Eclesiastes
Você bate na mesma tecla, repete
aquele surrado clichê: não há nada
de novo sob o sol. Mas quem garante
que isto é real, não um conto de fada?
Nem tudo tem sido, como se tem ouvido,
a mesma coisa desde o começo
dos tempos. Não estou convencido.
Se há algo que não muda, desconheço.
Nem sempre o vento é sul, nem todo rio
segue pro mar. O que está acontecendo agora,
por exemplo, não era pra acontecer. Ora,
você nunca viu este filme. Fica frio:
Não há nada de novo sob o sol
só para o sol, que é sempre o mesmo.
Esta é a verdade toda, não se dissol-
ve numa rima ou pensamento a esmo.
Aqui embaixo, tudo muda, todo dia:
a moda, o medo, e mesmo a luz do sol
passa dias assim, arredia, e me arrepia
pensar que é diferente. Olha só:
Pare de ficar repetindo isso. Acorda. Mete
em sua cabeça de uma vez por todas:
nenhum sol se põe a oeste. E este
poema, eu sei, nem ele existe. É foda.
Um sonho
Nas ruínas dos shoppings, nas ruas vazias
de uma metrópole em miniatura, sem nome,
o mato dominando tudo. Ruídos estranhos.
Vitrines quebradas lembrando teias de aranha,
caixas de produtos, bolor, pôsteres manchados
de sangue. Um telefone público tocando para ninguém.
Elevadores, escadas rolantes (ainda funcionam)
E você alcança o quarto 2014 através
das barbas-de-velho e goteiras nos corredores.
Labirinto de imagens, HOTEL HADES, fantasmas
da amnésia afetiva. Você não só jamais esteve aqui
Como percebe um bilhete diante da porta
a seus pés, onde se lê:
Faltam só mais alguns segundos
para Nada acontecer.
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Notícias do mundo
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Iraque se debate
Índia se indigna
Impérios definham
Morro em guerra fratricida
Irã se ira
Um terrorista que se aterroriza
Palestinos palestram
Arábia se ouriça
Europa se gripa.
Mentiras, mentiras.
O mundo é um parque de mentiras.
Diplomacia
Na mão de ignorantes
Nada vale, vale nada.
Barbárie é o nome
Dessas notícias.
Mundo implodindo
Rumo à extinção
Não atenção ao ser, mas atentados ao ser,
Mundo confluindo
Para uma desaparição
Onde, quem ficar, se der, vai ver.
E, no entanto, eu aqui
à sombra de um pensamento
de um amor que seja um lugar,
um lugar como um pensamento.
Mas isto é ir muito longe:
Isto é acordar.
A última viagem
Pisou na praia
pela primeira vez
em séculos —
Gaivotas o vigiavam.
Olor de algas.
O vento salino, ardente e Sul.
Odisseu desceu
da balsa murmurando
alguma coisa para si
num dialeto quase extinto.
Arrumou os remos, poucos peixes,
sob a música de um alto-falante
contra um por de sol salmão.
Depois, viu as lâmpadas frouxas
piscando nas casas do povoado.
Maresia de maconha alcançou suas narinas.
Funk.
Risadas altas.
Nenhum pescador o reconheceu.
Penélope nunca existira.
Aquela não era sua lenda.
Ítaca nunca existira.
Odisseu virou-se para a praia sem história
e nada disse:
acendeu um cigarro e contemplou
o azul escuro absurdo do mar noturno
contra as linhas brancas incansáveis
da arrebentação.
Império dos segundos
Se eu fosse parar pra saber
o sabor deste instante
não iria jamais perceber
do que é feito o durante,
a carne de cada segundo,
minuto de cada poente
de que é feito este mundo,
sangue, esperma, poeira,
não ia jamais me lembrar
da trama da tarde, museu
onde moram as velhas horas,
nem o duro rosto deste outro
outono, matéria, mistério,
nem a memória, esse mármore
em fluxo, rugido em estéreo
de uma incessante cachoeira.
Tempos de celebridade
Carlos, na próxima encadernação
Nascerei filho de alguém famoso.
E então, como um cão raivoso,
Não largarei meu precioso osso.
Quem disse que é preciso ler,
Ter talento? Não seja ridículo.
Esforço é coisa de otário.
Meu sobrenome será meu currículo.
Vou escrever uns poemas fofos
Umas cançõezinhas ordinárias
Com uma certeza: o Brasil nunca saiu
Das capitanias hereditárias.
Idílio
Uma carroça passa
pesada de acácias.
O mar e seu manto
de brancas feridas.
Mãos frias naufragam
na manhã sem lábios.
Árvores eriçadas. Luz antiga.
Estilhaços de névoa.
Revoada de pássaros negros.
Sombras em carne viva.
Janelas para o mundo
"The word is a window onto reality".
Zbigniew Herbert
O mundo passa
pela janela da palavra
para tocar a realidade
mas a realidade
de repente se fecha
na imagem de uma concha:
uma concha
é um mundo onde
coube uma palavra.
Isto nos basta:
fechamos as palavras das janelas
e abrimos as janelas das palavras.
dezembro, 2020
Rodrigo Garcia Lopes (Londrina/PR, 1965) é poeta, romancista, tradutor, compositor, ensaísta e jornalista. Publicou os livros de poesia Solarium (1994), Visibilia (1996), Polivox (2002), Nômada (2004), Estúdio realidade (2013), Experiências extraordinárias (2015) e O Enigma das ondas (2020). É autor do romance policial O Trovador (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2015). De 2002 a 2014, foi coeditor da revista de arte e literatura Coyote.
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