©mikolaj krawczunas
 
 
 
 
 
 
 

"Não sei como vieste,

mas deve haver um caminho

para regressar da morte".

Eugénio de Andrade

 

"o amor nunca terminará"

I coríntios 13,8

 

 

I

 

 

dentro do teu silêncio remendar a luz,

minha mãe, senhora das chuvas,

escuta de longe as minhas preces.

 

Dá-me uma ideia do teu nome,

Quero invocá-lo,

quando a noite me atravessar.

 

Dá-me uma ideia dos teus olhos,

aqueles nos quais existíamos

antes de ser paridos no tempo.

 

Dá-me uma ideia da tua voz,

nela alimente a minha língua.

 

Dá-me por último um balanço

Dependurado no teu riso!

 

 

 

 

 

 

II

 

 

Querida ciranda

te escrevo por dentro da saudade

estou aos poucos deixando-te ir.

 

Já não recordo quando permanecia

ouvindo o riso das goiabas.

 

Mas ainda te escuto

a tua memória cisca o meu peito

a tua voz espanca os meus olhos.

 

Não sei sustentar o teu adeus

pelas paredes do meu ventre

alastra-se uma seara de pregos

 

choro para coar o teu sorriso

doem-me as gretas da memória!

 

Na falta que me fazes

bordo uma manta de chuvas,

nela costuro a tua ausência.

 

 

 

 

 

 

III

 

 

Dependurado no teu riso balancei,

quando nos monturos acendíamos círios

mãe dos lírios e das chuvas.

 

Abríamos casas dentro dos salmos

cantávamos de deus o nome soterrado.

 

Coávamos no coração o tempo

colhíamos evangelhos na voz das cigarras.

 

E tudo se fez tão inútil!

 

Minha mãe, senhora das chuvas,

olhai-me brincando de ser andorinha.

 

Abençoai os meus voos

acompanhai as minhas quedas.

 

Dos meus passos os cipós

ajudai-me a cortar.

 

Peneirai nos meus olhos

o teu riso triste.

 

 

 

 

 

 

IV

 

 

Conheço os teus olhos entristecidos

pequena criança do peito mendigo.

 

Também um dia fui igual a ti

banhei nos córregos de Minas

comi mangas contemplando o céu.

 

Imaginei nas goiabas a casa

tentei entrar no silêncio de deus.

 

Também fui filho da paisagem

que hoje os teus olhos comem.

 

Também debrucei no horizonte

e beijei os brejos no evangelho.  

 

Também me fiz andarilha

chupei no silêncio os orvalhos

madurei os olhos na ausência.

 

 

 

 

 

 

V

 

 

Essa criança a lambuzar os dedos de manga

é a mesma sentado frente ao sacrário.

 

Senhora das chuvas, escutai-me outra vez,

perdoai-nos este século de monturos

o horizonte esfaqueado na música.

 

Dá-me outra vez a esperança

com ela descerei aos campos de Minas

banharei no córrego

enxugarei os remendos antigos.

 

Senhora dos lírios, descei conosco,

baixai do teu silêncio, inclinai teus olhos.

 

Dentro de ti costurarei os remendos

juntarei na margem os troncos apodrecidos

 

com eles construirei a jangada

em vigília esperarei pela travessia.

 

 

 

 

 

 

VI

 

 

Dentro da linguagem construir o ninho,

toda palavra é barroca no silêncio.

 

Sustentar o mundo pela linguagem:

eterna liturgia dos poetas,

costurar na fala a ilusão.

 

É de silêncio o destino do mundo,

última sinfonia por tocar.

 

Minha ciranda; ficai comigo!

Não dobres ainda a roupa

costurai mais tempo na tua vida

remendemos-te,

é possível?

 

Observai comigo os arames esticados

comprai os fogos e sente-se aqui

celebremos de aparecida a festa.

 

Trazei a lenha para os biscoitos,

permanecei comigo.

 

Sei que já partiste

mas não sei deixá-lo ir.

 

 

 

 

 

 

VII

 

 

A festa foi linda naquela tarde

dentro dos biscoitos flutuava o amor.

 

Ainda soa o repique dos sinos

no barco que trago dentro de mim.

 

Aqueles fogos partiram-me

rezei baixo para ouvir o maravilhado.

 

Senhora das chuvas, escutai-me!

Estendei as rodagens,

lá dançarei outras cirandas.

 

Outras enxurradas comerão o solo

e a bíblia de vagalumes iluminar

o peito triste de algum poeta.

 

Reze também, senhora dos lírios,

ouça na saudade o meu nome

já agora transfigurado.

 

 

 

 

 

 

VIII

 

 

Meu filho partiu antes de mim

deixou uma borboleta rasgando meu útero

um cardume de facas mordendo meus  olhos

um berço afogado balançando no meu riso.

 

De noite grito seu nome por dentro

viajo onde o silêncio é incapaz de me abraçar

danço com ele um samba despencado

finco seu tempo na saudade que me come.

 

Meu filho chupou dos meus olhos a candeia

tirou do meu corpo o trajeto da barca

fez-se foz para o meu rio.

 

Inventou-me um mar de monturos.

Chapéu de memórias tapando-me a chuva.

 

Meu filho partiu antes de mim

levou no seu bojo o meu tempo de existir!

 

 

 

 

 

 

IX

 

 

perdoa-me mãe ter morrido tão cedo

quando ainda escrevíamos o mesmo poema

 

perdoa-me as rosas não desabrochadas

os bueiros abertos no teu sorriso

 

perdoa-me essa casa de saudades

que deixei alicerçada no teu coração

 

perdoa-me a falta de telhados

não tapar a noite que em ti deixei

 

perdoa-me senhora dos lírios

os rasgos que em ti não remendei

 

agora sou eu que chovo em ti

deixei-te deserto o útero

 

alguém saberá ler no teu corpo

o abraço escrito pela minha falta?

 

algum poço acolherá as lágrimas

que a minha morte plantou em ti?

 

perdoa-me ter quebrado a tua música

e roubado os pássaros do teu riso.

 

 

 

 

 

 

X

 

 

Meu filho comeu rápido o tempo

deixou por consagrar uma eucaristia

 

rompeu um dique de borboletas

no outro lado do inacessível.

 

 

 

 

 

 

XI

 

 

Mãe:

escuta-me ?

 

Dentro do teu silêncio remendar a luz

 

sei que ainda me falas

posso ouvir os teus olhos tristes

 

na tua memória me fizeste

um ninho impossível de destruir

 

Na tua lágrima chovo

plantamos estradas na saudade

 

algum dia virás a mim?

 

 

 

 

 

 

XII

 

 

Meu filho morreu antes de ser tempo

no interior do silêncio capinei a dor

nasceu-me uma candeia de solidões

não pude acolher o eterno pretérito.

 

Meu filho se fez um sino dobrando

ficou no útero que levo lavrado

uma música de olhos amontoados

um deserto que ainda me come.

 

Meu filho foi comido pela ausência

deixou nas noites uma canção mordida

erosou meus passos

estancou meu tempo na saudade.

 

Meu filho nasceu onde não o vejo

deixou em mim uma bíblia de lágrimas.

Folheio na noite seus cantares

tentando cavar para a dor um descanso.

 

 

 

 

 

 

XIII

 

 

Mãe:

Fraturei-te o tempo por existir

descosturei-te os evangelhos,

abri um brejo nos teus olhos cansados.

 

Vejo-te sentada no batente

descascando a dor nos crepúsculos.

 

Às vezes desço em um raio de sol

toco-te a pele, acaricio os teus cabelos,

conjugo contigo a falta.

 

então chove

e choras.

 

 

 

 

 

 

XIV

 

 

Meu filho partiu cedo

deixou secar em meu corpo

as ramas do feijão.

 

Nunca mais soube cozinhar

depois de vê-lo partir.

 

Guardei dentro a janela

outrora aberta para as rosas.

 

As formigas não voltaram

faziam-lhes falta escutar

a voz dele dizendo o universo.

 

Deixei costurar meu afeto

por um abraço impossível.

 

Fez-se feroz a ciranda

comeu-me tudo aqui dentro.

 

Meu corpo acolheu monturos

no lugar onde ele balançava.

 

Meu filho partiu cedo

levou consigo o meu barco.

 

 

 

 

 

 

XV

 

 

Ontem estávamos todas à mesa

tinha biscoitos junto aos queijos

 

o perfume da alegria crescia

por todas as grotas do corpo.

 

hoje não estamos todos à mesa

há biscoitos juntos aos queijos

 

o perfume da dor cresce

por todos as grotas do corpo

 

sou eu que falto

e todos falam de mim

 

do lado de cá do silêncio

escuto-os falar 

 

nos olhos da mãe está escrito:

Não me rebentes a última corda!

 

 

 

 

 

 

XVI

 

 

Meu filho partiu cedo

sua morte apagou todas as coivaras

meu útero nunca mais cantou

 

por que é que insistem em falar?

 

Em cada lugar do meu abraço

dói-me a ausência daquela voz dizendo:

a bênção, mãe!

 

Será que sabem que em mim

meu filho ainda não partiu?

 

Meu filho se foi

Abriu-se em mim uma barroca

queimaram-me todas as flautas,

um mar de brasas invadiu os meus olhos,

por isso choro!

 

Em cada palavra o silêncio sangra,

não sei costurar para tapar essa dor.

 

Ficou as cinzas rodeando meu coração

nasceu-me um dique de fraturas;

nenhum poema é capaz de furá-lo!

 

 

 

 

 

 

XVII

 

 

O teu corpo diz-me!

Sou no teu nome um buraco

um cacto debruçado no teu colo

nos teus dedos uma viola fraturada.

 

Os teus abraços na noite se estendem

como apanhadores de algodão

e só a dor lhes espera.

 

Nenhum fruto, nenhuma semente.

 

E sei que afogo os teus olhos

o tempo de vida que ainda me restava

 

a tua mão passeia pelo ventre,

tão vazio, tão inabitável!

 

Ter de morrer doeu em mim

moeu-me o corpo, a morte.

 

 

 

 

 

 

XVIII

 

 

Quando a tua vida deixou de pertencer a este mundo- dobrei os olhos para dentro das lágrimas — anos depois choveu. nenhuma gota pode sarar em mim o deserto. nunca mais cresceram jardins no meu útero —

 

De noite, quando deito, uma ciranda brota no meu ventre e outra vez os meus olhos se embrejam.

 

Em algum lugar a tua mão se levanta, sustentando a minha dor!

 

será que me escutas?

 

 

 

 

 

 

XIX

 

 

Começo a morrer dentro de ti

embora no silêncio ainda me abraças

 

escorrego da tua saudade

já não lembras tudo sobre mim

 

estão brancos os teus cabelos

tantos anos se passaram

 

sou agora um retrato

fincado na parede do quarto

 

já na mesa ninguém fala

dos meus sonhos de infância

 

quando lhe perguntam

quantos filhos tens

já não dizes o meu nome

 

tenho morrido aos poucos

na falta que já não lhe faço

 

 

 

 

 

 

XX

 

 

Quando olhar nos meus olhos

procure não ver o berço quebrado

essa criança morreu

e dói!

 

Feito casca de manga

atirada debaixo da porteira

escorregamos.

 

É tanto tempo para fincar

e nenhum para colher.

 

Essa criança deixou de ser

só o seu choro espanca meu útero.

 

Quando olhar nos meus olhos

procure não ver os sapatos de lã.

 

Não me desvista a dor,

ajuda-me a semear espelhos de riso

no interior do corpo.

 

 

 

 

 

 

XXI

 

 

Mãe

sei que desde que me fui

o teu ventre não deixou de dizer adeus

 

e no teu riso se alastrou

uma roseira de lágrimas

 

depois de tanto tempo

a senhora insiste em me regar

 

sou no teu peito um jardim

que nunca deixaste de visitar.

 

 

 

 

 

 

XXII

 

 

Meu filho deixou de existir no tempo

meu coração molhou-se lentamente.

 

Feito uma brasa fiquei

arderam meus olhos de tanta água.

 

Meu filho foi tocar nos pássaros

fez-se nuvem, fez-se estrela,

foi cantar do outro lado

fez-se chuva em um fim de tarde.

 

Ele pariu em mim a distância

buraco impossível de tapar.

 

Eu que te havia trazido ao mundo

não soube mais navegar à noite.

 

Meu filho foi costurar em deus

cavou uma casa na eternidade.

 

Fiquei gritando pelo seu nome

chupando no peito a dor da saudade.

 

Ele plantou em mim uma roseira

um jardim inabitável

 

às vezes passeio nele

cheiro paisagens do seu corpo.

 

É triste ouvir de longe

aquela voz que já não conheço.

 

 

 

 

 

 

XXIII

 

 

Mãe

a tua voz visita a minha morte

do outro lado do riso

 

ontem jogaste fora

as roupas que tanto usei

 

sou agora em ti

um coral de lembranças

 

embora ainda doa

já podes viver sem mim

 

hoje você voltou

ao carinho que eu brincava

 

a verdade é que em ti

eu nunca morri.

 

 

 

 

 

 

XIV

 

 

A tua morte não morreu em mim,

embora queime as suas roupas

mesmo que dos teus cabelos

só reste uma vaga lembrança.

 

A tua morte acendeu nos meus olhos

a goiaba crepuscular,

dentro dela construo um oratório

onde ajoelho as lágrimas.

 

alguém me diz a palavra eternidade

com tamanha certeza

como se fossem pingos d'água

beijando o centro das rosas.

 

eu nada digo,

avisto de longe um pássaro cansado

levo no ventre o berço fraturado

no peito a palavra atracada

 

tu nunca morrerás em mim

serás sempre uma canoa furada.

 

 

 

 

 

 

XXV

 

 

Despedimo-nos sempre muito cedo

há tanto tempo que me fui

 

sei que virás mãe

para esse lado que desconheço

 

nunca terminei de morrer

porque não te dei o último abraço

 

porque na tua música

deixei ser um instrumento

 

agora que lhe vejo frágil

com tanto tempo passado

 

agora que nas tuas fotos

estás cada vez mais distante

 

sinto que estás perto

que o teu jardim me abraça

 

e deste lado desconhecido

os meus dias esperam por ti

 

é sempre pouco o tempo mãe

e a saudade nunca termina

mesmo depois do abraço

 

porque nunca terminamos de ser

aquilo que o outro esperava.

 

 

 

 

 

 

XVI

 

 

não sei se existe um deus

só sei que o meu filho morreu!

 

 

 

março, 2020

 

 

Sandrio Cândido (Minas Novas/MG, 1991). Afro-brasileiro, poeta, professor, graduado em Filosofia; é autor do livro Epifania (Patuá, 2014), e possui poemas publicados em várias plataformas digitais (Revistas Mallarmargens, Diversos Afins, Zunái etc.). Atualmente, reside na cidade de Cali, na Colômbia, e está trabalhando no seu próximo livro, Morar, que será publicado em 2020 pela Nosotros Editorial. 

 

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