EU ERA O RIO
"... e, eu, rio abaixo, rio a
fora, rio a dentro — o rio".
(Guimarães Rosa)
Gosto das paredes emboloradas
Do lodo nas quinas das garagens escuras
O capim-gordura crescendo no vão do cimento
O calor claustrofóbico das cozinhas oleosas
Das rachaduras nos tijolos
A carne da construção revelada pela negligência
Do tempo
Das gentes
Dos desencontros
Gosto dos sentimentos sem nome
Das saudades que são também repulsa
Esquecimento
Do amor que é também raiva
Que é também amor
Das nojeiras inconfessáveis
Cativas nos instantes de solidão
Ranhos lambidos com a ponta da língua
Unhas mastigadas
Cascas de feridas partidas na força dos dentes
Gosto dos bichos que não são estimados
Piolhos dentando a pele do crânio
Baratas gordas se espremendo no estreito do ralo
As antenas por último
Prenúncio de tudo que é imundo
Gosto das ausências
Os cantos não preenchidos por móveis
A cama não repartida
O prato vazio
Sem farelo de comida recente
De tudo que não é recente
Lutos petrificados pela austeridade dos anos
Casas erguidas por braços mortos
Há tantos anos mortos
Gosto da morte
O silêncio das alamedas de sombras
As filas das formigas alargando as trincas dos túmulos
O cheiro mineral das fendas
Não me interessam as flores violetas
Crescendo na sombra das amoreiras
Nem as amoras
Cajus suculentos
Cactos ostentando folhas
Que também são caules
Que também são folhas
Eu quero o escuro do debaixo da terra
Pretendo a fundura
O miolo do acontecer
Ossos ocultos
Mortos de ninguém
Nem cruz, nem placa de bronze
Não me importa a superfície
O lado de fora do chão
Anseio veios subterrâneos
Lençóis freáticos
O magma fervendo no coração do mundo
Nada me vale o mar turquesa
Ondas esfarelando na areia
Desmanchando conchas
Eu quero o oceano profundo
Peixes abissais de couro transparente e sexo hermafrodita
Enguias elétricas sem olho nem boca
Contorcendo a escuridão
Não me comove jardins semeados
As filas simétricas das rosas e das margaridas
Árvores podadas em círculo
Gosto das florestas indômitas
Cipós estrangulando troncos
O chão úmido do musgo apodrecido
Camadas de folhas secas dando abrigo a aranhas fluorescentes
Escorpiões, formigas ruivas, lacraias de mil pés
Não quero o cruzeiro do sul, a via láctea, saturno
Não me interessam cometas e a composição do solo da lua
Tenciono matéria escura, as bordas de fora do universo
O buraco negro e a gula que engole o tempo
O passado obliterado e o futuro cindido em um milhão
Doze milhões de futuros
Não sei em que possibilidade me perdi
No destino estilhaçado em que eu era
Uma camponesa na revolução mexicana
Um padre na inquisição
Uma corça de pata fraturada
Um peixe remando o rio
O rio
Eu era o rio
Era morna e fresca
O limo das margens
As águas cáusticas matando carpas
Botos
Lontras
E aguapés
Depois eu era os aguapés
Era o fundo e os barcos de papel
As crianças brincando na beira
Sete crianças soltando barquinhos
Uma delas era eu
A menina de vestido azul
Escapulário
E olhos líquidos
Chorava pelas orelhas
A vida escorrendo nas fendas
E de novo rio
Para sempre eu era o rio
24 DE JUNHO
Os braços me doem de carregar o filho
E as pernas de tanto caminhar
Com o filho nos braços
Para que tanto mundo para vida tão curta?
As costas doem de me curvar
Para febre e o choro
E me doem os cantos das unhas e a cabeça
Me dói ainda mais o coração
Por que dói tanto?
Eu pergunto à minha mãe
Ela não sabe
Diz que são bonitas as noites de junho
O céu de mar profundo e as estrelas de São João
Eu engastalho o choro e aperto meu filho
Respiro o cheiro da boquinha cor de rosa
Leite e vida recente
Olha, meu filho
Como são bonitas as noites de junho
O céu de mar profundo e as estrelas de São João
E NÃO TEM ESTRADA QUE EU NÃO QUEIRA
Quero a vida de cara limpa
Não quero maconha, yoga, sertralina
Quero hoje e muito
O ontem e o atrás
Quero dor sem intermédio
Maternidade sem consolo
Não quero vírgula, hiato, camisinha
Quero onde e nunca
O longe e o depois de amanhã
Quero Líbia e Guatemala
Esquimós e aborígenes
Quero sal, umbigo e quinta-feira
Quero ontem o que não quis amanhã
Quero dentes firmes e coxas flácidas
Quando não quero nada quero muito
E quero muito cada quando
Quero lá-aqui-nunca e dentro-fundo-depois
Quero o através, o avesso, o atravessado
E não tem estrada que eu não queira
Nem caminho que minhas pernas não pretendam
Quero o reverso da falha e o verso da perfeição
Quero dormir de cansaço e acordar sem sol
Quero sonho sem sono
E sono povoado de estrelas cadentes
AGORA QUE TEM ÁGUA EM MARTE
a segunda de manhã me escorreu com a urina
e a noite de quarta evaporou no suor das minhas axilas
o tempo é alguma coisa tão líquida
que escorre e evapora
de um jeito que só os líquidos fazem
ontem eu quis ser uma pessoa melhor
hoje me esqueci
descobriram água em Marte
e é água mesmo
não é gelo, gás metano, prata derretida
o tempo de Marte também deve escorrer
pelos rios subterrâneos
lotados de bactérias marcianas
microrganismos de antenas azuis
agora que tem água em Marte
não dá tempo de ser uma pessoa melhor
o ser humano anda pela terra há 200 mil anos
o universo tem a idade de 13,7 bilhões
o ser humano é o microrganismo de antenas azuis
do universo
agora que tem água em Marte
a gente precisa deixar de ter insônia
e culpa
agora que tem água em Marte
a gente está absolvido para sempre
até os próximos 3,8 bilhões de anos
quando não vai ter água aqui
só em Marte
agora que tem água em Marte
eu nunca mais vou deixar de sentir sede
EU ERA PRIMATA E SEGURAVA PRIMATA
Não me lembro o que eu era antes de ser mãe
Alguma coisa entre tijolo e rã
(sólida e escorregadia)
O tempo de antes ficou sujo de uma coisa
que eu não sei
A vida principiou naquele dia
e depois só futuro
E era um futuro tão velho que parecia passado
Quando eu coloquei no colo minha filha
Era como se carregasse minha mãe
Ou a mãe da minha mãe
Ou a primeira mulher do mundo
Que era gente e era macaco
Ali eu era primata e segurava primata
E doía tanto
POESIA DA RESISTÊNCIA
eu temo esses dias voláteis
essas horas que se encavalam nos minutos
hoje é segunda passada, amanhã de repente de novo
o coração sobressaltado e um medo
de onde arrebenta o medo?
do intestino, da bexiga, do útero
o medo mora no útero
e é por isso que eu tenho tanto
não é tempo de calar, dizem
mas eu abro a boca e só um choro
mugido baixo
bezerro reclamando mãe
e agora não tem mãe nenhuma
que esses tempos não são de mãe, matéria de amor
todo dia um sol que não sai
uma quase manhã, sem escuro de noite
se pelo menos tivesse sol
se esse dia e amanhã
e semana que vem
não fossem segunda-feira passada
um cheiro de escapamento de ônibus
creme de cabelo, gordura de pastel
um cheiro ácido e quente
evaporando de todos os cabelos carregados de creme
das fumaças vazando dos escapamentos
das bocas que arrebentam a pele do pastel
para chegar na carne
às seis e quinze da manhã sem sol
de segunda-feira passada
o cheiro que é de todo mundo que é gente
que reconhece o tempo de medo
sem matéria de amor e de mãe
as calçadas sujas de chicletes mastigados em dia de sol
uma sexta-feira de carnaval
um outono de um ano que eu não sei
se pelo menos eu pudesse falar
se acudisse mãe
se fosse tempo de amor
se os chicletes tivessem gosto
e os cabelos não fossem sobrecarregados de creme
se os ônibus não gritassem tanta fumaça
e os dias não evaporassem no asfalto
nos dentes mascando a carne do pastel
daqui a três milhões de anos
não vai ser mais segunda passada
nem os minutos que derretem dentro das horas
não vai ter ônibus e cabelo e chiclete e creme
esse medo que nasce do útero e arrebenta o útero
o planeta espatifado
uma infinidade de lasca e poeira
segunda passada é poeira
agora é medo
O DIA EM QUE VI A LOUCURA, ERA UM DOMINGO
o dia em que vi a loucura
foi tão de perto que enxerguei as rugas
da roda dos olhos
e as veias estouradas
na maçã do rosto
meu nariz encostado no dela
(morno como uma morte recente)
a gente quase beijou na boca
e se beijasse, eu nunca que ia botar a língua
minha língua na boca da loucura
que nem dentes tem para escovar
o dia em que vi a loucura eu não corri
não poderia correr
olhei para baixo e não tinha pernas
meu corpo terminava no umbigo
também não tinha mãos
só uns tocos de braços
tinha a cabeça toda:
olhos, boca e córtex frontal
a loucura me chamou pelo nome
disse o nome dos filhos que eu ainda não tinha
meu signo e o ascendente
depois me perguntou do que eu tinha medo
e eu chorei
ela não disse calma
nem me abraçou
surrando tudo bem nos meus ouvidos íntegros
ficou respirando fundo perto do meu rosto
tinha cheiro de manteiga e vagão de metrô
depois disse vai e eu voltei
com meus tocos de braços e nada de pernas
ainda sinto o cheiro dela quando anoitece
depois a lua engole tudo e a noite tem cheiro de noite
e eu durmo em paz
no embuste da sanidade
Ninguém
"Que no son, aunque sean".
(Eduardo Galeano)
Nenhum afago
Nenhum beijo em joelho esfolado
Ovinho sem bombom na páscoa de caridade
Jamais letra
Jamais desenho de barquinho
Caderno velho no caldo da reciclagem
Não cama
Não travesseiro
Papelão, chuva e sarna
Nenhum pão fresco
Nenhum prato de porcelana
Feijão frio no pote de margarina
Jamais desejo
Jamais sonho
Peito atolado de ausência
Não música
Não palavra
Ranger de uma vida de míngua
Nenhum amor à luz de abajur
Nenhum abajur
Sexo urgente no chão sem paredes
Jamais nome
Jamais ofício
Número e disfunção
Não caminho
Não lugar
Obstáculo na rota da gente de serventia
Nenhum grito
Nenhum choro
Silêncio e dente inflamado
Jamais missa
Jamais enterro
Buraco curto e caixão sem lacrar
Não luto
Não saudade
Estatística: pneumonia, frio e solidão
ESSES HOMENS
esses homens que nos odeiam
e fingem que não nos odeiam
que nos odeiam só um pouco
apenas quando falamos
alto
dissonante
sem medo de matar e de morrer
esses homens que nos chamam
linda
princesa
coração
puta
que nos fazem chorar no dentro
e sorrir mostrando os dentes sem obturações
esses homens que nos dizem
que não vivemos
o suficiente para saber
da dureza das coisas
da cintilância das asas das drosófilas
do superávit primário
da formação do solo da lua
esses homens engendrados
em úteros de ferro
gestados em reuniões de condomínios
em praias sem filtro solar
em postos de gasolinas
em garrafas de cerveja
vendidas a 3,99
esses homens que acreditam nos muros
nos carimbos dos tabeliães
nos livros sagrados
na pureza da composição do sal
esses homens que dissimulam maldade
linda princesa coração
puta
esses homens que nunca morrem
e que nos fazem morrer
que querem o nosso sangue
o nosso silêncio
esses homens que babam e vociferam
sorriem por dentro
e choram pelos olhos repletos de obturações
VIADUTO SANTA EFIGÊNIA
Para Luciana Balam
quem nunca teve medo de morrer
numa quarta-feira de cinzas
sem ter pulado um dia de carnaval
depois de escutar Belchior
e lido o sentimento
do mundo
quem nunca teve medo de morrer um filho
numa madrugada de febre
na primeira quarta-feira de agosto
depois de escutar um suspiro
e lido o mercúrio do termômetro
marcando 41 graus
quem nunca teve medo de matar
numa quarta-feira de verão
o termômetro da rua marcando 41 graus
depois de ter lido a manchete do jornal
em uma banca de alumínio incandescente
oito crianças mortas com sete tiros cada
em frente a uma igreja
quem nunca teve medo de pular
do viaduto Santa Efigênia
na última quarta-feira do ano
o céu de um azul inviável
o coração de uma alegria inviável
depois de ter lido
o lambe-lambe no poste:
viver é para fortes
IP 287/2011
essa gente
que constrói muro
e grade
e cerca elétrica
de 8.000 volts
protege casa
piscina e sauna
três carros e duas motos
essa gente
zelosa e ordeira
desconhece que o maior perigo
mora no coração
uma mãe
assim, como são as mães
carinho no cabelo e bolo fresco
um pai
assim, como são os pais
jornal no colo depois do jantar
e assinatura no boletim
um menino
assim, como são os meninos
videogame, bala de goma
e joelho ralado
uma arma
assim, como são as armas
cheias de brilho e nenhuma misericórdia
uma traição
assim, como são as traições
o pai, muito trabalho
a mãe, gorda de sonhos
um encanamento estourado
um encanador paciente
uma descoberta
assim, como são as descobertas
extensão de telefone e rompante de fúria
um pai batendo na mãe
assim, como são os pais batendo nas mães
um soco na boca e vagabunda, como pôde fazer isso
um filho vendo a mãe apanhar
assim, como são os filhos vendo mães apanharem
a raiva estraçalhando o peito
a mãe caída no canto da sala
cuspindo sangue e um dente
da frente
uma arma
já disse, como são as armas
resplandecentes e impiedosas
três tiros
assim, como são três tiros
tá, tá, tá
uma morte
assim, como são as mortes
irrevogáveis e tristes
a mãe não sorri
talvez porque lhe falte um dente
da frente
o menino de arma na mão
o pai morto
irrevogável e triste
a casa segura
piscina
sauna
três carros
uma moto
a cerca elétrica de 8.000 volts
agora descansa em paz
EU NÃO SOU POETA
"Embora eu tenha um corpo
que pode ser confundido
com o corpo de um poeta
não sou poeta".
(Victor Heringer)
eu não sou poeta porque não crio poesia nenhuma
eu recolho os afetos desperdiçados no vão do metrô
a menina de mão atada com a mãe-avó-tia
dizia do medo que sentia do trilho
do vento deslocado no rápido do trem
da linha amarela tão amarela
a mãe-avó-tia
não dizia nada
porque tinha medo também
eu não sou poeta porque engordo da poesia lida
o azul do céu de metileno o fósforo frio a véspera do escarro
e quando fico pesada de tanto comer
palavras
o vômito não jorra da boca
rebenta dos dedos martelando o teclado
eu não sou poeta porque a poesia reclama certeza
e eu não tenho nenhuma
a vida é acaso e imprecisão
e tem dias que nem sei
se ainda existo no mim
eu não sou poeta porque não choro
quando o menino no semáforo
me chama de tia e pede um trocado
nem quando escuto
a presa magra
de mancha de gravidez no rosto
a presa gorda
de mancha de gravidez no rosto
eu não sou poeta porque choro
quando o menino no semáforo
me diz sem dizer
que tem fome
de mãe e de pão com manteiga
e quando a presa de rosto manchado
me fala que tem quatro filhos
três o juiz tirou
o último
queria que chamasse Maicon
não deu tempo de registrar
porque morreu
deu de mamar dois dias — me conta, fazendo dois com os dedos
eu não sou poeta porque canso
da poesia triste esguichada das mãos
os meninos
as presas
os filhos
a vida aleatória e imprecisa
a vida bruta
ontem vi um gato amarelo
no jardim da casa da minha mãe
tinha arrebentado a cabeça de um passarinho
e comia
alguma coisa que devia ser o miolo
mastigava o último pensamento:
uma minhoca gorda
um ninho
vou morrer, meu deus, vou morrer?
a presa de bochecha manchada
dos filhos sem nenhum
enfartou noite passada
as artérias entupidas
todas todas
da comida rançosa do marmitex
(linguiça verde e feijão fermentado)
e dos filhos tirados
todos todos
e do filho morto
de parada cardiorrespiratória
é porque usou crack, mãezinha
e a mãezinha chora
porque agora não tem filho nenhum
porque agora
morre
a prisão mastigando os últimos pensamentos
os olhinhos do primeiro
o segundo que chorava para tomar banho
a terceira que gostava de desenhar corações
o quarto quase se chamou Maicon
vou morrer, meu deus, vou morrer?
eu não sou poeta porque
definitivamente
a vida é crueza
março, 2020
Maria Fernanda Elias Maglio nasceu em Cajuru/SP. É escritora e defensora pública, trabalha fazendo a defesa de pessoas pobres que estão cumprindo pena. Seu primeiro livro, Enfim, imperatriz (Patuá, 2017), venceu o Prêmio Jabuti 2018 na categoria Contos. Em dezembro de 2019, lançou 179. Resistência (poesia) também pela Patuá.
Mais Maria Fernanda Elias Maglio na Germina
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