"Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte".
Eugénio de Andrade
"o amor nunca terminará"
I coríntios 13,8
I
dentro do teu silêncio remendar a luz,
minha mãe, senhora das chuvas,
escuta de longe as minhas preces.
Dá-me uma ideia do teu nome,
Quero invocá-lo,
quando a noite me atravessar.
Dá-me uma ideia dos teus olhos,
aqueles nos quais existíamos
antes de ser paridos no tempo.
Dá-me uma ideia da tua voz,
nela alimente a minha língua.
Dá-me por último um balanço
Dependurado no teu riso!
II
Querida ciranda
te escrevo por dentro da saudade
estou aos poucos deixando-te ir.
Já não recordo quando permanecia
ouvindo o riso das goiabas.
Mas ainda te escuto
a tua memória cisca o meu peito
a tua voz espanca os meus olhos.
Não sei sustentar o teu adeus
pelas paredes do meu ventre
alastra-se uma seara de pregos
choro para coar o teu sorriso
doem-me as gretas da memória!
Na falta que me fazes
bordo uma manta de chuvas,
nela costuro a tua ausência.
III
Dependurado no teu riso balancei,
quando nos monturos acendíamos círios
mãe dos lírios e das chuvas.
Abríamos casas dentro dos salmos
cantávamos de deus o nome soterrado.
Coávamos no coração o tempo
colhíamos evangelhos na voz das cigarras.
E tudo se fez tão inútil!
Minha mãe, senhora das chuvas,
olhai-me brincando de ser andorinha.
Abençoai os meus voos
acompanhai as minhas quedas.
Dos meus passos os cipós
ajudai-me a cortar.
Peneirai nos meus olhos
o teu riso triste.
IV
Conheço os teus olhos entristecidos
pequena criança do peito mendigo.
Também um dia fui igual a ti
banhei nos córregos de Minas
comi mangas contemplando o céu.
Imaginei nas goiabas a casa
tentei entrar no silêncio de deus.
Também fui filho da paisagem
que hoje os teus olhos comem.
Também debrucei no horizonte
e beijei os brejos no evangelho.
Também me fiz andarilha
chupei no silêncio os orvalhos
madurei os olhos na ausência.
V
Essa criança a lambuzar os dedos de manga
é a mesma sentado frente ao sacrário.
Senhora das chuvas, escutai-me outra vez,
perdoai-nos este século de monturos
o horizonte esfaqueado na música.
Dá-me outra vez a esperança
com ela descerei aos campos de Minas
banharei no córrego
enxugarei os remendos antigos.
Senhora dos lírios, descei conosco,
baixai do teu silêncio, inclinai teus olhos.
Dentro de ti costurarei os remendos
juntarei na margem os troncos apodrecidos
com eles construirei a jangada
em vigília esperarei pela travessia.
VI
Dentro da linguagem construir o ninho,
toda palavra é barroca no silêncio.
Sustentar o mundo pela linguagem:
eterna liturgia dos poetas,
costurar na fala a ilusão.
É de silêncio o destino do mundo,
última sinfonia por tocar.
Minha ciranda; ficai comigo!
Não dobres ainda a roupa
costurai mais tempo na tua vida
remendemos-te,
é possível?
Observai comigo os arames esticados
comprai os fogos e sente-se aqui
celebremos de aparecida a festa.
Trazei a lenha para os biscoitos,
permanecei comigo.
Sei que já partiste
mas não sei deixá-lo ir.
VII
A festa foi linda naquela tarde
dentro dos biscoitos flutuava o amor.
Ainda soa o repique dos sinos
no barco que trago dentro de mim.
Aqueles fogos partiram-me
rezei baixo para ouvir o maravilhado.
Senhora das chuvas, escutai-me!
Estendei as rodagens,
lá dançarei outras cirandas.
Outras enxurradas comerão o solo
e a bíblia de vagalumes iluminar
o peito triste de algum poeta.
Reze também, senhora dos lírios,
ouça na saudade o meu nome
já agora transfigurado.
VIII
Meu filho partiu antes de mim
deixou uma borboleta rasgando meu útero
um cardume de facas mordendo meus olhos
um berço afogado balançando no meu riso.
De noite grito seu nome por dentro
viajo onde o silêncio é incapaz de me abraçar
danço com ele um samba despencado
finco seu tempo na saudade que me come.
Meu filho chupou dos meus olhos a candeia
tirou do meu corpo o trajeto da barca
fez-se foz para o meu rio.
Inventou-me um mar de monturos.
Chapéu de memórias tapando-me a chuva.
Meu filho partiu antes de mim
levou no seu bojo o meu tempo de existir!
IX
perdoa-me mãe ter morrido tão cedo
quando ainda escrevíamos o mesmo poema
perdoa-me as rosas não desabrochadas
os bueiros abertos no teu sorriso
perdoa-me essa casa de saudades
que deixei alicerçada no teu coração
perdoa-me a falta de telhados
não tapar a noite que em ti deixei
perdoa-me senhora dos lírios
os rasgos que em ti não remendei
agora sou eu que chovo em ti
deixei-te deserto o útero
alguém saberá ler no teu corpo
o abraço escrito pela minha falta?
algum poço acolherá as lágrimas
que a minha morte plantou em ti?
perdoa-me ter quebrado a tua música
e roubado os pássaros do teu riso.
X
Meu filho comeu rápido o tempo
deixou por consagrar uma eucaristia
rompeu um dique de borboletas
no outro lado do inacessível.
XI
Mãe:
escuta-me ?
Dentro do teu silêncio remendar a luz
sei que ainda me falas
posso ouvir os teus olhos tristes
na tua memória me fizeste
um ninho impossível de destruir
Na tua lágrima chovo
plantamos estradas na saudade
algum dia virás a mim?
XII
Meu filho morreu antes de ser tempo
no interior do silêncio capinei a dor
nasceu-me uma candeia de solidões
não pude acolher o eterno pretérito.
Meu filho se fez um sino dobrando
ficou no útero que levo lavrado
uma música de olhos amontoados
um deserto que ainda me come.
Meu filho foi comido pela ausência
deixou nas noites uma canção mordida
erosou meus passos
estancou meu tempo na saudade.
Meu filho nasceu onde não o vejo
deixou em mim uma bíblia de lágrimas.
Folheio na noite seus cantares
tentando cavar para a dor um descanso.
XIII
Mãe:
Fraturei-te o tempo por existir
descosturei-te os evangelhos,
abri um brejo nos teus olhos cansados.
Vejo-te sentada no batente
descascando a dor nos crepúsculos.
Às vezes desço em um raio de sol
toco-te a pele, acaricio os teus cabelos,
conjugo contigo a falta.
então chove
e choras.
XIV
Meu filho partiu cedo
deixou secar em meu corpo
as ramas do feijão.
Nunca mais soube cozinhar
depois de vê-lo partir.
Guardei dentro a janela
outrora aberta para as rosas.
As formigas não voltaram
faziam-lhes falta escutar
a voz dele dizendo o universo.
Deixei costurar meu afeto
por um abraço impossível.
Fez-se feroz a ciranda
comeu-me tudo aqui dentro.
Meu corpo acolheu monturos
no lugar onde ele balançava.
Meu filho partiu cedo
levou consigo o meu barco.
XV
Ontem estávamos todas à mesa
tinha biscoitos junto aos queijos
o perfume da alegria crescia
por todas as grotas do corpo.
hoje não estamos todos à mesa
há biscoitos juntos aos queijos
o perfume da dor cresce
por todos as grotas do corpo
sou eu que falto
e todos falam de mim
do lado de cá do silêncio
escuto-os falar
nos olhos da mãe está escrito:
Não me rebentes a última corda!
XVI
Meu filho partiu cedo
sua morte apagou todas as coivaras
meu útero nunca mais cantou
por que é que insistem em falar?
Em cada lugar do meu abraço
dói-me a ausência daquela voz dizendo:
a bênção, mãe!
Será que sabem que em mim
meu filho ainda não partiu?
Meu filho se foi
Abriu-se em mim uma barroca
queimaram-me todas as flautas,
um mar de brasas invadiu os meus olhos,
por isso choro!
Em cada palavra o silêncio sangra,
não sei costurar para tapar essa dor.
Ficou as cinzas rodeando meu coração
nasceu-me um dique de fraturas;
nenhum poema é capaz de furá-lo!
XVII
O teu corpo diz-me!
Sou no teu nome um buraco
um cacto debruçado no teu colo
nos teus dedos uma viola fraturada.
Os teus abraços na noite se estendem
como apanhadores de algodão
e só a dor lhes espera.
Nenhum fruto, nenhuma semente.
E sei que afogo os teus olhos
o tempo de vida que ainda me restava
a tua mão passeia pelo ventre,
tão vazio, tão inabitável!
Ter de morrer doeu em mim
moeu-me o corpo, a morte.
XVIII
Quando a tua vida deixou de pertencer a este mundo- dobrei os olhos para dentro das lágrimas — anos depois choveu. nenhuma gota pode sarar em mim o deserto. nunca mais cresceram jardins no meu útero —
De noite, quando deito, uma ciranda brota no meu ventre e outra vez os meus olhos se embrejam.
Em algum lugar a tua mão se levanta, sustentando a minha dor!
será que me escutas?
XIX
Começo a morrer dentro de ti
embora no silêncio ainda me abraças
escorrego da tua saudade
já não lembras tudo sobre mim
estão brancos os teus cabelos
tantos anos se passaram
sou agora um retrato
fincado na parede do quarto
já na mesa ninguém fala
dos meus sonhos de infância
quando lhe perguntam
quantos filhos tens
já não dizes o meu nome
tenho morrido aos poucos
na falta que já não lhe faço
XX
Quando olhar nos meus olhos
procure não ver o berço quebrado
essa criança morreu
e dói!
Feito casca de manga
atirada debaixo da porteira
escorregamos.
É tanto tempo para fincar
e nenhum para colher.
Essa criança deixou de ser
só o seu choro espanca meu útero.
Quando olhar nos meus olhos
procure não ver os sapatos de lã.
Não me desvista a dor,
ajuda-me a semear espelhos de riso
no interior do corpo.
XXI
Mãe
sei que desde que me fui
o teu ventre não deixou de dizer adeus
e no teu riso se alastrou
uma roseira de lágrimas
depois de tanto tempo
a senhora insiste em me regar
sou no teu peito um jardim
que nunca deixaste de visitar.
XXII
Meu filho deixou de existir no tempo
meu coração molhou-se lentamente.
Feito uma brasa fiquei
arderam meus olhos de tanta água.
Meu filho foi tocar nos pássaros
fez-se nuvem, fez-se estrela,
foi cantar do outro lado
fez-se chuva em um fim de tarde.
Ele pariu em mim a distância
buraco impossível de tapar.
Eu que te havia trazido ao mundo
não soube mais navegar à noite.
Meu filho foi costurar em deus
cavou uma casa na eternidade.
Fiquei gritando pelo seu nome
chupando no peito a dor da saudade.
Ele plantou em mim uma roseira
um jardim inabitável
às vezes passeio nele
cheiro paisagens do seu corpo.
É triste ouvir de longe
aquela voz que já não conheço.
XXIII
Mãe
a tua voz visita a minha morte
do outro lado do riso
ontem jogaste fora
as roupas que tanto usei
sou agora em ti
um coral de lembranças
embora ainda doa
já podes viver sem mim
hoje você voltou
ao carinho que eu brincava
a verdade é que em ti
eu nunca morri.
XIV
A tua morte não morreu em mim,
embora queime as suas roupas
mesmo que dos teus cabelos
só reste uma vaga lembrança.
A tua morte acendeu nos meus olhos
a goiaba crepuscular,
dentro dela construo um oratório
onde ajoelho as lágrimas.
alguém me diz a palavra eternidade
com tamanha certeza
como se fossem pingos d'água
beijando o centro das rosas.
eu nada digo,
avisto de longe um pássaro cansado
levo no ventre o berço fraturado
no peito a palavra atracada
tu nunca morrerás em mim
serás sempre uma canoa furada.
XXV
Despedimo-nos sempre muito cedo
há tanto tempo que me fui
sei que virás mãe
para esse lado que desconheço
nunca terminei de morrer
porque não te dei o último abraço
porque na tua música
deixei ser um instrumento
agora que lhe vejo frágil
com tanto tempo passado
agora que nas tuas fotos
estás cada vez mais distante
sinto que estás perto
que o teu jardim me abraça
e deste lado desconhecido
os meus dias esperam por ti
é sempre pouco o tempo mãe
e a saudade nunca termina
mesmo depois do abraço
porque nunca terminamos de ser
aquilo que o outro esperava.
XVI
não sei se existe um deus
só sei que o meu filho morreu!
março, 2020
Sandrio Cândido (Minas Novas/MG, 1991). Afro-brasileiro, poeta, professor, graduado em Filosofia; é autor do livro Epifania (Patuá, 2014), e possui poemas publicados em várias plataformas digitais (Revistas Mallarmargens, Diversos Afins, Zunái etc.). Atualmente, reside na cidade de Cali, na Colômbia, e está trabalhando no seu próximo livro, Morar, que será publicado em 2020 pela Nosotros Editorial.
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