalações, arte conceitual virtual, novos conceitos em lives conceitua-das e novos produtos entregues em casa. o que explica a super-saudade de supermercados e de shoppings cheios, de celulares levados a passear, pela virtual possibilidade de uma experiência imersiva no real iluminado dos grandes selfies reflexivos das vitrines. uma imersão na liberdade palpável: a liberdade de ir e vir pelos corredores e a liberdade de pensamento de imaginar poder escolher tudo o que gostariam de comprar. com um cartão de crédito numa das mãos e o celular na ponta dos dedos excitados, para contar ao seu grupo de contatos o que está querendo comprar, comprando ou já empacotado, e receber mil aplausos mudos de um emoticon infantil como a alegria automática de quem envia e recebe mil emoticons infantis. ser adulto é uma brincadeira de criança. muda apenas o parque de diversão. mas não a praça de alimentação, onde adultos sorridentes comem como e com crianças de aparelhos nos dentes os mesmos sanduíches com pão sem glúten mas com muito gergelim, entre os vasos floridos e folhudos de um jardim fragmentário. pois tudo é fragmentado, para saciar cada fragmento de desejo, em sua individualidade partilhada e compartilhada. têm opiniões sobre tudo. sobretudo sobre todas as opiniões sobre tudo de sobretodas célebres celebridades. menos sobre o islã, pois é de mau-gosto falar dos "outros", com exceção de todos os outros sobre quem sempre falam tudo. pois sempre falam tudo, a começar da necessidade de ensinar os homens de uma vez por todas o que fazer por todas todas as vezes com seus críticos clitóris. tutoras de toras com tutoriais. eles falam menos, pois têm de usar a língua para outras coisas. para a coisa toda. pequenos churchills de uma batalha vencida, prometem apenas muco, mucosa, saliva, sêmen, esforço e suor. e um pouco de ky, código sucinto para uma investida pela retaguarda aberta. pois não há nada mais normal do que o sexo anal, a não ser, talvez, a quantidade anormal de conversas ao vivo ou virtuais sobre a normalidade do sexo anal. mulheres toda seguras de si não precisam segurar nada de si, a começar do cu. pois dar o cu não é dar o cu, mas receber todo prazer que se puder suportar. é preciso ser muito macho para dar o cu. as feministas anais serão as novas feministas radicais. radicais mais livres do que aqueles de que querem se livrar com comidas que saúdam porque saudáveis, as comidas e os que as comem. saúde é tudo. por isso, quando tudo são saudades, doença insidiosa que sufoca a felicidade, resolve-se com rivotril. rivotril e mil pílulas vitamínicas coloridas como as luzes da cidade anunciando todos os mil tons do prazer à vista. ou a prazo. jantar, beber, dançar, trepar, cheirar, fumar, ingerir estimulantes, excitantes, alucinantes, mergulhar numa jacuzzi ejaculada e numa casa de swing idem. a vida é para ser conjugada no infinitivo, conjugado a certos substantivos substanciais: luxo combina com lichia e luxúria. e se o blowjob se tornou banal, bota-se uma banana na bunda para desbananalizar. basta que seja orgânica. sendo-o, não importa onde ou quanto adentre o organismo. importa que o adentre, para tornar ainda mais orgânico o organismo, o orgasmo e o onanismo. palavra arcaica, hoje substituída por punheta. que rima com buceta, palavra recém-adotada como nome normal do normalmente mal nomeado órgão genital feminino. me bate uma punheta que eu lambo sua buceta. sexo também é poesia. já as intermináveis drs interminavelmente na moda e na marra são pura prosa. pura prosa sem propósito, de propósito ou por ilusão. drs só são necessárias quando o necessário não existe mais na prática e nas práticas. como se diz, cala a boca e mexe. ou mexe só a boca para jorrar o muco viscoso de secas palavras sem fim. como numa sala da academia. que foi criada por platão num jardim cedido por academo, e hoje, fundindo a tradição grega à latina do mens sana in corpore sano, com ênfase no segundo termo, é um lugar onde se vai para deixar o corpo são, suado e sarado. a ela se ligam diretamente os salões de depilação, cujo objetivo é desnudar a buceta e o cu visual e lingualmente. no caso dos homens, trata-se de retirar o máximo de pelos es palhados pelo corpo, para expor os músculos e encobrir a idade. púbis impúberes sob grandes úberes vagando pela urbe num uber. peitos imberbes sobre músculos másculos adoçados com perfume. por isso ninguém mais fuma. é preciso manter o ritmo. e concentrar a mente com exercícios de mindfulness e xícaras de café nespresso. tudo sem pressa, pressão ou depressão, apesar de toda pressa, pressão e depressão. por isso se sai da academia para um consultório psi. e do consultório psi para uma farmácia psicodélica, pletora de fármacos em coloridas prateleiras sem fim. mais mens sana in corpore sano, adiciona-se à cesta uns bons frascos de produtos para os cabelos e outros para a pele sem pelos, além de ceder aos apelos de alguma fórmula hipernatural para estimular artificialmente o sono. um pouco de boxe, uma cama box e algum botox também ajudam a relaxar, se não a pele, as rugas das dúvidas. dormir bem é uma dádiva devidamente devida ao corpo e à mente. pois o corpo mente, a mente engana e tudo vai muito melhor ao se arranjar uma boa babá para o bebê, mas não tão boa que babe demais pelo próprio e faça o papai babar com as próprias fantasias impróprias. e organizar festas virtuais a fantasia, às fantasias, do "paizão", para o "filhão", e uma aumentativa programação de atividades condominiais para prepará-lo para ser um grande winner, virtude primeira e única dos novos patrícios e suas novíssimas patrícias que, com olhos apenas para um futuro frutífero, ignoram a velha virtú de seus ancestrais, os mais que arcaicos romanos. pois a roma moderna verte somente coisas palpáveis, como romãs, romarias e romanas. além de tours gastronômicos muito seguros, com seguros e bem planejados, incluindo a degustação dos mais pios vinhos do piemonte. pois os melhores vinhos, do piemonte ou de onde fosse, não se bebem mais, degustamose. degusta-se tudo, a começar de uma vida bem temperada. o saber dos sabores é uma sabedoria sensível. a educação dos sentidos, o sentido último, à falta de um sentido último. à falta de qualquer sentido. em compensação, não faltam direções. voltam voos para todo o mundo para todo mundo. para pouca gente. índia, tibet, áfrica, ilhas do pacífico, ilhas do caribe, ilha gregas, ilhas dálmatas, ilhas hébridas, praga, samarcanda, bali, ibiza, outback, mar vermelho, mar negro, mar do norte, mar morto, mar de corais, escócia, islândia, ushuaia, haia, nice, califórnia, acapulco, aconcágua, alpes suíços, pirâmides egípcias, pirâmides maias, angkor, potala, versalhes, balmoral, palácio de inverno, sibéria, cingapura, sri lanka, irlanda, lancashire, ga les, senegal, marrocos, quê-nia, armênia, birmânia, tailândia, suazilândia, disneylândia. caiaques no grand canyon, caciques nas grandes padrarias, camelos nos grandes desertos, gurus de olhos beatificamente vazios à beira do ganges, longa língua líquida merda diarreica a lamber solidamente o mundo imaterial. transcendência é tudo. até que o celular toque imanentemente. a realidade palpável de uma touchscreen.
Impressões do Pântano: orelha
Reconhecido como um dos maiores poetas brasileiros contemporâneos por muitos dos principais nomes da nossa poesia (a começar de Paulo Leminski, autor da apresentação de seu primeiro livro, Pãnico [São Paulo: Expressão, 1986]) e da academia, Luis Dolhnikoff, com Impressões do pântano, completa a trilogia iniciada com Lodo (São Paulo: Ateliê, 2009) e seguida com As rugosidades do caos (São Paulo: Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016), que busca, nas palavras do autor, "dar conta poeticamente da grande confusão contemporânea", reivindicando certa potência da palavra poética hoje perdida (talvez um dos motivos da concomitante perda de leitores — ver o prefácio do autor). A linguagem poética de Impressões do pântano é, a um só tempo, clara e complexa (levando a seus extremos lógicos as lições do alto modernismo internacional), e seus temas, tantos quantos são seus poemas, ainda que, na verdade, sejam apenas um e o mesmo: a realidade contemporânea, que a poesia abandonou ao domínio da prosa, recolhendo-se, como regra, às idiossincrasias de cada poeta. Afinal, como disse Pound, "grande literatura é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível". A grande poesia também deveria sê-lo. E se a linguagem poética pode lhe dar seus significantes, é o mundo, o polimorfo mundo contemporâneo, que deve lhe fornecer seus significados. A poesia tem de poetizá-lo ou calar-se.
Impressões do pântano
Autor – Luis Dolhnikoff
Acabamento – Brochura, lombada 1,6 cm
Formato – 14 cm X 21 cm
Peso – 350 g
Páginas – 280
Preço – R$ 49,50
Poesia
ISBN 978-65-88672-02-0
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janeiro, 2021
Luis Dolhnikoff é autor dos livros de poemas Pãnico (São Paulo: Expressão, 1986, apresentação Paulo Leminski), Impressões digitais (São Paulo: Olavobrás, 1990), Microcosmo (Olavobrás, 1991), Lodo (São Paulo: Ateliê, 2009) e As rugosidades do caos (São Paulo: Quatro Cantos, 2015, apresentação Aurora Bernardini, finalista do Prêmio Jabuti 2016). Publicou ainda os volumes de contos Os homens de ferro (Olavobrás, 1992) e de poesia para crianças A menina que media as palavras (São Paulo: Quatro Cantos, 2013). Tem poemas publicados nas principais revistas literárias brasileiras, impressas e eletrônicas, além de Tsé=tsé 7/8 (número especial com 30 poetas brasileiros contemporâneos), Buenos Aires, outono 2000; Hipnerotomaquia, Cidade do México, Aldus, 2001; Ratapallax 11, New York, spring 2004; Mandorla – New writing from Américas 8, Illinois State University, 2005. Traduziu Arquíloco (Fragmentos, São Paulo: Expressão, 1987), James Joyce (Poemas, São Paulo: Olavobrás, 1992, com Marcelo Tápia), W. H. Auden (Mais!, Folha de S. Paulo, 06/07/2003), Miguel de Cervantes (Mais!, Folha de S. Paulo, 14/11/2004, com Josely V. Baptista), W. B. Yeats (Etc, Curitiba: jan. 2005), William Carlos Williams (Sibila, 2011), Allen Ginsberg (Uivo, São Paulo: Globo, 2012 [versão integral]) e G. W. Plaut (Torá – um comentário moderno, União do Judaísmo Reformista – América Latina, 2014-2019, no prelo). Com Odile Cisneros, da Universidade de Alberta, Canadá, prepara atualmente uma antologia de poesia canadense experimental para a editora da UFSC. Ao lado de Haroldo de Campos, coorganizou, entre 1991 e 1994, o Bloomsday de São Paulo (homenagem anual a James Joyce). Integrou a exposição A Palavra Extrapolada, São Paulo, SESC Pompeia, ago.-set. 2003, curadoria Inês Raphaelian, e a mostra Desenhos, Museu Oscar Niemeyer, Curitiba: mar. 2005 / Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, set.-dez. 2005. No mesmo ano, recebeu uma Bolsa Vitae de Artes para estudar a obra do poeta Pedro Xisto. Em 2015, organizou e editou Poesia Completa, de Orides Fontela (São Paulo: Hedra). Como crítico literário, colaborou, a partir de 1997, com os jornais O Estado de S. Paulo, A Notícia, Diário Catarinense, Gazeta do Povo, Clarín e, recentemente, Folha de S. Paulo, além das revistas Sibila e Babel e das publicações eletrônicas Sibila, Germina, Digestivo Cultural e TriploV (Portugal). Entre 2006 e 2014, foi colaborador de política internacional na Revista 18, do Centro de Cultura Judaica de São Paulo.
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