©michael gaida

 
 
 
 
 
 
 

Eclesiastes



Você bate na mesma tecla, repete

aquele surrado clichê: não há nada

de novo sob o sol. Mas quem garante

que isto é real, não um conto de fada?


Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,

a mesma coisa desde o começo

dos tempos. Não estou convencido.

Se há algo que não muda, desconheço.


Nem sempre o vento é sul, nem todo rio 

segue pro mar. O que está acontecendo agora,

por exemplo, não era pra acontecer. Ora,

você nunca viu este filme. Fica frio:


Não há nada de novo sob o sol

só para o sol, que é sempre o mesmo.

Esta é a verdade toda, não se dissol-

ve numa rima ou pensamento a esmo.


Aqui embaixo, tudo muda, todo dia:

a moda, o medo, e mesmo a luz do sol

passa dias assim, arredia, e me arrepia

pensar que é diferente. Olha só:


Pare de ficar repetindo isso. Acorda. Mete

em sua cabeça de uma vez por todas:

nenhum sol se põe a oeste. E este

poema, eu sei, nem ele existe. É foda.







Um sonho



Nas ruínas dos shoppings, nas ruas vazias

de uma metrópole em miniatura, sem nome,

o mato dominando tudo. Ruídos estranhos.


Vitrines quebradas lembrando teias de aranha,

caixas de produtos, bolor, pôsteres manchados 

de sangue. Um telefone público tocando para ninguém.


Elevadores, escadas rolantes (ainda funcionam)

E você alcança o quarto 2014 através

das barbas-de-velho e goteiras nos corredores.


Labirinto de imagens, HOTEL HADES, fantasmas

da amnésia afetiva. Você não só jamais esteve aqui

Como percebe um bilhete diante da porta


a seus pés, onde se lê:

Faltam só mais alguns segundos 

para Nada acontecer.







Famosos I



Superdecotada, Sylvia Plath é flagrada em shopping e posa para fotógrafos.


Paul Verlaine fica noivo de Arthur Rimbaud. Veja aliança.


Saiba como Jane Austen perdeu peso após a gravidez.


Lou Salomé: preferia o paredão a ficar com Nietzsche no BBB.


"Bunda foi importante", mas não sou só isso, diz Emily Dickinson. Confira ensaio.


Preço da fama: Charles Baudelaire não consegue lidar com assédio da imprensa e de fãs.


Assessoria nega que Samuel Beckett vá deixar Lost.


Victor Hugo faz selfie com Stephane Mallarmé em rede social.


Declaração de Salinger no Facebook reacende polêmica sobre celebridade.


"Pode parecer superficial, mas gosto de ser alta", diz Virginia Woolf pelo twitter.


"Meu cabelo está ligado a minha cabeça e a de mais ninguém", diz Antonin Artaud, sobre as críticas que recebeu pelo corte de cabelo.


Jorge Luis Borges diz que não se incomoda com alfinetadas de Manuel Bandeira.


Marshall McLuhan é alvo de inveja na Globo.


"Porque eu tenho uma relação péssima com a balança. É um horror", diz Oscar Wilde 


DJ Marcel Duchamp curte balada em Jurerê Internacional.


Jack London: beijar Stálin foi asqueroso.


De biquíni em Cannes, Gertrude Stein revela estar acima do peso.


Lilya Brik e Maiakovsky assumem namoro. Veja quem já ficou com quem.


MC Cruz e Souza leva seus filhos para brincar na orla do Leblon.


Após testar prótese capilar, Sigmund Freud assume de vez a calvície.


A barriga não me atrapalha em nada, diz Oswald de Andrade em megaevento.


"Se o porteiro do prédio também pode ir assistir aos musicais da Broadway, então qual a graça?", diz Karl Marx em rede social.


Modelo diz que Claude Debussy tentou chantageá-la durante show.


Allen Ginsberg sobre nova parceria com Jack Kerouac. "Temos sintonia".


Filho de Ludwig Wittgenstein se encanta com cachorro durante passeio em Ipanema.


"Não caiu a ficha", diz Walt Whitman, depois do primeiro lugar em A Fazenda.







Famosos II



Bisneta de Agatha Christie, famosa escritora de autoajuda, se suicida em Londres.


Graciliano Ramos e Clarice Lispector malham juntos em academia.


Villa-Lobos revela detalhes de sua nova turnê, intitulada 'Talvez'.


Saí do Facebook: diz Henry Thoreau em manifestação Black Bloc.


'O dia em que eu tiver que apagar a luz para namorar vou correndo fazer plástica', diz jovem poetisa Safo em talk show.


Filho brasileiro de Picasso revela: "Ninguém pinta como eu pinto".


Roberto Bolaño alfineta críticos postando foto sensual de madrugada.


Mônica e Cebolinha interpretam Romeu e Julieta em musical. 


'O meu personagem é um chato', diz Machado de Assis sobre Bentinho.


Chega ao fim o casamento de Frida Khalo e Diego Rivera. Relembre a história do casal.


Ator de "Eu", Augusto dos Anjos Jr. dá show de antipatia no Projac.


Sou um poeta coxinha, confessa Olavo Bilac na Feira de Frankfurt.


Beckett revela, na FLIP: "Eu escrevi Finnegan's Wake. Joyce ditava. Mas eu escrevia".







Notícias do mundo



Águas muezins no vale das sombras

África agoniza

Iraque se debate

Índia se indigna

Impérios definham

Morro em guerra fratricida

Irã se ira

Um terrorista que se aterroriza

Palestinos palestram

Arábia se ouriça

Europa se gripa. 

Mentiras, mentiras.

O mundo é um parque de mentiras.

Diplomacia

Na mão de ignorantes

Nada vale, vale nada.

Barbárie é o nome

Dessas notícias.

Mundo implodindo

Rumo à extinção

Não atenção ao ser, mas atentados ao ser,

Mundo confluindo

Para uma desaparição

Onde, quem ficar, se der, vai ver.

E, no entanto, eu aqui

à sombra de um pensamento

de um amor que seja um lugar,

um lugar como um pensamento.

Mas isto é ir muito longe:

Isto é acordar.







A última viagem



Pisou na praia

pela primeira vez 

em séculos —

Gaivotas o vigiavam.

Olor de algas. 

O vento salino, ardente e Sul.

Odisseu desceu 

da balsa murmurando

alguma coisa para si

num dialeto quase extinto.

Arrumou os remos, poucos peixes,

sob a música de um alto-falante

contra um por de sol salmão.

Depois, viu as lâmpadas frouxas 

piscando nas casas do povoado.

Maresia de maconha alcançou suas narinas. 

Funk. 

Risadas altas.

Nenhum pescador o reconheceu.

Penélope nunca existira.

Aquela não era sua lenda.

Ítaca nunca existira.

Odisseu virou-se para a praia sem história

e nada disse:

acendeu um cigarro e contemplou

o azul escuro absurdo do mar noturno

contra as linhas brancas incansáveis 

da arrebentação.







Império dos segundos



Se eu fosse parar pra saber

o sabor deste instante

não iria jamais perceber

do que é feito o durante,


a carne de cada segundo,

minuto de cada poente

de que é feito este mundo,

sangue, esperma, poeira,


não ia jamais me lembrar

da trama da tarde, museu

onde moram as velhas horas,

nem o duro rosto deste outro 


outono, matéria, mistério, 

nem a memória, esse mármore

em fluxo, rugido em estéreo

de uma incessante cachoeira.







Tempos de celebridade



Carlos, na próxima encadernação

Nascerei filho de alguém famoso.

E então, como um cão raivoso,

Não largarei meu precioso osso.


Quem disse que é preciso ler,

Ter talento? Não seja ridículo.

Esforço é coisa de otário. 

Meu sobrenome será meu currículo.


Vou escrever uns poemas fofos 

Umas cançõezinhas ordinárias 

Com uma certeza: o Brasil nunca saiu

Das capitanias hereditárias.







Idílio



Uma carroça passa

pesada de acácias.


O mar e seu manto

de brancas feridas.


Mãos frias naufragam

na manhã sem lábios.


Árvores eriçadas. Luz antiga.

Estilhaços de névoa.


Revoada de pássaros negros.

Sombras em carne viva.







Janelas para o mundo



"The word is a window onto reality".

Zbigniew Herbert



O mundo passa

pela janela da palavra

para tocar a realidade


mas a realidade 

de repente se fecha 

na imagem de uma concha:


uma concha 

é um mundo onde

coube uma palavra.


Isto nos basta:

fechamos as palavras das janelas

e abrimos as janelas das palavras.



dezembro, 2020



Rodrigo Garcia Lopes (Londrina/PR, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor, ensaísta e jornalista. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias (2015) e O Enigma das ondas (2020). É autor do romance policial O Trovador (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2015). De 2002 a 2014, foi coeditor da revista de arte e literatura Coyote.


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