§
atravessar cada corpo
tocar o espesso do osso
que é nosso e do outro
estar onde se padece
com fúria de paciência
estar onde se lavra uma horta
onde se lava uma roupa
onde se reza e se cura uma dor
estar onde se nasce e onde se fenece
e ser nesse morar e estar nesse morrer
§
nasci de uma aranha
que me fisgou por dentro
com seu fio de visgo
que defende a greta
aberta na madeira
o brilho felpudo
enlaçou meu pulso
e aprendi ali
que toda beleza
tem custo
§
toda ausência
é um cão
que gane
sem despedaçar
o silêncio
§
no beiral da casa
faziam ninhos as andorinhas
dali partiam rasantes
num diz-que-diz-que de bicos
a casa parece que levitava
de pios e ninhos
em atropelo
tem dias que achava
que o telhado ia levantar voo
§
disse hoje vou mais cedo
e foi-se bem antes do normal
varou a cidade pelo meio
em busca de algum punhal
que a matasse, ma sem dor
pensou, chutando seus passos
que nem isso é favor
§
paredes se fecham
a noite abraça os postes
em silêncio sombras saem
de fendas da mobília
sentam-se no ladrilho
e narram vidas
que não tiveram
§
pertenço às ruas frias
de vento e geada
em que algo de mim
se incorporou aos portões
e a esses cães famintos
que rosnam para os passantes
a esses tetos que pungem o céu
com suas antenas parabólicas
mandando mensagens a Deus
§
memória é medo
que se entreva
entre as teias
do corpo
memória é osso
sem carne
que cobrimos
da melhor forma
possível
para que não
sangre
§
quando o pilão é dentro
não há grão que o alimente
nem moenda que lhe baste
sova ossos cartilagens
tudo o que soca é desbaste
não há nervo que resista
fibra que não se gaste
§
estava na cozinha
escolhendo feijão
com a alma solta
no vento
ele veio
me rasgou
por dentro
e nunca mais
tive conserto
§
saber a morte nem é lento
disse a vizinha de leito
e mostrou
numa semana curta
de dor aguda
em cada fração de junta
como se aprende
rápido a lição
§
entrou em casa
chutando a sombra
e se fechou no banheiro
encostou o rosto no frio
ferido do espelho
e foi comendo a noite
sem fazer ruído
§
irmão de silêncio sem fundo
irmão da palavra retida
como um castigo
irmão do fio cortado de uma linha
sem medir a extensão
toda palavra engolida
morre dentro do pulmão
§
esperar na porta
que o vento passe
e traga nele sua voz
já que os trilhos do trem
foram arrancados
as ruas não me levam
o ar parado se perde
como água que adoece
e o telefone mudo
espera que você
entre nele com
seu chinelo
§
um dia o pai lhe deu um carrossel
o fino papel que se abria
em suas mãos calosas
desvendou o que nunca vira
cavalinhos que se moviam
para baixo e para cima
enquanto os olhos
não davam conta
de tanta minúcia
a cor da folha da caixa
a curva do polegar na espora
de cada animalzinho em seu brilho
o pai passou a tarde inteira
agachado no chão
vendo cavalgar no vento
a boiada em miniatura
§
mastigar dois dias o bocado
não faz com que desça rápido
pelo gargalo da boca
mas de certo
com a saliva o bolo
se torna lama
em que a língua
afunda
a fala
emana
§
há tardes que não se despedem
apenas encostam a porta
nessas cabem os rastros
de todo bicho que ronda
nessas tem lugar um olho sempre se indo
sem nunca poder chorar
nessas há um rumor de chuva
se desmanchando na terra em torrões
que desabam em desfiladeiro
levando tudo consigo
[Poemas do livro Minha língua roça o mundo. São Paulo, Patuá, 2018]
março, 2020
Vera Lúcia de Oliveira Maccherani é poeta, ensaísta e professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Università degli Studi di Perugia. Recebeu diversos prêmios pela sua produção literária, entre os quais o Prêmio Sandro Penna (Perugia, 1988), o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro, 2005), o Prêmio Internacional de Poesia Pasolini (Roma, 2006), o Prêmio Literatura para Todos (Brasília, 2006), e o Prêmio Internacional de Poesia Alinari (Florença, 2009). Escreve em português e em italiano e tem poemas publicados em vários países. Entre os livros: Geografia d'ombra, 1989 (poesia); La guarigione, 2000 (poesia); Storia nella storia: le parabole di Guimarães Rosa, 2005 (ensaio); Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, 2015 (ensaio); A chuva nos ruídos, 2004 (antologia poética); Verrà l'anno, 2005 (poesia); A poesia é um estado de transe, 2010 (poesia); La carne quando è sola, 2011 (poesia), Vida de boneca (infantil), 2013; O músculo amargo do mundo, 2014 (poesia); Minha língua roça o mundo, 2018 (poesia); Ero in um caldo paese, 2019 (poesia). Mais: www.veraluciadeoliveira.it.
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