das possibilidades
1 - a mutação se dá from bottom to top
2 - em sentido contrário a mutação se dará
de modo que
quando a água subir mais na salaquário
[entre atônitos e afogados]
haverá
- dois humanos
- um centauro invertido + uma coelhalice
ou
[contrariando todas as probabilidades]
dois peixes nadando
entre o lustre a cadeira e a xícara de chá
alquimia
quase ofélia morta a seco
quase hermione na floresta adormecida
mas a mão por sobre o tronco
[compridas unhas garras metálicas]
com a placidez da jovem face não combina
no entanto há algo em mutação
um antevir de revelar-se um movimento
augúrio agouro sedução magia
que o olhar atento da coruja
a um tempo aguarda e prenuncia
after life
mocinhas não mais se engasgam com maçãs nem
saem a ofertá-las mouras tortas
tampouco há macieiras espalhando sombra e frutos
em quintais à espera dos físicos
perdeu-se o tal pecado original eva e adão a
expulsão do paraíso em que se cria
mas as maçãs ainda as há tenho certeza
sem mistério sem perfume sem glamour em
prateleiras de supermercados geladeiras
e restos esquecidos quase esqueletos como eu
abandonados sem romance sem história
sem terreno aonde brote ou apodreça sem o abrigo
pestilento de uma lata de lixo
autômatos
por trás das portas cerradas
os dias são sempre iguais
solidão saudade silêncio medo
entornam-se
no deslizar da lágrima
no rumor da água
lavando e lavando e lavando
as mãos
composição
a mulher abraça o disco
ante a vitrola
sentada no muro
frente à duna cheia de peixes
os peixes todos já mortos
colam-se à areia
que alta se estende
por trás da mulher no muro
o gato se enrosca aos pés
do dono que eureka!
no ato final
corta-lhe a branca cabeça
sobrepondo-a à face da
mulher que abraça
o disco no muro
frente à duna cheia de peixes
mais de cem dias sem elas
manu cresceu cresceu cresceu
sofia não usa mais fraldas
alice súbito aprendeu a ler
letícia leu elena ferrante e 1984
alice cresceu cresceu cresceu
sofia só telefona se vídeo
manu de isolamento se aflige
letícia se apressa a juntar as camas
mais de cem dias sem elas
eu obviamente não cresci
envelheci de idade e distância
no zap cerzimos de amor
a trama tecida em ausência e saudade
do horror que obscurece a pandemia
i can't breathe e não tem a ver com corona mas
com vergonha i can't breathe e o tempo congela
o ódio inflama i can't breathe e o filme quadro a
quadro roda para i can't breathe trás mississipi
atlanta nova i can't breathe york alabama califó
rnia i can't breathe oh selma oh montgomery inú
til agora i can't breathe agora i can't breathe oh
malcom oh king i can't breathe oh rosa oh byko
oh você que me olha i can't breathe você que pa
ssa i can't breathe e não para i can't breathe vo
cê que filma que cala i can't i can't breathe i ca
n't breathe i can't i can't i can't i can't shame on
you breathe at all
que o fogo queime que a flama inflame 'till we
all can't breathe we all can't live we all can't be
no more
muito mais que cem mil gritos de dor
cinquenta mil vidas a menos
em noventa e quatro dias
já não cabem novas cruzes
em cemitérios superlotados
mais de um milhão
o-fi-ci-al-men-te
infectados
ao lado e ao largo
umalegiãodeesquecidosadoeceuemorreu
semsercontada
nem números são
no país onde a esperança florescia
que em vergonha e tristeza ora agoniza
um silente vazio se expande
a d i n f i n i t u m
"the loneliness of the long distance
runner"
•
a solidão
que se esquece ao nascimento
por inteiro se recolhe
no ínfimo instante entre o morrer e a morte
•
inscreve-se incrusta-se estende-se
na nudez encoberta do morto
•
no vazio infrutífero de quem
vivo
persiste presente
•
ad infinitum per semper
•
(aos profissionais de saúde da linha de frente da COVID-19: os que
partiram e os que ficaram numa mesma e imensa solidão)
Tríptico
Dies irae
Um piano no meio do bosque, sem casa por perto, era, no mínimo estranho. Quase tão estranho quanto um soldado vagando sozinho em plena guerra. Tentação? Armadilha? Coincidência?
Recordare
Abre o piano. Desliza os dedos sobre o teclado. Quase afinado, pensa. E toca Chopin, seu preferido: o andante spianato e a grande polonaise brilhante. A guerra some, o mundo para, sua vida de antes parece de volta. Pouco antes do acorde final, o piano explode.
Lacrimosa
Restaram um piano incendiado, folhas em chamas, um cheiro de pólvora dentre as árvores. Um soldado perdido entre notas musicais e sua vida de antes. Morto. Como sói acontecer aos jovens soldados nas guerras.
Mãe
Quando o planetastro começou a se aproximar, lembrei de Lars von Trier. Era, então, alvo e luminoso qual imensa lua cheia. Como em Melancolia. Mas quando começou a enrubescer como se feito de gás de mercúrio ou sangue vivo, tive medo. Ele não se movia. Sugava aos poucos, muito aos poucos, a seiva da vida. O capim secava. O dia parecia sempre em estado de crepúsculo.
De repente, nossas faces se gelatinizaram. Passamos a usar aquários como máscaras e, embora parecesse improvável, ainda conseguíamos respirar.
Até aquela manhã, ou talvez aquela noite, em que começou o evanescer. Primeiro, o homem. Como um afresco antigo que apagasse em contato com a poluição. Enquanto o observava desaparecer, um medo súbito me tomava. A dúvida sobre quem se apagaria a seguir. Eu? As crianças? A angústia mais profunda me invadiu de modo que mal percebi que, de mãos dadas, a um só tempo evaporávamos. Restando apenas a bola sobre o capim ressequido. E, no último instante, ao senti-las comigo, um tênue alívio confortou meu coração.
Transplante
Por ter-me emudecido o coração, resolvi colocar em seu lugar um passarinho. Não sem antes ter usado inúmeros argumentos para fazê-lo voltar a cantar. Em vão. Numa tentativa extrema, ameacei arrancá-lo do peito, trocá-lo por um coração cantante. Ao invés de amedrontar-se, ele riu. Foi quando avistei o canário pousado na janela. E sem hesitar, fiz o transplante. Adeus coração mudo. Feliz, agora canto nas manhãs e à tardinha. À noite, não. É quando lamento ter matado o passarinho. Mas logo passa.
julho, 2020
Márcia Maia (Recife/PE). Médica e poeta. Publicou Espelhos (2003), um tolo desejo de azul (2003), Olhares/Miradas (2004), em queda livre (2005), cotidiana e virtual geometria (Prêmio Violeta Branca Menescal, Manaus, 2008), sem amém (2011) e onde a minha rolleiflex? (Prêmio Eugênio Coimbra, Recife 2008, publicado em 2012). Foi o segundo lugar de poesia do Prêmio Off Flip de Literatura 2008. Participa de coletâneas e revistas eletrônicas no Brasil e em Portugal. É mãe de Felipe, Maria e Tiago e avó de Letícia, Manuela, Alice e Sofia.
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