Antes de Madonna
Quando chegavam aos 14 anos, os meninos da minha época já suspiravam pelo dia, nem um a mais, nem um a menos, em que completariam os 18. Motivos para essa pressa havia muitos, mas não me recordo de nenhum mais sedutor que o Jussara, cinema que ficava na rua Dom José de Barros, a 50 passos da São João. Dizendo o que disse, afronto outra vez, sei muito bem, a colérica opinião de quem já não era jovem naquele tempo. Para os representantes da meia-idade, tirando alguns irremediavelmente cafajestes, o Jussara era o mais escandaloso símbolo da corrupção.
E o que mais podiam pensar os defensores da moralidade, se nos filmes ali exibidos havia sempre a possibilidade de admirar, entre uma rapidíssima e outra velocíssima tomada de câmara generosas porções do que a França possuía de melhor? Entre os freqüentadores do antro, havia quem jurasse ter visto, em tal ou qual filme, três dedos do exuberante colo de Martine Carol ou quatro dedos das perturbadoras coxas de Françoise Arnoul, deusas da adolescência reprimida.
Aos bem-abastecidos e mal-acostumados jovens de agora, que terão naturalmente dificuldades para entender a comoção provocada nos jovens de daquela época por alguns milímetros, só alguns milímetros de pele acima dos joelhos ou abaixo do pescoço, direi apenas, se já não imaginaram, que não havia nada parecido com as revistas de hoje. Havia Saúde e Nudismo, em que meia dúzia de privilegiados dizia ter visto numa edição qualquer, que os outros nunca encontravam, uma linda mulher demoniacamente despida. Nos exemplares que caíam em minhas mãos havia sempre gente nua, isso havia. Nada, porém, que se parecesse com uma linda mulher demoniacamente despida. Porque a revista era séria e o que queria mostrar eram só os benefícios de uma vida ao ar livre e sem roupa. Infelizmente para nós, meninos carentes que vivíamos por volta do ano 30 a.M. (antes de Madonna), parecia que os campos de nudismo só atraíam mulheres com mais de 60. Se alguma garota andava por lá, certamente era ela a encarregada de tirar as fotos para a revista.
Podíamos também procurar, nas novelas policiais que nossos irmãos velhos amavam tanto, as loiras que apareciam nos escritórios dos detetives, com problemas insolúveis e olhos fatais. Tudo que tínhamos era isso e, neste ponto da crônica, já não haverá, imagino, quem estranhe a ansiedade de cada um de nós para fazer os 18 e ter acesso ao templo da transgressão que era o Jussara. Tive sorte. Assim que comecei a frequentá-lo, chegou ali um filme que por várias semanas atraiu multidões de devassos. Era um dramalhão de uma hora e meia e a única cena que interessava não durava mais de cinco segundos. Era o tempo que a câmera levava para mostrar uma modelo tirando o sutiã na frente de mais dúzia de estudantes de pintura.
Para ver esses cinco segundos, já na primeira sessão, às 10 horas, a sala ficava lotada. Num dos dias em que fui assistir ao filme, na hora de começar a terceira sessão o gerente, desesperado, apelou para a generosidade do distinto público. Quase todos os que tinham entrado às 10 continuavam em seus lugares. Já havia tantos espectadores em pé quanto os sentados e, do lado de fora, 500 impacientes candidatos ensaiavam uma invasão.
A mulher que causou tanto rebuliço não era francesa. Era mexicana e chamava-se Ana Luísa Peluffo. Os rapazes do meu tempo hão de se lembrar dela, como eu me lembrei há uns meses, ao passar de novo diante do templo em que reinavam nossas deusas. Ele ainda está lá. Seu nome não é mais Jussara, mudou para Dom José, mas os cartazes ainda prometem mulheres alucinantes. Fiquei cinco minutos por lá. Não havia fila, não havia ninguém e, quando finalmente um garoto se dispôs a comprar o ingresso, tive pena dele. Porque, ainda que visse muito, ainda que visse tudo, jamais veria os cinco segundos esplêndidos, os cinco segundos mágicos em que Ana Luísa Peluffo tirava os dois pássaros do sutiã.
Em tempo de miojo
Você se lembra, eu sei. De dia talvez não, porque há sempre uma duplicata que é preciso pagar hoje, um relatório que devia ter sido feito ontem, um trabalho que não pode ficar para amanhã. Mas à noite,quando você pega o jornal e passa os olhos sem esperança pela programação de tevê, enquanto no fogão o miojo cumpre seus três minutos de fervura, você se lembra. Eu sei.
Hoje parece mentira. Mas é você mesmo que vai indo ali, onde a Avenida Ipiranga acelera o passo para encontrar a São João. É uma bela mulher a sua. Vocês acabam de ver Liza Minnelli e Joel Grey em Cabaret e vão cantarolando Money Money. O ano? 1972. O Brasil não é o oásis nem o milagre que dizem. Mas você sempre tem algo no bolso, além do lenço e do cigarro. E ainda ninguém fala da Opep. Por isso, entre um bom restaurante a 50 passos e um bom restaurante a 500 passos, você e a mulher decidem que é melhor um ótimo restaurante a 15 quilômetros.
Eram assim suas noites nessa época — um prêmio pelos dias cheios de duplicatas, de relatórios, de trabalho.
Na primeira vez em que foram a um rodízio de carne, vocês resolveram que seria a última. Era humilhação pagar tão pouco por um jantar (graças a Deus, nenhum conhecido ali). Na segunda vez, vocês já acharam que estava um pouco caro. Na terceira, foram a um rodízio recomendado por amigos — perto, bom e barato. A Opep já provocava, então, quase tanto pânico quanto a Aids hoje. E algumas expressões entravam em moda: mais em conta, pechincha, levar vantagem.
Quando apareceram os rodízios de pizza, vocês não foram aderindo logo, não. Vocês resistiram. E no dia em que foram a um (só para conhecer) juraram que nunca mais. Vergonhosamente empanturrados (você 15 pedaços, ela 12), passaram pelo vexame dos vexames: entregar o tíquete ao leão de chácara de dois andares na porta, para sair. Na segunda vez (você 18 pedaços, ela 15), a assobradada figura foi muito simpática. Pegou o tíquete e retribuiu: uma rosa para sua mulher, uma cigarrilha para você. Lembrança da casa. Voltem sempre.
Vocês voltaram muitas vezes. Apesar das toalhas quadriculadas, de plástico, e do aviso cafona pendurado em todas as paredes: Reservamo-nos o direito de suspender o fornecimento, caso haja desperdício. Jantando ali, vocês descobriram que não precisavam almoçar no dia seguinte. Saía bem em conta.
Foi indo assim. Até chegar o tempo em que nem isso dava mais para fazer. Você e a mulher já haviam brigado antes, claro. Mas você lembra bem, foi nessa época que as brigas ficaram mais feias. Você chegava cansado das duplicatas, dos relatórios, do trabalho, ia direto olhar as panelas. E reclamava se não encontrava o jantar pronto. E reclamava se encontrava, porque era sempre aquilo: arroz, feijão e alguma mistura (palavra também recente no seu vocabulário).
Nesse tempo, o carteiro despejava todo dia na caixinha dúzias de cartas que falavam sempre do mesmo assunto. Você só abria para ver o número: 24, 48 ou 72. Eram as horas de prazo que lhe davam para pagar as prestações. Se não, adeus carro, tchau três em um, até nunca mais apartamento.
Vocês já não tinham empregada quando sua mulher voltou a dar aula — primeiro de manhã, depois também à tarde. Vinha morta da escola, às cinco, e tentava pôr a casa em ordem. Às sete, você chegava. Às sete e cinco, ela já sabia que tinha falhado outra vez.
Hoje, preparando o jantar na kitchenette alugada, você se lembra do seu tempo de classe média. E a recordação que machuca mais é a da mulher. Seria bom estar de novo com ela, mesmo que fosse lá no rodízio de toalhas quadriculadas. Mesmo que fosse aqui, dividindo este miojo que você começa a engolir com lágrimas.
Era 68 e você lia Steinbeck
Foi há 20 anos. Ignoro tudo de Andrea nessa época — que idade tinha, quais eram seus sonhos, o que fazia. Não sei se era tímida ou expansiva. Se era contida ou temperamental. Desta Andrea que me intriga, me preocupa e me comove tanto, eu jamais conheci nada além do que ela escreveu na primeira página de um livro, nesse tempo: seu nome e a data (agosto de 68).
Foi belo 1968. Por um momento, o mundo pareceu ter salvação. O amor venceria o ódio, as flores calariam os fuzis. Gandhi andava em Liverpool, com John Lennon, Castro Alves com Daniel Cohn Bendit, em Paris. A praça era dos jovens como o céu era do condor. Os slogans da nova ordem ganhavam as ruas. E houve passeatas, houve comícios, houve manifestações. Lembro disso e me arrepio, por Andrea. Olho fotos desse tempo e a procuro, no meio da multidão. Talvez seja aquela loirinha ali, sacudindo sua faixa: Liberdade para Vladimir Palmeira. Ou a japonesinha com o cartaz quase do tamanho dela: Viva a UNE.
Foi terrível 1968. Por um momento os dominadores temeram perder o controle do mundo. A onda jovem ameaçava conquistar tudo com sua mensagem revolucionária: Faça o amor, não faça a guerra. Acossada, a velha ordem reagiu. E houve cavalos, helicópteros, bombas de gás, tiros. Um deles matou o estudante Édson Luís, no Rio, e os protestos estouraram em todo o País. A Rua Maria Antônia virou praça de guerra, São Paulo virou praça de guerra. Recordo isso e tremo. Porque pode ser Andrea a moreninha que corre lá, perseguida por três policiais. Ou aquela garota assustada, com o rosto ensanguentado, colocada à força no camburão.
Foi assim 1968: belo e terrível, cheio de esperanças e desilusões. Lembra, Andrea? Em janeiro, Christian Barnard faz o primeiro transplante cardíaco. Em abril, Martin Luther King é assassinado. O cirurgião brasileiro Édison Dias Teixeira realiza um transplante pioneiro de pâncreas em maio. Em agosto, a Checoslováquia é invadida pelas tropas do Pacto de Varsóvia. A guerra do Vietnã e o drama de Biafra roem como um câncer o coração da humanidade. Foi um tempo de perdas para a literatura: morrem Stanislaw Ponte Preta, Lúcio Cardoso, Manuel Bandeira. A intolerância, que teve o seu ano de ouro em todo o mundo, produziu no Brasil espancamentos, perseguições, torturas e a vergonha maior do AI-5, em dezembro.
Num dia qualquer do oitavo mês desse ano mais terrível que belo, uma caneta escreveu num exemplar do romance O inverno da nossa desesperança, de John Steinbeck: Andrea — agosto de 68. Quatro meses depois, em 20 de dezembro, o próprio Steinbeck ampliava a lista dos infortúnios desse tempo, com sua morte. Em 1986, passadas quase duas décadas, encontrei o livro num sebo da Vila Mariana. Não é o melhor de Steinbeck. Não tem a força de As vinhas da ira ou Ratos e homens nem o lirismo machucado de A rua das ilusões perdidas. É um Steinbeck menor, embora sempre um Steinbeck: humano, digno, comovente. Para mim, desde o começo, foi o Steinbeck de Andrea. Li as 373 páginas imaginando o que ela havia sentido em cada passagem dessa amarga história de um derrotado, tão parecida com a de tantos outros, naquele agosto: morto o sonho de transformar o mundo, vivíamos os primeiros dias do inverno da nossa desesperança.
Lembra, Andrea?
[Do livro Antes de Madonna. Editora Olho Dágua, 1994]
março, 2020
Raul Drewnick: nasci em 1938 e aos doze anos, posso dizer que já estava definitivamente viciado em literatura. De lá para cá, venho importunando leitores com minhas tentativas em prosa e verso. Não tenho livro de poesia, mas publiquei duas dezenas de novelas para o público jovem (a maioria para a coleção Vaga-Lume). Fui cronista do Estadão, Veja, Jornal da Tarde, Claudia e Diário Popular.
Mais Raul Drewnick na Germina
> Poesia