Criação
dentro do verbo
a luz represada
reaprender o verbo
de concreto
fiat lux
o verbo velho de deus
é na escuridão
que brilham vagalumes
Máquina lírica
texto 1
delicadamente
o verbo dobrado ao meio
e um som indecifrágil
coagula dois limites
o tempo onde repousam
memórias verdes
expondo a nervura da planta
derramada na areia
o verbo em cada parte
onde um sentido perturba
as águas que refletem elefantes
criando ondas de sal
as mãos tremem devagar
é impossível segurar-se no corpo
é a noite nos ossos que desperta
os lampiões antigos
é disso que o oráculo
reitera dentro do amor
é uma ilha sensível
o amor sendo amor
e não dirá nada que obscureça
a tarde de grandes relógios parados
seguirão o ritmo o aspecto das aves
no espelho que reflete o espaço
são apenas dois olhos
em retrospectiva
imensas ilhas na geografia do rosto
os dentes alvos como peixes
líquidos e alvos peixes
na dimensão secreta das ondas
peixes inomináveis e belos
como o sorriso no retrato
só o verbo novamente
nas densas horas onde as palavras
quebradas diante de Deus
brilham como sóis dentro de pálpebras.
O deus afogado
No mais alto de si mesmo
o abismo de muitos lilases
só o que resta são as cinzas
no altar de pedra
Batendo contra o vento
segue o pássaro devorando o tempo
No mais baixo de si mesmo
a água mais pura
o desejo por uma metafísica
não encontrada
e no laço de frágil bronze
das mãos em sangue tombadas
na água onde nadam serpentes
as retinas guardam flores de cal
Na hora mais lenta o mais sutil
e agreste perfume
nos sulcos onde os pés
vão deixando sementes
Na mais alta torre
as chamas que crescem dos olhos
o infante perdido entre palavras
diante do monstro de sal
Na casa mais distante
o lastro esquecido na sombra do cata-vento
onde delicadamente é tecida
a nervura do sol
Na onda mais secreta
repousa ainda o oráculo
suas densas asas batendo contra o vento
só um verbo teimando em ser carne
Onde repousa o tridente
construindo entre as ilhas um diálogo
repousa numa pira de naufrágios
o deus afogado.
Ábaco
escrever delicadamente sobre um ponto
na memória
escrever e saber que escrever
é escrever sobre o passado
e se a distância não couber na frase
nem o verbo ser mais que o ser
ou a metáfora ser insuficiente
diante do espanto do dia
irei sem dúvida acordar sozinho
e nem perceber que já faz anos;
tomar o mesmo café diante da janela
e nem perceber que não tem açúcar
dias virão novamente e tardes também
e não haverá necessidade de segredos
só o espanto diante do dia
bastará
mas ainda soará em meus ouvidos
palavras indecifráveis
e consultarei velhos dicionários
e não encontrarei nada
haverá canções que ouvirei no rádio
porque meu mundo será analógico
deixarei toda essa tecnologia alienígena
e voltarei a escrever à mão
escrever é escrever delicadamente
sobre o que não está mais,
é um jeito de redecifrar
aquilo que tão rápido passou.
Caderno azul
texto 1
não saberei onde
nem o nome ou
a cor que veste
só a tormenta
só a tormenta
que traz na carne
que treme e faminta
devora o tempo
só a sombra
só a sombra
que projeta num espelho
o vitral incompleto
de água termal
nada adianta
nem ficar diante do abismo
o sal de um vulcão
nem o detalhe
na parede da sala
é o que serve
o que é astro ou bronze
lua luna lune
só um cansaço na voz
só e inquiento dentro dum vale
nada é
e dirá
com flores em todo o corpo:
da imensa lonjura
nada permanecerá.
Exercícios
parte 3
uma mensagem fluindo delicadamente
de longe o mais áspero lilás
nascente. Vindo de alguma forma geométrica
é impossível pesar o pesar
só deixar que siga dentro de si
o que é vulto e sangue:
pérola de sol num cardume de peixes
só o espaço como uma dobra da geografia
das andanças e das casas feridas pelo vento
e ferido os lábios em arame farpado
nas horas densas do oráculo
e o que traz em si o átomo partido
como um pequeno crucifixo sobre o peito
na face os ideogramas pintados
as longas águas dentro dos olhos
e dirão em grandes trombetas
as flores na textura de um haicai
e haverá um bálsamo nas mãos intocadas
em fuga a cavalo à moda de tempos idos
só uma ilha com um nome escrito
nada deterá o tempo em seu navio de madeira
suas longas velas cheias de memórias.
texto 37
e uma vez mais
te busco no ar da manhã
notas dentro de uma pedra
as horas íngremes numa terrível constelação
Acervo 5
e então quando estrelas caírem
quando aberto em rios salgados
os olhos tão cheios de silêncios
diante de barcos naufragados
e veremos na água esses quintais
e correremos num mundo às avessas
num igarapé peixes coloridos
cheios de luz e sem sinais
apenas o sono no detalhe do sonho
outra face no espelho vista de longe
e o dia diante do abismo sozinho
as palavras trancadas na voz
em nossas mãos uma chuva trançada
cada fio de cristal delicado
cada nome transcrito na pele
e de ideia a ideia uma escada
subindo e subindo na música
até a altura de onde não se volta
na mesma porta o mesmo rito
apenas o sol em seu abismo.
Acervo 1
Tenho os olhos feridos de tanto temer a noite,
e de tanto me agarrar a essas colunas de metal
e água: esses desenhos de ar,
que tanto me apavoram,
tenho as mãos também feridas.
Trago como uma oferenda este cálice vazio
sem voz, trovões ou vagalumes;
E vou tateando os limites sutis da manhã
até que algo exploda delicadamente,
até que esta chuva que agora me impede os passos, que agora transborda os rios,
que afoga minha impaciência,
torne em vinho toda minha estúpida delicadeza
diante de cristais imaginários.
Acervo 2
Essa chuva que me atravessa a pele,
e onde a sombra me envolve tactilmente
e onde sinto na ideia o mesmo espaço sem memória;
o mesmo altar,
vejo velas acesas em círculos de ar:
apenas um gesto traz de volta a chuva.
Essa estranha de olhos claros como o dia que é puro sol,
estranho girassol tocando a fímbria da noite;
Essa página novamente revivida como um presente,
como uma ausência sentida.
O que são essas aves em voo tatuadas na pele
que atingem dentro dos olhos o mormaço que chega?
A letra oculta
Esse interminável gesto
marinho e triste,
azul como um moinho
coberto de vento
Essa incessante légua
intransponível
aos pés às asas: só Deus
em sua carruagem
e sua fria lâmina: o verbo.
Numa correnteza
o rio de muitas águas
como um alfabeto em disparada
e mais que um ideograma
ou um rito agora existe,
só o poema em forma de água
em sua ternura viva.
Sem título
A arte é uma navalha
que corta a carne
A arte é um problema
dentro do poema
A arte é um salto no escuro:
como um lago em olhos escuros
A arte traduz a metáfora
de que a vida não basta.
julho, 2020
Raimundo Soares é natural de Itapecuru-Mirim, interior do Maranhão. Poeta, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Parte de sua produção poética está no blogue Turista Exilado.
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