Veneza
A parede malhada feito um gato
(Ou vaca)
O espelho que mostra uma velha carcomida
Pelo tempo, pelas palavras não ditas
Trancadas na garganta de um mundo WhatsApp
Manda figurinha
Escolhe
Essa não
Como no tempo das cavernas
Desenha
Nem desenha. Escolhe um desenho pra dizer
O lambari pula no coqueiro
— Pula? Lambari não é peixe?
— É. Acho que é.
Não importa. Nada importa no tempo das máscaras.
*
Escolha as flores que nascem na calçada quando ninguém está olhando. E brotam alegres
Escolha o vestido rosa e o sapato azul
(não te importes se não combina)
Escolha sempre o amor
E as palavras bonitas
Escolha a risada da mãe
E um encontro com a amiga
Escolha o fim de tarde na Urca,
um brinde em Santa Teresa,
as folhas no chão e uma criança pulando pra não pisar em folha nenhuma
Escolha.
As coisas e as palavras bonitas devem ser escolhidas
todos os dias
Casa de madeira
As tábuas com o tempo vão secando. A madeira fica seca e as tábuas diminuem de tamanho.
Daí você tem que pregar nelas as matajuntas.
Você sabe o que são matajuntas? São aquelas ripinhas mais estreitas que as tábuas.
Você tem que pregar as matajuntas pra juntar uma tábua na outra e não entrar água quando chove. Ou venta.
O bom é não fazer casa com madeira verde, nem madeira recém cortada.
É bom deixar um tempo.
Deixar as tábuas e as matajuntas secarem e só depois pregar.
Às vezes me lembro dessas coisas que eu sei,
mas que não servem de nada.
Os meus olhos
Não eram os olhos dos meus amigos da escola
Meus olhos diferem do meu rosto
Meus olhos não parecem com os olhos que deviam parecer
Eu não pareço com o que devia parecer
— Você não parece do Acre.
— Você não parece uma mulher de Rondônia.
— Você carioca.
— Você não parece com seus olhos. Seus olhos não parecem seus.
E talvez meus olhos não sejam deste corpo. Branco. Magro. Aceitável.
Talvez os meus olhos sejam o meu não aceite. Meu desconforto. Minha solidão. Pois eu não pareço.
Não.
O estelionatário
Era um poeminha feio, ruim
Fraquíssimo
Daqueles que a gente deleta antes de publicar
Mas o bicho era atrevido!
Gritou lá da cozinha
— Pq tu não trocas teu nome por um poeta conhecido? Daqueles que compram, no natal, os livros?
E assim, papo reto, foi feito
E eis que um like
Três likes
Vinteeee ooooito likes
Lindo!
Belíssimo!
Coisa de gênio!
Num par de horas tinha até gente comentando que conhecia bem essa obra prima do Manoel
E outro que se lembrou de um livro comprado em Ipanema numa quarta-feira de noite
E o poema feio, fraquíssimo.
gargalhando
Enquanto apontava pra beleza de seus bíceps
*
e todos os poemas
que vão
se perdendo
nessa busca exagerada
(de não sei o quê)
que nunca chega
e quando chega
Ana começa a pintar de novo
(quando os quadros são os mesmos, pinta-se a parede)
*
O sol lá fora parece frio
Sem gente
Sem riso
Limpa o chão
Recebe as compras
Lava, esfrega, enxuga
Arranca a rua das coisas
A rua gruda
Entra pelas ideias
Há riso esperando lá fora
[Amanhã. Há de ter amanhã]
dezembro, 2020
Walquíria Raizer. Escreve poemas, crônicas e histórias para crianças. Publicou os livros O segundo ponto das reticências (EdUFAC, 2007), A história de Chiquinho (com ilustrações de Ziraldo, 2009) e integra a coletânea Amar, verbo atemporal, organizado por Celina Portocarrero (Rocco, 2012). Trabalha na área cultural desde sempre. É mestranda em Memória e Acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa - PPGMA-FCRB. Especialista em Gestão e Produção Cultural (MBA) pela FGV Rio - Management/Rio. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Acre. Já morou no Acre, em Rondônia e no Paraná. Atualmente vive no Rio de Janeiro.
No Instagram: @walquiriaraizer.
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