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Signos Noturnos



o arame preso na boca

e nas várzeas marinhas do teu corpo

farpado. Teu olhar de facas selvagens

antes das trombetas apocalípticas. Eu tecido de fronteiras no longo caminho até o teu beijo

fechado de abraços

inviáveis como milhares de águas

milhares de pássaros

em voo

formando teu nome nas silentes páginas

que eu chamo de casa.







Scri Noturno



Por dez vezes vi a Terra girar seu movimento místico

Vi a dança dos centauros na ribanceira do rio

Cada relâmpago riscando o céu. Eu olhei e vi

tuas imensas mãos como imensos para raios

Onde pousaste os pés ó dançarina de inquieta sombra

Em que rua de febre e cimento esqueceste os sapatos?

Trinta livros abertos sobre a mesa. Trinta páginas arrancadas

minhas mãos abertas

Cristais delicados tecendo a tarde

O verão em minhas mãos. A chuva em meus olhos secos. Eu sou uma árvore

no cais vazio só teu barco e o meu

Só nossas mãos enlaçadas na noite

que chega.







Sartori



Além da janela

do escritório


dos livros e

protocolos


Os pássaros

respiram agora








Il nome della rosa



trezentas flores abertas

um rio sob a abóbada azul e cinza

olhos desertos no poente

luzes vãs em obscuro recinto

várzeas e praças e casas e ases

a mesa de vento numa encruzilhada

árvores afogadas entre as flores

dois livros em confissão

tão perto o sagrado espaço

trezentas flores azuis

um caderno riscado um farol de dardos

azuis como o mar

um naufrágio em águas tão jovens

o rosto no espelho de estátuas

o chão carmim como uma mentira carmim

as águas como uma mentira molhada

os livros como testemunhas mudas

os olhos no vazio sem nome e sem idade

os olhos tecidos na tarde de duas décadas atrás.







015



a poesia é estar no mundo

é dizer a palavra não ocorrida

ou simplesmente redizer

a palavra que foi esquecida


a poesia é ser onda e oceano

é buscar num segundo o eterno

é dizer o sentido do fugaz

onde a primavera habita o inverno


a poesia é escrever simplesmente

sem sentido apenas delírio e júbilo

ou imitar o rigor de velhos relógios

em paredes vazias de quartos noturnos


a poesia é abrir-se ao transcendente

na fímbria oculta que é só desejo

é perde-se num imaginário oceano

à sombra de um labirinto de espelhos.







Desconstrução II



O que cabe na palma das mãos erguidas. Perto está o sol e as safiras 

no reflexo cinza do mar no espelho tácito

de tuas retinas

O que passa devagar o vento indo lentamente. O

outro particular áspero e sólido é o desejo

é a fome de sentido no corpo amordaçado

é o estrago na noite entre dois vazios num quarto de hora

O que é a voz entre nós apenas em lírios pelo avesso. O tempo que

ainda é meu ainda outra vez algo mais algo a mais

na noite. A estranha caminha sob o céu estrelado

na parede o mapa o caminho traçado o rosto

sob a chuva de outubro. As palavras como imensos crucifixos

como imensas varandas no entardecer

os mesmos pássaros voando sobre as águas cinzentas

os mesmos peixes luminosos entre os vagalumes


nos olhos as mesmas águas.







Primeira estação ou a melancolia do ser visível



na fronte os afetos mais queridos

o joio aberto ao escrutínio do tempo

as aberturas selvagens dos dias

em cada mão outras mãos de outrora


e como algo que retorna de sua sombra

o sentido gravado em pedra e sal

sentido mais do que nas palavras cabem

entre as horas instantes que não voltam


em ti o oceano com lastro numinoso

claras águas guardiãs de segredos

no vale de papel deixarei palavras

deixarei que me alcance a memória.







Variação sobre uma folha em branco

Exercício 2



O lápis sobre o caderno

Intocado. Os sons chegam

De muitos lugares

Acordes barrocos no fim da tarde

Nos olhos o calmo o silêncio

A sala não cabe todas as palavras

Aqui a escada não toca o Céu

Nada importa mais

Se o enigma é decifrado. Só há luta

Se o sol continuar em seu trajeto

Sombras e deuses no areópago

Com suas liras de ferro com suas mãos cheias de anéis

Estátuas no chão templos em chamas

Os homens ainda dançam

As mulheres ainda cantam

Os sons de muitos lugares enchem a sala

Memórias e vidas e histórias contadas

Uma imensa voz tecida no escuro

O rio Itapicuru com suas águas encantadas

É o Nilo é o Volga é o Mississipi

Os orixás com seu canto de sal

Trazem a chuva

Um pássaro de muitas cores devora o tempo

O sono chega

Os sons silenciam

O dia termina.







Pequeno motivo grego

Exercício 5



Ela está em outra cidade

lendo um livro em francês

No avesso do livro há uma cidade

uma cidade que ninguém habita

Nas paredes em negrito

versos de Baudelaire

absurdos de Camus


Ela deixa o livro por um momento

pela janela a cidade é um borrão

A cidade não sabe de si

nem o significado da palavra casa

No avesso do livro

a cidade inteira pelo avesso


Ela vai à cozinha e prepara café

Sua caneca traz um lembrete: Communism will win

Ela retorna à janela

A cidade é um vento sem nome

Sobre a mesa o livro em francês

e no avesso do livro

a cidade aberta pelo avesso


Ela ali à janela

O tempo como um vazio na parede

A cidade indiferente expõe na pele

na voz no cheiro nas cores

O avesso do que é

Mas nos olhos dela o inverno

ainda não chegou.







Nuevo 34 — elegia vista de uma janela aberta

Exercício 6



Outra voz que não a tua

eu vi entre os sineiros no dia que demasiadamente se alongou. Outra estrela aberta ao vento que não a tua digital

apagada dos arquivos

e era luz e repouso no verde das paredes

só mariposas numa alegoria barroca

o silêncio dos barcos na voz acima

dos instrumentos

a aurora onde as palavras naufragam

entre nós o colapso do que caminha

devagar


e o que foi guardado em ânforas

o que sobrou entre as ruínas que o fogo levou

os tambores que seguiam o ritmo de teus pés

eu digo só: os dias seguiram sem mim

a torre em chamas no fim da escrita que

sucumbe

entre nós apenas um sol em pedaços

nós filhos do barro onde o sopro de Deus

deixou um imenso vazio


Outros olhos que não os teus

a paisagem no compasso das árvores

só aquela voz despertando visagens

no ocaso o mesmo castanho ferido na garganta

as mesmas pedras pintadas onde o trigo afugenta

os pesadelos

eu vejo ainda os teus grandes olhos

amanhecendo devagar.







Eterno retorno



Quem dirá

quando a seiva da tarde for apenas sombra

o que deixamos de nós

no silêncio secreto das palavras


A fúria dos lençóis ainda permanece

intransponível

Nada tenho que possa perder


e quando o tempo outra vez

encontrar seu búzio

nada direi

teu beijo é uma fronteira molhada.







Dolores



O que cabe dentro

do que o olho vê


no que decerto

é paisagem


e som e fúria e um corpo

que cai silenciosamente


É o que sente ainda

o que corta 


o que é feito de fome

e mistério


e a voz diante do lume

feridas as mãos em brasa


Só o rugido no ritmo

nua e bela noite.

 

                  

 

 

 

 

 

 

 

 


Raimundo Soares é natural de Itapecuru-Mirim, interior do Maranhão. Poeta, graduado em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Parte de sua produção poética está no blogue Turista Exilado.


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